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Perdidos no gelo

À deriva por mais de um ano, Ernest Shackleton nunca perdeu a coragem e salvou sua tripulação

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h20 - Publicado em 30 jun 2004, 22h00

Tatiana Wittmann

Esta é a história de um fracasso que se transformou em triunfo. Em agosto de 1914, a Expedição Imperial Transatlântica deixou a Inglaterra com um objetivo: realizar a inédita travessia a pé do continente antártico. O que era para ser uma grande expedição se tornou uma batalha pela vida. O barco afun-dou, ficou sem comunicação e sem comida, o frio era de rachar – mas o final foi feliz. Durante 20 meses, o comandante Ernest Shackleton e seus 27 homens superaram tudo para voltar à civilização.

Shackleton já era um herói nacional, com direito ao título de sir (cavaleiro do Império Britânico), quando partiu a bordo do Endurance. Por duas vezes ele havia participado de expedições polares que pretendiam chegar ao Pólo Sul. Em 1901, aos 28 anos, embarcou na Expedição Antártida Nacional, comandada pelo capitão Robert Falcon Scott. Na viagem, Shackleton chegou a 82o17’ sul, cerca de 850 quilômetros ao norte do pólo, latitude nunca antes atingida pelo homem. Apesar de não ter alcançado seu objetivo, passar fome, entrar em conflito com Scott e ter ficado doente (com escorbuto), o jovem oficial da Marinha Mercante tomou gosto pelos desafios das explorações polares.

Em 1907, depois de sete meses de preparação, Shackleton zarpou novamente rumo ao sul, agora no próprio navio: o Nimrod. Mais uma vez, a expedição fracassou e foi marcada por uma série de problemas. Sofrendo com queimaduras causadas pelo frio e a chamada cegueira das neves, o explorador e seus três acompanhantes tiveram de desistir de chegar ao Pólo Sul no começo de 1909. Em seu diário, Shacketon deixou registrada a decisão: “9 de janeiro – nosso último dia para a frente. Fizemos o máximo de esforço e estamos na latitude 88º23’S”. Faltavam apenas 150 quilômetros. Com a chegada da expedição do norueguês Roald Amundsen ao Pólo Sul em 1912 (leia mais no quadro da página 24), Shackleton decidiu mudar de objetivo e se propôs a fazer a travessia a pé, de quase 3 mil quilômetros, entre a costa do mar de Weddell e o mar de Ross. Com a ajuda do governo britânico e de benfeitores importantes, Schakleton reuniu os recursos necessários e no dia 8 de agosto de 1914 partiu da Inglaterra para a aventura que passou a ser conhecida como uma das grandes histórias de superação humana do século 20.

Ambição congelada

O primeiro anúncio de que aquela não seria uma expedição tranqüila veio na última escala em terra firme. Na ilha Geórgia do Sul, onde havia na época um posto britânico, o comandante recebeu a notícia de que as condições de navegação naquele ano estavam especialmente difíceis, pois o banco de gelo do mar de Weddell estendia-se muito mais ao norte do que jamais tinha sido registrado. A informação fez com que Shackleton optasse por ficar um mês esperando o tempo melhorar.

Em 5 de dezembro de 1914 o Endurance partiu para o sul, com 28 homens, 69 cães de trenó, dois porcos e um gato. Dois dias depois o navio atingiu a margem exterior do banco de gelo, que o comandante descreveu em seu diário como “um gigantesco e interminável quebra-cabeças criado pela natureza”. Seis semanas mais tarde, estava totalmente bloqueado. Disfarçando seu desapontamento com a possibilidade cada vez maior de um novo fracasso, o comandante tentava animar a tripulação com partidas de futebol no gelo, jogos de cartas e xadrez, cuidados com os cães e sessões de música e canto.

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Viver naquelas condições não era nada fácil. As temperaturas caíram para 10ºC a 30ºC negativos e os homens foram impedidos de desembarcar. Os ventos fortes faziam com que o Endurance gemesse e sacudisse. “Na noite de 2 de setembro tive um dos maiores sobressaltos da minha vida. Estava deitado na cama quando o navio literalmente pulou no ar e depois caiu equilibrado na quilha”, escreveu o marinheiro William Bakewell. No dia 27 de outubro, depois de nove meses preso no gelo, o navio não agüentou a pressão e o convés começou a se partir. Shackleton ordenou que a tripulação abandonasse a embarcação, que acabou afundando dois meses depois. “Tudo aconteceu depressa demais, nem tivemos tempo de nos lamentar”, registrou o geólogo James Wordie.

Ainda assustados, os exploradores levantaram um acampamento improvisado na banquisa, a apenas 100 metros do casco avariado. Divididos em cinco finas tendas de linho, e vestidos só com roupas de lã, os homens passaram a primeira noite sob uma temperatura de 26ºC negativos. Havia apenas 18 sacos de dormir de pele, que foram sorteados entre os 28 tripulantes. Por duas vezes o grupo ensaiou iniciar uma marcha através do gelo para chegar à ilha mais próxima ou descobrir uma abertura para o mar. Mas a intenção de arrastar três barcos salva-vidas cheios de mantimentos, pesando pelo menos 1 tonelada cada um logo se mostrou impossível.

Na primeira tentativa, eles andaram apenas 2,5 quilômetros antes de desistir e montar um novo posto, batizado de Acampamento Oceânico (o velho foi apelidado de Abandono). Em cada viagem entre um local e outro, objetos e alimentos que tinham ficado no primeiro alojamento eram recuperados. Foi numa dessas ocasiões que o fotógrafo Frank Hurley, que vinha registrando todos os momentos da viagem, resgatou os negativos das fotos. Junto com o comandante, escolheu os que pareciam estar em melhores condições. Ficou com 120 latas e jogou fora cerca de 400. Algumas das imagens recuperadas ilustram estas páginas.

Com as roupas sempre molhadas, todos tiveram de se acostumar ao frio e a uma dieta no mínimo esquisita, à base de pingüins e focas. As barracas receberam pisos improvisados com madeiras resgatadas do navio e dos canis, mas mesmo assim os sacos de dormir muitas vezes ficavam nas poças d’água causadas pelo degelo. A caça diminuiu e os cães tiveram de ser sacrificados.

Longe da terra firme

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No dia 23 de dezembro de 1915, depois de dois meses vivendo no gelo, a tripulação voltou a desmontar acampamento para tentar alcançar, pela segunda vez, um lugar mais seguro. O grupo marchou com dificuldade durante uma semana, mas só avançou 12 quilômetros. Não restava alternativa senão ficar à mercê do movimento da banquisa e esperar a fragmentação do gelo para lançar os barcos ao mar. E, apesar da torcida no novo Acampamento Paciência para que a banquisa os levasse em direção a alguma ilha, em março de 1916 o grupo passou muito a leste da terra firme.

Para quem conhece a região, como o biólogo e pesquisador Carlos Alejandro Echeverria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esses 28 homens terem sobrevivido acampados numa banquisa de gelo é surpreendente. “Na área onde eles ficaram a temperatura não passa de zero grau no auge do verão e o vento de até 160 km/h provoca sensações térmicas de até 40oC negativos”, conta Echeverria, que nos últimos cinco anos passou 16 meses na Estação Antártica Brasileira Comandante Ferraz, instalada na ilha Rei George, no arquipélago de Shetlands do Sul.

Hoje, a realidade é bem diferente da que Shackleton e seus companheiros viveram há quase 90 anos. Há mais de 40 estações de pesquisa na Antártida. O tráfego de navios é grande. Na ilha Rei George, é possível chegar de navio, avião ou helicóptero. E só pela Estação Antártica Brasileira passam 120 pessoas por ano (no máximo 50 ao mesmo tempo). “Temos acesso à internet 24 horas por dia, geradores, telefone público e até um posto de correio”, explica o pesquisador. “Sem contar que nossas roupas são bem mais quentes do que as disponíveis no início do século passado. As botas, hoje, são de couro com sola de borracha e possuem um forro especial de lã e fibra de vidro que as torna impermeáveis. E as roupas são feitas de um tipo de pele e lã que, mesmo molhada, esquenta.”

Mas foi sem comunicação, suportando temperaturas tão baixas, que era possível escutar a água congelando e se alimentando muito mal que o comandante Shackleton e seus 27 tripulantes sobreviveram durante cinco meses acampados no gelo. Até que no dia 31 de março de 1916 uma rachadura na banquisa trouxe esperança para o grupo. Uma semana depois os três barcos salva-vidas – James Caird, Dudley Docker e Stancomb Wills – foram lançados ao mar. “O gelo estava endiabrado. Era uma corrida louca mantê-los nos trechos de mar aberto… Muitas vezes escapamos por pouco de ser esmagados quando as massas maiores de gelo colidiam umas com as outras”, escreveu Bakewell em seu diário. Mal sabia ele que muitos desafios e provações ainda estavam por vir. Divididos nos pequenos barcos a remo, eles suportaram sete dias de viagem até alcançar a ilha Elephant. Era 15 de abril e fazia 497 dias que todos estavam à deriva. A água salgada gelada, cuja temperatura gira entre 2ºC e 5ºC, e o cansaço da viagem fizeram estragos. Grande parte dos homens desmaiou, o sal provocou assaduras, a sede inchou as línguas e o frio causou queimaduras por todo o corpo.

Travessia arriscada

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Só que a ilha estava longe de ser um paraíso. Oferecia pouca proteção do mar aberto e, como já era do conhecimento de todos, estava completamente fora das rotas dos baleeiros. Os ventos impediam a montagem das barracas e os barcos salva-vidas tiveram de ser colocados em terra para ser usados como abrigo. Diante desse cenário, Shackleton decidiu partir, com outros cinco homens, a bordo do James Caird. O objetivo: chegar à estação baleeira da Geórgia do Sul, de onde haviam zarpado um ano e quatro meses antes. “Eles sabiam que aquele trecho de 1300 quilômetros pelo Atlântico Sul era, e ainda é, um dos piores mares do planeta. E que as chances de sobreviver àquela travessia, no inverno, com um barquinho de 7 metros, todo aberto, eram mínimas”, admira-se Echeverria. No trajeto, os seis aventureiros enfrentaram ondas de 20 metros de altura e ventos de 130 km/h. Na ilha, ficaram 22 homens, divididos entre a esperança de resgate e a incerteza de quando ele viria.

O James Caird ficou 17 dias no mar – dez dos quais em meio a vendavais, tempestades e furacões. Guiado por um sextante pouco confiável e pela sensibilidade do navegador Frank Worsley, o grupo chegou à baía King Haakon, na ilha Geórgia do Sul, em 10 de maio. Anos mais tarde, Shackleton ainda mostrava uma cicatriz na mão esquerda causada por queimaduras e bolhas naquela viagem. Só que o desembarque não foi exatamente tranqüilo. Em vez de chegar a uma área habitada, os exploradores aportaram num lugar remoto, abandonado (na verdade, estavam a 240 quilômetros por mar das estações baleeiras mais próximas). Shackleton decidiu que ele e outros dois tripulantes atravessariam as montanhas cobertas de gelo para buscar socorro. Sem nenhum equipamento de segurança, levaram 36 horas para chegar à civilização. O capataz da estação mal acreditou na história que aqueles homens de aparência horrível contaram.

A felicidade de estar a salvo, porém, não era maior do que a necessidade de resgatar os que tinham ficado para trás. Depois de tomar banho, fazer a barba, vestir roupas limpas e se alimentar, Worsley embarcou para buscar os três que aguardavam do lado desabitado. Enquanto isso, Shackleton negociava o resgate da turma que permaneceu na ilha Elephant. Só que os problemas estavam longe de terminar. Por causa da Primeira Guerra Mundial, havia poucos navios disponíveis para executar tal tarefa.

Enquanto isso, na ilha Elephant, Frank Wild seguiu os ensinamentos do comandante Shackleton e manteve os 21 homens que haviam ficado sob seu comando em perfeito estado de saúde física e mental. Para afastar a depressão e manter acesa a esperança de rever os companheiros, Wild promovia leituras e cantorias. Para comer, o bom e velho cardápio de foca e pingüim (além do pouco que havia restado do Endurance).

Mais de quatro meses tinham se passado desde que os seis navegantes partiram no pequeno James Caird. O grupo menor, na Geórgia do Sul, ignorava as condições do grupo maior – que, por sua vez, não sabia sequer se os companheiros tinham conseguido chegar a algum lugar. Foi só no dia 30 de agosto de 1916 que o navio chileno Yelcho conseguiu chegar à ilha Elephant. Worsley e Shackleton estavam juntos no convés. Em terra, a tripulação comemorava e gritava a uma só voz: “Estamos todos bem!” Em pouco mais de uma hora, o grupo subiu a bordo. Shackleton pôde, finalmente, dar por encerrada aquela fracassada e inesquecível aventura. Em seu diário, o comandante desabafou: “Consegui. Maldito seja o almirantado… Atravessamos o inferno, mas não perdi nenhum homem”.

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1. 5/12/1914

Endurance parte da Geórgia do Sul rumo à Antártida

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2. 18/1/1915

O navio fica aprisionado na banquisa de gelo

3. 27/10/1915

Esmagado pelo gelo, o barco é abandonado pela tripulação

4. 9/4/1916

Em botes salva-vidas, os marinheiros se lançam ao mar

5. 15/4/1916

Os 28 tripulantes chegam à ilha Elephant

6. 24/4/1916

Shackleton parte com o bote James Caird em busca de ajuda

7. 10/5/1916

O pequeno grupo chega à Georgia do Sul

8. 30/8/1916

Enfim, o resgate da tripulação

O Pólo Sul não era para ele

Dois fracassos. Na terceira vez, a morte

Ernest Shackleton nasceu em 15 de fevereiro de 1874 em Kilkea, Irlanda. Casou-se em 1904 com Emily Dorman, com quem teve três filhos. Fracassou nas três tentativas de chegar ao Pólo Sul, mas é lembrado como um modelo de liderança, pois só retornou à Inglaterra depois de resgatar todos os tripulantes – inclusive a equipe que, incumbida de deixar suprimentos ao longo da travessia transatlântica, tinha ficado isolada no mar de Ross. Em terra, o comandante foi trabalhar para o Ministério da Guerra. Depois dessa experiência como diplomata e de proferir várias palestras sobre a aventura do Endurance, Shackleton sofreu com o excesso de bebida e a falta de dinheiro. Foi quando decidiu quebrar a promessa de abandonar as expedições polares e partiu novamente rumo ao sul. Liderando sua terceira expedição para a Antártida, morreu de ataque cardíaco, aos 47 anos, na ilha Geórgia do Sul, em janeiro de 1922. A pedido da viúva, Emily, seu corpo foi enterrado no cemitério dos pescadores de baleia na própria ilha.

Até o fim do mundo

A batalha de Amundsen e Scott para ser o primeiro a pisar no Pólo Sul

Bruno Sassi

Nos primeiros anos do século 20, um dos meios de mostrar superioridade era explorar lugares nunca antes alcançados. Só para cravar a bandeira no solo virgem. Foi sob esse clima que uma embarcação da Grã-Bretanha – Terra Nova, capitaneada por Robert Falcon Scott – e outra da Noruega – Fram, de Roald Amundsen – disputaram o privilégio de conquistar o Pólo Sul.Amundsen queria ser o primeiro a chegar ao Pólo Norte, mas o norte-americano Robert Edwin Peary chegou antes. Imediatamente, o norueguês “inverteu” os planos. Ao menos duas grandes expedições já haviam ficado perto de chegar ao extremo sul. Na primeira delas (1901-1902), Robert Scott fazia parte do grupo. E ele anunciara, pelo jornal The Times, que embarcaria para a nova tentativa em breve. Amundsen sabia – e, por isso, não revelou nada. Em 9 de agosto de 1910, a corrida começou sem que quase ninguém soubesse: o Fram rumou ao sul com nove homens e 97 cachorros da Groenlândia. Quase dois meses antes, em 15 de junho, Scott saíra de Cardiff, no País de Gales, acompanhado de 31 homens, 33 cães, 17 pôneis e três tratores de neve. O britânico só foi descobrir que tinha um adversário em 12 de outubro, na Austrália, onde um telegrama o aguardava: “Deixo-o avisado a caminho da Antártida. Amundsen”. O Fram foi até o continente antártico sem escalas. Em janeiro de 1911, ancorou na Baía das Baleias. Na mesma época, o Terra Nova chegava a McMurdo, mais a oeste. Em 20 de outubro, Amundsen e quatro homens, em trenós puxados por cães, seguiram rumo ao pólo. Treze dias mais tarde foi a vez de Scott: pretendia percorrer 2825 quilômetros, entre ida e volta. Os tratores, porém, pifaram após 100 quilômetros. Sobrou mais carga para os pôneis, que também não agüentaram. Em 6 de dezembro, o inglês definiu a viagem como “uma total desgraça”. Com outros quatro homens, Scott chegou com muito custo ao extremo sul, em 18 de janeiro de 1912. Primeiro, viu pegadas; depois, a bandeira norueguesa que tremulava desde 14 de dezembro. Quando Scott pisou no Pólo Sul, Amundsen já havia batizado o local de Plataforma do Rei Haakon VII. Cinco dias após o britânico ler essas palavras, Amundsen chegava intacto à base. O grupo de Scott ainda penaria muito mais. O último registro no diário é de 29 de março, quando dois homens já tinham morrido: “O fim não pode estar longe”. Em novembro, três cadáveres foram encontrados a 18 quilômetros de um depósito com mantimentos.

1. 20/10/1911 a 14/12/1911

O caminho vencedor de Amundsen

2. 2/11/1911 a 18/1/1912

A trilha percorrida por Scott

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