Relâmpago: Revista em casa a partir de 9,90

Rivalidade máxima

Ao levantar o tapete sob algumas das maiores disputas da ciência, um autor americano revela que por trás de idéias luminosas, grandes descobertas e gênios obcecados também há maldade, mesquinharia e egoísmo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h12 - Publicado em 31 Maio 1999, 22h00

Alessandro Greco

A História tem uma certa tendência a endeusar os cientistas. Os mais brilhantes costumam ser retratados como gênios abnegados e incansáveis, dedicados em tempo integral a um trabalho em benefício da humanidade. Essa mistura de excelência com bondade cria uma auréola angelical que desaba quando os cientistas se envolvem em grandes rivalidades entre si. Aí, algumas vezes a rasteira vale tanto quanto o bom argumento.

No ano passado, o escritor americano Hal Hellman, autor de 26 livros, reuniu dez acirradas disputas no livro Great Feuds in Science? Ten of the Liveliest Disputes Ever. Seu trabalho, que será lançado no Brasil em agosto próximo pela Editora da Unesp, com o título Grande Debates na Ciência, mostra que as discussões científicas estão muito longe de serem frias.

Além da briga feia de Isaac Newton com o matemático alemão Gottfried Leibniz pela autoria da invenção do cálculo diferencial e integral, a fornalha de vaidades inclui a queda-de-braço entre o francês Luc Montagnier e o americano Robert Gallo pela descoberta do vírus da Aids e a acirrada disputa entre os paleontólogos Donald Johanson e Richard Leakey sobre as espécies que deram origem ao Homo sapiens. Essa última, embora nunca tenha perdido a elegância, já se espalhou por discípulos e seguidores dos mestres.

Nenhum cientista pode ter a pretensão de defender a verdade absoluta. Mas na crônica da ciência não faltam gênios convencidos de que a resposta mais correta está em seu próprio umbigo. A SUPER traz nas próximas páginas algumas das histórias saborosas contadas por Hellman.

O massacre do cálculo diferencial e integral

Um dos maiores gênios científicos de todos os tempos, o cientista inglês Isaac Newton (1642-1727), descobridor das três leis do movimento (as chamadas leis de Newton) e da lei da gravidade, entre outras, construiu também a mais poderosa ferramenta matemática já pensada, o cálculo diferencial e integral (veja infográfico abaixo). Mas não foi o único a realizar a proeza. O cientista e filósofo Gottfried Leibniz (1646-1716) também fez a mesma descoberta por si só, na Alemanha.

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Newton fez o cálculo em 1665, dez anos antes do alemão, mas divulgou sua descoberta apenas entre cientistas. “Publicou-a para o grande público só em 1704”, explicou à SUPER Newton da Costa, matemático do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. “Leibniz a desconhecia quando divulgou o seu trabalho, em 1684.” Vinte anos antes, portanto.

Na época, a autoria da importante descoberta dividiu os cientistas. Houve ferrenhos defensores de ambos os lados; os ingleses tomaram o partido de Newton e a maioria dos matemáticos dos demais países europeus, o de Leibniz. Só que o gênio inglês passava por cima de qualquer um que ousasse competir com ele, sem cerimônia. Escorado no poder de presidente da mais respeitada instituição científica da época, a Royal Society of London, articulou uma pesada campanha contra o alemão.

Newton decidiu que sua instituição deveria formar uma comissão para investigar a descoberta do cálculo. Mas, quando o relatório foi terminado, simplesmente se apoderou dele e reescreveu-o, em seu benefício, sem que ninguém ousasse criticá-lo. Os colegas tinham tanto medo dele que, desde sua eleição como presidente da Royal Society, em 1703, até sua morte, em 1727, Newton foi sempre reeleito sem enfrentar competidor. Seu poder também era político: foi diretor da Casa da Moeda da Grã-Bretanha (cargo que também ocupou até a morte) e o primeiro cientista a ser ordenado cavaleiro do reino.

Xingamento caro

Leibniz cometeu o erro tático de xingar de desonesto seu adversário todo-poderoso, em uma carta de 1711 dirigida ao secretário da Royal Society, na qual requeria a paternidade da invenção do cálculo. Newton enfureceu-se a ponto de rechear todos os textos que escreveu sobre o assunto, até a morte de Leibniz, com insultos ao opositor. Também incitou colegas a escrever e publicar textos injuriosos contra ele. E publicou artigos ofensivos ao alemão sob pseudônimo.

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Mas não parou aí. Em 1714, o príncipe inglês George I, originário da casa de Brusnwick, na Alemanha, virou rei da Grã-Bretanha. Leibniz era conselheiro e historiador da corte dos Brunswick, em Hannover. Por meio de George I, Newton conseguiu demitir o rival. Na miséria e no ostracismo, o alemão morreu dois anos depois. Só seu ex-secretário compareceu ao enterro.

Em contraste, onze anos depois Newton foi enterrado com honras de chefe de estado na Abadia de Westminster. Pode-se dizer que ganhou a disputa. Mas, aos poucos, a notação criada por Leibniz para o cálculo diferencial e integral provou-se mais ágil.

Acabou vingando e hoje é usada para mandar foguetes ao espaço e criar carros cada vez mas seguros.

Trapaça na descoberta do vírus da Aids?

Em 1983, o cientista francês Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, mandou para os Estados Unidos amostras de um novo vírus para o colega americano Robert Gallo, do Instituto Nacional de Saúde americano. No ano seguinte, Gallo anunciou ter descoberto o vírus da Aids. Só não contou a ninguém que a amostra do HIV havia sido cedida por Montagnier.

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Durante seis anos o americano sustentou, apesar dos protestos do francês, que sua equipe descobrira o HIV. Mas, depois de muito escândalo e da intromissão dos governos dos Estados Unidos e da França, fez uma retratação pública na revista Nature, em 1991. Disse, aí, ter concluído que o vírus isolado por ele, em 1984, era o mesmo isolado por Montagnier em Paris no ano anterior. E admitiu que suas amostras de sangue tinham sido contaminadas “acidentalmente” pelo vírus de Montagnier.

“Gallo usou o vírus francês”, explica o oncologista brasileiro Drauzio Varella. “Disse que sua amostra foi contaminada acidentalmente, mas nunca saberemos a verdade. Mas o detalhe importante é que Gallo recebeu vírus de vários laboratórios. Ele tinha o único capaz de provar que aquele era a causa da doença – e o fez. Montagnier tinha dúvida de que o vírus enviado por ele era capaz de causar a Aids sozinho”. Na Nature o americano afirmou: “Não há dúvidas de que foi Montagnier quem primeiro descreveu o HIV. Mas nós fomos os primeiros a provar que se tratava do vírus da Aids”.

Montagnier, entretanto, rechaça a versão. Ele sempre disse que também provou que o HIV era o vírus da Aids. Em 1990, declarou à revista Veja: “Nossa equipe isolou um tipo novo e bem diferente de vírus daquele que Robert Gallo descrevera em trabalhos anteriores. Depois, estabelecemos que ele era a verdadeira causa da Aids por meio de testes em pacientes doentes, e desenvolvemos, pela primeira vez, o Teste Elisa” – usado até hoje para detectar a doença. Quando saiu a retratação na Nature, Montagnier foi duro: “Por que a mentira de Gallo foi sustentada durante tanto tempo?”

Intervenção diplomática

Em 1987, os governos americano e francês colocaram panos quentes na disputa dividindo formalmente a paternidade da descoberta e os royalties dos testes anti-Aids. Mas, em 1992, o Departamento de Integridade Científica do Serviço de Saúde Pública, órgão responsável pela apuração da má conduta ética dos cientistas nos Estados Unidos, abriu um processo contra o pesquisador tcheco Mikulas Popovic, um dos colaboradores de Gallo. Popovic foi o autor principal de um artigo publicado na revista Science, co-assinado por Gallo, anunciando a descoberta do HIV. Usou os dados de Montaigner mas não deu crédito. Após três anos de investigação, foi inocentado. Segundo o Departamento, não havia provas que comprovassem a intenção deliberada de utilizar informações fornecidas pelo francês sem citá-lo. Com isso, o processo contra Popovic foi arquivado e decidiu-se não julgar o caso de Gallo também por falta de provas. Ou seja, legalmente o americano foi absolvido.

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Foi uma solução diplomática. Uma acomodação. A ética ganhou mais uma cicatriz. A postura de Gallo não foi idônea. Nesse caso, Montagnier acabou com as honras. O americano foi inocentado de fraude, mas sua frase à revista Time quando soube do arquivamento do caso foi sugestiva: “Sinto-me perdoado”.

Uma disputa pela origem da espécie

O Davi americano contra o Golias inglês. Muitos vêem assim a briga dos paleontólogos Donald Johanson e Richard Leakey. Afinal, Johanson disputa contra uma família inteira. Louis (1903-1972) e Mary (1913-1996) Leakey, pais de Richard, foram dois paleontólogos extraordinários. O casal descobriu duas espécies de ancestrais do homem, o Australopithecus boisei e o Homo habilis, que viveram há 1,8 milhão de anos na atual Tanzânia, na África. Agregaram novas peças ao quebra-cabeça da evolução.

A polêmica de Johanson com os Leakey começou em 1974 com a descoberta do fóssil Lucy, na Etiópia, pelo americano. Após a datação, descobriu-se que ela havia vivido há 3,2 milhões de anos. Johanson afirmou que Lucy pertencia a uma nova espécie, a Australopithecus afarensis. Até aqui tudo bem, mas quando propôs uma nova teoria da evolução, estabelecendo seu achado como o ancestral humano mais antigo e sustentando que o Homo sapiens evoluíra a partir do afarensis, Richard pôs a boca no mundo.

Nessa altura de sua vida, Leakey já era mais famoso do que os pais por suas pesquisas na África. Ele foi o paleontólogo que mais descobriu fósseis humanos, entre eles o crânio completo de um Australopithecus boisei, no Lago Turkana, no Quênia, em 1969. Em artigos, conferências e entrevistas, o cientista passou ao ataque, desqualificando a hipótese do adversário. Em 1979, a discussão chegou à primeira página do jornal The New York Times, com Johanson advogando sua tese e Leakey defendendo a sua. Contudo, apesar da paixão, a polêmica nunca descambou para a baixaria. Jamais extrapolou os limites éticos de uma controvérsia entre cientistas civilizados.

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A divergência principal é que, para o inglês, as espécies de homens e chimpanzés se separaram ao mesmo tempo do tronco dos primatas, há 7 milhões de anos. Para Johanson, entretanto, os homens não são tão antigos, já que evoluíram do ramo do afarensis, uma mistura de homem com chimpanzé (veja as duas linhas de evolução no infográfico abaixo).

Dados novos

A polêmica não foi resolvida. Mas a datação genética usada para identificar fósseis sugere que a linhagem humana e a dos chimpanzés se separaram há mais de 5 milhões de anos, talvez até aos 7 milhões propostos por Richard. Contudo, como não há ossos dessa época, não se tem certeza. “Talvez nenhum dos dois tenha razão devido às últimas evidências”, diz o paleontólogo Reinaldo Bertini, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista, em Rio Claro.

Tais evidências surgiram a partir de 1994, quando a controvérsia parecia amainada. Um novo membro da família Leakey, Meave, mulher de Richard, descobriu, na Tanzânia, outra espécie, o Australopithecus anamensis, que viveu há 4,2 milhões de anos. Meses depois, o paleontólogo americano Tim White, ex-membro da equipe de Johanson, achou na Etiópia o Ardipithecus ramidus, de 4,4 milhões de anos. Com isso, não só as hipóteses de Leakey e de Johanson tiveram que ser repensadas: nossa árvore genealógica também, pois já não se sabe de qual ramo surgiu o homem.

Até agora, ignora-se a que linhagem pertencem as espécies descobertas por Meave Leakey e Tim White. Os novos fósseis, em vez de trazerem luz à disputa, tornaram-na muito mais complexa. “A discussão está em aberto”, diz o antropólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da Universidade de São Paulo. Com o que Bertini concorda. “Não há mais verdades absolutas na Paleontologia”, ressalta o pesquisador.

Para calcular áreas com curvas

Entenda o princípio do cálculo diferencial e integral

1. Imagine que você quer calcular a área de uma moeda cortando-a em quatro barras retangulares.

2. Somando a área das barras você estará longe de ter toda a área do círculo.

3. Note que sobra uma boa parte da moeda não preenchida pelas barras.

4. Corte agora mais barras dentro da moeda. Perceba que aumentando o número delas nos aproximamos cada vez mais da área total.

5. Ao retirarmos as barras, veja que sobraram só pequenas partes do círculo não preenchidas por elas.

6. Se você colocar infinitas barras acabará obtendo a área do círculo. Newton e Leibniz descobriram como somar infinitas parcelas. Com isso, calculam-se áreas com curvas.

Como o HIV foi isolado

Luc Montagnier descobriu o vírus da Aids em 1983.

O material pesquisado foi um glânglio de um paciente infectado com uma doença que atingia os homossexuais.

1. Montagnier separou do tecido contaminado vários linfócitos, as células de defesa.

2. Misturou linfócitos com proteína para se multiplicarem. Sabia que dentro deles havia um retrovírus, um vírus que se reproduz com material da célula que invade. Conheciam-se apenas dois retrovírus: um infectava camundongos e o outro, o HTLV, provocava um tipo raro de Leucemia. Ele desconfiava da existência de um terceiro.

3. A amostra foi misturada com manganês, fundamental para a replicação do vírus do camundongo. Nada aconteceu. Depois usou-se magnésio, indispensável para o HTLV. Resultado: ele proliferou.

4. O cientista, então, adicionou anticorpos ao HTLV. Se duelassem, tratava-se do mesmo vírus. Isso não aconteceu, confirmando que era um organismo novo: o HIV.

Duas teorias da evolução

Quando o homem se divorciou do chimpanzé?

Os palentólogos Richard Leakey e Donald Johanson estabeleceram linhagens genealógicas diferentes para a evolução da espécie humana.

Homo sp

Segundo Leakey o ancestral do homem surgiu há 7 milhões de anos. Mas seu fóssil nunca foi achado. Ele é identificado genéricamente como Homo sp.

Australopithecus afarensis

Johanson considera-o o primeiro homem. Período: 3,9 a 3 milhões de anos atrás. Altura: entre 1,07 e 1,52 metro. Crânio entre 375 e 550 centímetros cúbicos.

Australopithecus africanus

Período: 3 a 2 milhões de anos atrás. Altura: centímetros mais alto que o afarensis. Crânio entre 420 e 500 centímetros cúbicos.

Homo habilis

Período: 2,4 a 1,5 milhões de anos atrás. Altura média: 1,27 metro. Crânio entre 500 e 800 centímetros cúbicos. Usava ferramentas.

Homo erectus

Período: 1,8 milhões a 300 000 anos atrás. Altura: mais de 1,52 metro. Crânio de 750 a 1 225 centímetros cúbicos. Usava ferramentas e fogo.

Homo sapiens

Período: 120 000 anos atrás. Altura: até 1,80 metro. Crânio com 1 350 centímetros cúbicos. Fazia ferramentas, pinturas e instrumentos musicais.

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