Porres, trapaças e censura
Durante a ditadura militar, censores e censurados nem sempre se odiavam. Muitos passavam as tardes bebendo juntos, ficavam amigos e protagonizavam situações curiosas e engraçadas.
Durante a ditadura militar, censores do governo e artistas nem sempre se odiavam. Muitos deles saíam juntos para beber, discutiam horas sobre filmes e até ficavam amigos. Conheça as melhores histórias de camaradagem e trapalhadas daquela época.
Ela gostava de uísque. Em 1969, os editores do jornal O Pasquim tinham que levar, toda semana, os originais das páginas para a casa da censora Marina de Almeida Brum Duarte, no bairro do Botafogo, Rio de Janeiro. O trabalho dela era cruel: calar tudo que pudesse contrariar os militares, violentando a livre expressão dos jornalistas. Com o tempo, porém, os editores descobriram o ponto fraco da censora: ela gostava de uísque. Como o cartunista Jaguar também era fã do goró, as reuniões de censura viraram conversas de bar. “Acabamos ficando amigos dela”, diz o cartunista Ziraldo. “Quando a gente reclamava de algum corte, ela falava: ‘Assim eu vou perder o meu emprego. Se eu não tirar nada, o chefe vai me encher’.”
A censura promovida nas décadas de 1960 a 1980 pelo regime militar foi abrangente e implacável. Peças de teatro, filmes, livros, telenovelas, jornais e discos chegaram ao público mutilados por funcionários do governo que zelavam pela moral e para que ideologias contrárias ao regime não chegassem à população. Mas, quando se olha esse período mais de perto, o que se vê é uma relação muito mais complicada do que o puro e simples corte indiscriminado e impessoal. Assim como Jaguar e a dona Marina, censores e censurados eram pessoas comuns, que se relacionavam, às vezes ficavam amigos e com freqüência protagonizavam situações curiosas e engraçadas.
Quando assumiu o poder, em 1964, o regime militar encontrou um departamento de censura com 13 pessoas, que tinham a missão de impedir que as crianças fossem expostas a conteúdos considerados inadequados. “Até 1964, meu trabalho era avaliar o caráter educativo da diversão pública”, diz o censor Coriolano Loyola Fagundes, que trabalhou para a censura entre 1961 e 1984 . “Depois, passei a ter que avaliar a vida pregressa do autor. Nós tínhamos que procurar chifre em cabeça de cavalo. O neto do general via a novela na TV e nos mandava avisar que um determinado personagem era comunista.”
Para dar conta das novas tarefas do departamento, o governo deslocou dezenas de pessoas para o Serviço de Censura de Diversões Públicas, vinculado à Polícia Federal. Nos primeiros anos de ditadura, os censores eram funcionários públicos nomeados por indicação. Foi nessa época que esposas de militares, funcionários do Departamento de Agropecuária e ex-jogadores de futebol assumiram a função de julgar o que a população brasileira poderia ver. Despreparadas, essas pessoas eram capazes de proibir o romance O Vermelho e o Negro, escrito por Stendhal em 1830, por causa do vermelho do título, ou mandar a polícia sair pelas ruas de São Paulo em busca do dramaturgo Sófocles, que morreu na Grécia há mais de 20 séculos.
Bate-papo
Entre 1974 e 1985, foram realizados 6 concursos públicos para a função. Não era um cargo ruim. Em 1977, mais de 5 mil pessoas participaram do concurso. A demanda foi tão grande que a Faculdade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, criou um cursinho preparatório para quem quisesse virar censor da ditadura. No auge, ao final dos anos 70, havia 250 censores no país. Com tanta concorrência, os censores foram ficando mais capacitados. “Eles eram pessoas privilegiadas, as únicas que tinham acesso a todos os produtos culturais brasileiros na íntegra. Muitos dos censores eram mais bem informados do que os próprios críticos que escreviam nos jornais”, afirma Leonor Souza Pinto, professora de Comunicação da Universidade Federal Fluminense.
Para enrolar esses censores eruditos e fazer a obra passar, uma das principais técnicas era simplesmente bater um papo com eles. Os censores tinham que prestar contas a seus chefes, mas eram acessíveis e costumavam ouvir os artistas. O produtor Luiz Carlos Barreto, por exemplo, acostumou-se a viajar para Brasília a fim de assistir aos filmes ao lado dos censores. “Eu e o Luiz Carlos nos sentávamos ao lado do censor, em uma sala de projeção no subsolo da Polícia Federal em Brasília. Toda vez que ele tocava a campainha para o operador marcar o pedaço do filme que seria cortado, nós tentávamos argumentar. Às vezes dava certo”, lembra o diretor Nelson Pereira dos Santos.
Ou seja: os censores também se importavam com o conteúdo das obras. A relação entre Barreto e o censor Coriolano Fagundes foi fundamental para a liberação de filmes como Dona Flor e Seus Dois Maridos. Quando viu a cena em que a personagem de Sonia Braga faz sexo anal com Vadinho, interpretado por José Wilker, Coriolano percebeu que aquilo não passaria pelo crivo do chefe. Para tentar a aprovação da cena, sugeriu o corte de só um pequeno trecho. “Eu sabia que, se deixasse na íntegra, meu chefe o cortaria inteiro”, diz. Essa sugestão, assim como outras feitas pelo censor, foram acatadas e o filme sofreu poucos cortes drásticos. Em 1976, levou 10 milhões de pessoas aos cinemas e se tornou a maior bilheteria da história do cinema nacional até hoje.
Nem todas as negociações eram tão bem-sucedidas. Em 1967, José Mojica Marins teve que fazer uma concessão mais drástica. À Meia Noite Encarnarei no Teu Cadáver terminava com o personagem Zé do Caixão baleado, gritando contra Deus antes de morrer. Os censores queriam que o personagem se arrependesse dos pecados e se convertesse. O produtor Augusto Pereira aceitou a exigência, e o filme passou a terminar com Zé do Caixão gritando: “Sim, Deus é a verdade! Eu creio em tua força! A cruz, a cruz, padre! A cruz, o símbolo do filho”.
Proibido ou não liberado?
Outra tramóia que funcionava era apresentar a mesma obra várias vezes, para censores diferentes. É que eles faziam um rodízio, de forma que todos elaboravam pareceres sobre tudo. Quando escreveu a novela Saramandaia, em 1976, o dramaturgo Dias Gomes percebeu que o funcionário responsável pela censura mudava a cada 20 dias. Passou a adotar uma rotina: cada vez que uma cena era cortada, ele a reapresentava 20 dias depois. Com isso, algumas delas acabavam sendo aprovadas. Essa foi uma das poucas vitórias do dramaturgo na negociação diária contra os censores.
Assim como Plínio Marcos e Augusto Boal, Dias Gomes era muito visado pelos militares. Em 1965, sua peça O Berço do Herói foi proibida a 4 horas da estréia no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro. O texto havia sido aprovado, assim como o primeiro ensaio geral. Mas na terceira etapa, a da avaliação feita no último ensaio geral, os censores perceberam que Dias Gomes havia alterado partes substanciais do texto, e, por isso, proibiram a peça. Quando o policial chegou à porta do teatro para impedir as pessoas de entrar, já havia gente na fila. Dias Gomes alegou que a apresentação não havia sido liberada, mas isso não queria dizer que ela tinha sido proibida. O policial ficou confuso. O impasse acabou meia hora depois, quando o chefe da censura no Rio de Janeiro ligou para o diretor Antonio Abujamra e avisou, aos gritos, que “não liberada” era igual a proibida. Com essa confusão, Dias Gomes ganhou tempo, e mais pessoas chegaram à porta do teatro e perceberam o que estava acontecendo.
No caso da música, a censura podia cortar não só letras, mas também as capas. Chico Buarque não foi autorizado a usar a capa original do disco Calabar, de 1973 – o muro pichado com o nome do disco teve que ser trocado por uma foto do cantor, e o disco foi rebatizado à força para Chico Canta. Além disso, suas músicas Ana de Amsterdã e Vence na Vida Quem Diz Sim se tornaram instrumentais, porque a letra não foi liberada. Naquele mesmo ano, Tom Zé lançava o disco Todos os Olhos. Depois de discutir com o poeta Décio Pignatari a melhor imagem para a situação política e cultural do Brasil naquele momento, os dois tiveram uma idéia: fotografar um ânus com uma bola de gude presa a ele, de forma que o resultado final parecesse um olho. Os militares caíram na artimanha e a capa foi liberada. Só 20 anos depois o cantor revelou a origem da imagem.
A censura não acabou com o fim da ditadura, em 1984, mas em 1988, quando a nova Constituição foi promulgada. Depois disso, os censores perderam poder. Mas eles não desapareceram de todo. O Ministério da Justiça tem um Departamento de Classificação, que define os horários dos programas de TV e a faixa etária dos filmes exibidos nos cinemas. São 18 funcionários que assistem aos filmes, analisam as sinopses de novelas e as campanhas publicitárias. Eles continuam zelando pelo caráter educativo, mas não têm, nem de longe, o poder de seus antecessores.
Toma mais um limão…
Quando trabalhou dentro da redação do jornal O Estado de S. Paulo, entre 1973 e 1974, o censor Coriolano Fagundes deu expediente das 18 às 4 h. A partir do começo da noite, ele recebia as páginas prontas para impressão e fazia os cortes de acordo com uma lista de palavras e assuntos proibidos. À 1 h, quando o “Estadão” já estava pronto, Coriolano saía para comer, nos arredores da rua Major Quedinho, centro de São Paulo. Voltava uma hora depois, para terminar de censurar o Jornal da Tarde. Isso quando nenhum repórter descia junto para puxar papo com o censor, oferecer a ele um drinque a mais e, quem sabe, atrasá-lo. A tática funcionava, e o JT ia para a rua sem censura.
Prendam Sófocles!
Em 1965, estreou no Teatro Municipal de São Paulo a peça Electra. A história fala da vingança de Orestes e Electra contra a mãe pelo assassinato do pai deles, Agamenon. Chocados pelo teor do texto, os censores pediram que agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) invadissem um ensaio para localizar e prender o dramaturgo subversivo. Os policiais suaram muito para encontrá-lo. Acontece que Electra é uma peça de Sófocles, que morreu na Grécia há 2400 anos. O caso veio a público graças ao cronista Stanislaw Ponte Preta, que o contou em uma crônica no livro Festival de Besteiras que Assola o País.
Corta à vontade
Em 1971, o diretor Nelson Pereira dos Santos começou a negociar com a censura a liberação do filme Como Era Gostoso o Meu Francês. Entre pedidos e argumentos do diretor, o processo teve 33 pareceres. No final, Nelson decidiu cortar todas as cenas que a censura pediu. Ao contrário do que a maioria dos cineastas fazia, não tentou consertar o filme. A obra chegou aos cinemas incompreensível, com 20 minutos a menos de duração. Era o que o diretor queria: mostrar ao público o quanto a censura era capaz de prejudicar um filme. Dez anos depois, a Rede Bandeirantes exibiu a versão integral. “Os militares ficaram loucos, queriam nos prender”, diz Nelson.
Para saber mais
Roteiro da Intolerância – Inimá Simões, Livraria Universitária, 1999
Cães de Guarda – Beatriz Kushnir, Boitempo Editoral, 2004
https://www.memoriacinebr.com.br – Site com o processo de censura a 170 filmes de 1964 e 1988