Saiba o que a ciência já descobriu a respeito do Abraão histórico.
O primeiro dos patriarcas bíblicos mudou para sempre o pensamento religioso da humanidade ao introduzir a crença em um Deus único e onipresente.
Abraão é o primeiro dos patriarcas bíblicos, considerado pai biológico, adotivo e ético de todos os povos. Figura fundamental nas três grandes tradições monoteístas – judaísmo, cristianismo e Islã –, carrega em si a idéia primordial da paz: se todas as nações são irmãs entre si, filhas de um único pai, por que existe ainda tanta guerra?
Conta o Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, que Deus chamou Abraão e lhe disse: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome. Sê tu uma bênção”. Naquela época, Abraão era ainda Abrão, um homem de 75 anos de idade que vivia em Harã, importante centro comercial do mundo antigo e cidade da atual Turquia.
Mesmo sem garantias prévias da dupla promessa de terra e descendência, Abraão acreditou em Javé, o Deus único, invisível e onipresente. Partiu sem saber para onde ia. Não levava nas mãos qualquer contrato que garantisse a posse de um trecho de terra. E, embora sua esposa Sara fosse estéril, não duvidou, em momento algum, que teria uma posteridade mais numerosa que as estrelas do céu. Foi sua fé plena e irrestrita em Javé que deu origem à tradição religiosa monoteísta, que prega a existência e a adoração de um só Deus, algo inovador no mundo antigo.
Hoje é impossível conceber o mundo sem o monoteísmo (mesmo que você não partilhe dessa concepção) – e sem Abraão.
A ciência ainda busca pistas sobre a existência desse personagem. Atualmente, historiadores, arqueólogos e estudiosos dos textos bíblicos admitem que provavelmente um homem chamado Abraão tenha vivido na chamada era dos patriarcas, período histórico que remete à Idade do Bronze, entre 2000 a.C. e 1500 a.C.
Placas de argila encontradas em cidades próximas ao rio Eufrates, onde na Antiguidade se localizava a Mesopotâmia e hoje estão a Síria e o Iraque, indicam que os eventos da vida de Abraão, presentes no relato bíblico, podem ter realmente acontecido, mas não necessariamente protagonizados por um único homem.
O que hoje os especialistas afirmam é que um Abraão, chefe de um grupo seminômade, realmente existiu – talvez menos heróico e formidável que o Abraão bíblico, porém não menos importante para a história do seu povo. Assim como tantos outros chefes seminômades, o Abraão histórico deve ter deixado um legado fundamental para o seu clã.
Sua história, contada de pai para filho, acabou prevalecendo sobre as demais e incorporando elementos, alheios à saga original, de outros personagens também conhecidos pelos povos da época. Talvez historicamente não tenha existido um só Abraão, mas vários, que ajudaram a compor o Abraão bíblico. Bem-vindo à história da bem-sucedida jornada rumo à Terra Prometida e à descendência numerosa. Uma jornada que ainda não acabou – nem para os fiéis, nem para a ciência.
A religião de Abraão
São 14 capítulos do Gênesis dedicados a Abraão. Ao contrário de outros profetas e personagens do Antigo Testamento, cuja saga começa a ser narrada a partir do nascimento, Abraão estréia já adulto. No início do relato, ele vive com seu pai, Terá, seus irmãos e sua esposa, Sara, em Ur, uma das cidades mais importantes do mundo antigo, localizada ao sul do rio Eufrates.
Não tem filhos, porque Sara era estéril. Certo dia, Terá reúne Abraão, Sara e Ló, sobrinho do patriarca, e resolve seguir com a família para as terras de Canaã, que se estendiam do sudoeste da Síria até o Egito. Ao chegarem à cidade de Harã, depois de uma viagem longa e exaustiva, decidem ficar por lá mesmo. Terá morre. Abraão ouve pela primeira vez o chamado de Deus, que lhe promete terra e descendência. Sem pestanejar, ele deixa Harã e parte rumo à terra dos cananeus.
O relato bíblico narra o episódio como se Abraão fosse monoteísta desde sempre, segundo a concepção que temos hoje. No entanto, o Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, evoca passagens da vida do patriarca que não constam da Bíblia e que explicitam como se deu a adesão ao Deus único e o rompimento com a crença dos antepassados. Abraão (ou Ibrahim, como é chamado no Islã), ainda jovem, inicia seu itinerário religioso recusando a adoração dos astros.
Nega os deuses petrificados como estátuas e parte para uma verdadeira batalha de fé contra a idolatria dos seus antepassados, destruindo os ídolos locais e pregando a existência de um único Deus – como fez o profeta Maomé mais de 20 séculos depois, quando o Estado Árabe estava se constituindo. O povo condenou Abraão à fogueira e, milagrosamente, ele se salvou. “Por revelação divina, Abraão sabia que deveria divulgar o Deus único, o monoteísmo”, diz o xeque Ali Abdune, da Associação Mundial da Juventude Islâmica, em São Paulo.
“A aceitação dele ao chamado de Deus significou submissão total e voluntária à vontade divina. Abraão deixou tudo – por isso, se tornou o patriarca, o amigo de Deus.”
Narrativas semelhantes são encontradas em textos apócrifos, como o Apocalipse de Abraão, e em histórias da tradição oral judaica, compiladas no Talmude. Uma das passagens relata que tanto o nascimento do patriarca quanto sua luta pessoal contra os ídolos foram previstos por astrólogos, que logo avisaram o rei Nimrod. Este decidiu matar o menino assim que ele nascesse, mas Terá, o pai, o escondeu numa caverna. Abraão ficou no esconderijo durante alguns anos.
Ao sair, quando viu o Sol pela primeira vez, pensou consigo mesmo: “Deve ser este o Deus que criou o céu, a terra e a mim”. E rezou o dia inteiro ao sol. À tarde, ao ver o astro desaparecer, pensou: “Não é um Deus”. Avistou a Lua, à noite, e cogitou que talvez fosse ela a senhora do mundo. Durante a noite inteira, fez orações à Lua. Pela manhã, observou que ela havia sumido. Levantou as mãos ao céu e disse: “Não, não são esses os criadores do mundo. Só um Deus existe no céu, que reina sobre todos os outros.
A Ele orarei e perante Ele me curvarei”. Surgia, aos olhos da fé judaica, a concepção monoteísta.
Mas não para a ciência. Achados arqueológicos mostram que os povos da região do Crescente Fértil – como ficaram conhecidas as terras produtivas que se estendiam da antiga Mesopotâmia ao Egito – não acreditavam em um Deus único e soberano. No período patriarcal, que vai de 2000 a.C. a 1500 a.C., vigorava o politeísmo. Os seminômades, porém, eram henoteístas, ou seja, adoravam apenas uma divindade, mas admitiam a existência de outras. “Cada clã cultuava o seu próprio deus”, diz o pastor luterano Milton Schwantes, cientista da religião da Universidade Metodista de São Paulo. “A cultura seminômade não permitia uma diversidade grande de concepções de mundo.”
Segundo Milton, o politeísmo surge porque vários subgrupos, dentro de uma grande população, requisitam funções diferentes da divindade – deus da guerra, deus da colheita, deus do poço… Como a população do clã é pequena e homogênea, uma diferenciação como essa poderia pôr em risco o grupo social. “Daí a tendência a um só caminho religioso”, afirma Milton. “Mas isso não significa que exista um pensamento teórico monoteísta no mundo antigo. Existe, sim, um monoteísmo de adesão, em que cada grupo adere a um único deus.”
Abraão interpretado
Segundo o narrador do Gênesis, o Deus de Abraão é Javé (Iahweh, em hebraico). No entanto, os exegetas, como são chamados os estudiosos dos textos sagrados, reconhecem que se trata de um anacronismo, um acréscimo posterior feito ao relato. No período patriarcal, a denominação mais comum de Deus seria El, como comprovam achados arqueológicos da época. Para entender por que El (o Deus da vida) se tornou Javé (o Deus libertador), você precisa voltar no tempo e mais precisamente ao início da formação do povo de Israel, entre 1250 a.C. e 1000 a.C., quando os primeiros cinco livros da Bíblia, que também formam a Torá judaica, começaram a ser redigidos.
Até aquela época, as narrativas eram basicamente orais. Circulavam várias histórias sobre Abraão e os demais patriarcas. Aos poucos, esses relatos começaram a ser escritos, obviamente sofrendo influências literárias e ideológicas de acordo com o momento histórico que o povo vivia. A versão final do Gênesis e dos demais livros data de 400 a.C., mais de mil anos depois da época em que Abraão teria vivido. “Nesse período, houve um grande movimento para considerar o povo de Israel uma raça única e Javé, o Deus único. Era preciso consolidar a teocracia, e esse tipo de instituição exigia a existência de um Deus absoluto para justificar o poder do rei”, afirma o padre Shige Nakanose, biblista do Centro Bíblico Verbo, em São Paulo.
Até então, havia vários nomes para Deus e Javé era um deles. Referia-se a uma divindade masculina cultuada ao lado da deusa Aserá em um período posterior ao patriarcal. Javé era o Deus adorado pelos grupos que escaparam da escravidão e do exílio e que se juntaram ao incipiente povo de Israel. Assim, quando as últimas versões do Gênesis foram escritas, os redatores tentaram substituir referências às divindades da região de Canaã – como o nome El – por invocações a Iahweh.
Interferências como essa também moldaram a figura do Abraão bíblico. “Originalmente, existiam diversas tradições orais sobre os patriarcas. Eram narrativas curtas e independentes, que falavam do sacrifício de Isaac, da visita dos três estrangeiros à tenda de Abraão, da destruição de Sodoma e Gomorra e assim por diante”, diz o padre Shige. Essas narrativas tinham, inclusive, uma função pedagógica para o grupo e traziam mensagens intimamente relacionadas com o contexto da época. Pouco a pouco, tais memórias foram sendo reunidas e adaptadas conforme a intenção do redator. “Vários clãs contavam as histórias dos seus pais e fundadores. A história de Abraão foi a que prevaleceu e acabou absorvendo as demais”, afirma o biblista.
Por isso, ao longo do relato do Gênesis sobre o patriarca, existem versões de uma mesma história e vários anacronismos, como as passagens que citam o uso de camelos (esses animais só foram domesticados em torno de 1100 a.C.) ou mesmo as promessas divinas de terra e de descendência numerosa. “São promessas recentes no contexto bíblico, porque pressupõem um Estado. Para o chefe de um clã, a promessa de muita gente é um problema, já que ele pode alimentar uma quantidade restrita de bocas. E a necessidade de terra é muito mais agrícola que seminômade”, diz Milton Schwantes. “A promessa de um descendente faz parte da história de Abraão. Mas as outras, de posteridade e de terra, referem-se a um povo. Um país, para dar certo, precisa de terra e gente.”
O Abraão bíblico crê em Javé e mantém-se fiel a Ele, mas não consegue imaginar a concretização das promessas. Ele não tem filhos e sua esposa é estéril – como, então, sua descendência será tão numerosa quanto as estrelas do céu? Diversos povos já habitavam a Terra Prometida – como ele poderia possuí-la? Deus, então, sela duas alianças com o patriarca. A primeira, pela terra, envolve o sacrifício de animais. Abraão toma uma novilha, uma cabra e um carneiro e divide-os ao meio, colocando as metades umas diante das outras. Oferece também dois pássaros, sem dividi-los. “Eu dou esta terra aos teus descendentes, desde a torrente do Egito até o grande rio Eufrates”, diz o Senhor.
Mais tarde, Deus firma a segunda aliança, dessa vez pela descendência. E propõe a circuncisão de todos os homens do clã e de todos os meninos no oitavo dia a partir do nascimento. Até aquele momento, o nome do patriarca era Abrão, que significa “pai elevado” ou “pai erguido”. A partir daí, Deus o chama de Abraão, “pai de uma multidão”. Para simbolizar a dimensão do acordo entre ambos, Deus também muda o nome de Sarai para Sara. “Eu a abençoarei e dela te darei um filho. Eu a abençoarei e ela será a mãe de nações e dela sairão reis.” A promessa se realizou e Sara gerou Isaac.
A Era Patriarca
A dimensão religiosa das figuras de Abraão e de Sara é enorme – mas o que a ciência tem a dizer sobre “o pai de uma multidão” e “a mãe das nações”? “Existem achados arqueológicos que comprovam que existiu, sim, um período patriarcal no qual podem ter ocorrido todos os eventos que são descritos no Gênesis”, afirma a historiadora Ruth Leftel, da Universidade de São Paulo. “Nomes, costumes e normas de comportamento dos patriarcas do relato bíblico eram realmente aqueles. O que não foi comprovado é a existência física de Abraão, Isaac e Jacó, esposas e filhos como figuras históricas.”
Hoje se sabe que os patriarcas habitaram o lado ocidental da Mesopotâmia, a oeste do rio Eufrates, e partilharam o mundo material, cultural e ritual dos povos conhecidos como semitas ocidentais. As tabuinhas de argila encontradas em escavações na região referem-se a eles como amuru, que significa: “homens” (am) e “ocidente” (uru).
As descobertas esclarecem certos procedimentos presentes na história de Abraão. Na primeira aliança firmada com Deus, por exemplo, o patriarca matou alguns mamíferos e os cortou ao meio, colocando as metades uma na frente da outra. “Como na época não havia tabelião para reconhecer firma ou legitimar contratos, uma aliança entre dois chefes de tribo ou dois governantes de cidades precisava ser feita entre as metades de um burro para ter validade”, afirma Ruth. Os animais do relato bíblico são outros, porque na época da redação já existiam certas prescrições quanto aos animais, mas o costume é rigorosamente igual. Outro exemplo é a atitude de Sara. Como ela era estéril, cedeu uma de suas servas, chamada Agar, a Abraão para que ele garantisse a descendência. Nas tabuinhas de argila, a lei é bem clara: a mulher permanente ou temporariamente estéril era obrigada a escolher uma filha ou uma escrava para dormir com o marido e assim gerar descendentes.
Também os nomes que constam do Gênesis são idênticos àqueles atribuídos aos amuru, formados por um verbo e uma denominação de Deus, em geral El. “Os nomes dos patriarcas têm relação com a história e os atos da vida deles. Foram colocados posteriormente”, diz Ruth. Um exemplo é o nome do filho de Abraão com a escrava Agar, o primogênito Ismael. Vem de Ishma-El e significa “Deus ouve”, em referência à passagem em que Agar está no deserto, grávida, e Deus aparece e a ampara. Já o filho nascido da promessa divina é Ytzhak-El, na forma abreviada Isaac, que quer dizer “Deus ri”. Tanto Abraão quanto Sara riram, quando Deus lhes prometeu uma posteridade numerosa, porque ambos eram idosos e não imaginavam como poderiam gerar um filho.
Hoje se sabe que os patriarcas, assim como os amuru, viviam de fato em clãs seminômades e mantinham elos econômicos com as cidades – troca de produtos dos rebanhos pelos manufaturados. Apesar da relação comercial, as tabuinhas mostram que os amuru não podiam participar da vida das cidades nem ser considerados cidadãos de Canaã. Eles não tinham direitos e não podiam fixar-se numa cidade, a não ser que o governante fosse benevolente e permitisse que levantassem tenda por um tempo determinado. As leis eram claras: um cidadão livre, para ter direitos, precisa ser dono de terras e ser sedentário há gerações. “Isso explica por que os patriarcas não podiam se fixar e ficavam circulando durante todo o tempo”, diz Ruth Leftel.
Se as tabuinhas não podem garantir se algum Abraão se destacou entre os amuru, outros registros arqueológicos comprovam que a história do patriarca alcançou outros povos da Antiguidade. “A dúvida sobre a existência de Abraão é nossa, mas não dos antigos”, afirma o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Eles se relacionam com o passado de modo bastante diferente. A fé justifica tudo. Acreditam que Deus – ou os deuses – intervém em torno de determinadas figuras, transformando-as em heróis fundadores.”
Amuletos de uso mágico de origem desconhecida encontrados em escavações piratas estampam a figura de um jovem carregando um cutelo. Há uma criança e um altar. Uma mão sai do céu e aponta para um arbusto, onde está preso um cordeiro. Não há dúvidas: trata-se da passagem do sacrifício de Isaac, uma das mais marcantes do Gênesis, em que Deus põe Abraão à prova, pedindo que ele sacrifique o filho tão amado. Abraão obedece. No momento em que ergue o cutelo, Deus o interrompe e salva Isaac. Um carneiro, então, é oferecido em holocausto. Nas costas dos amuletos, um alfabeto semítico, provavelmente com palavras em hebraico e samaritano, sem significado aparente. “Se não há significado, são palavras mágicas. Só quem usava o amuleto as conhecia”, diz André.
Para ele, a existência desse tipo de material e a invocação do nome de Abraão em fórmulas mágicas são provas de que ele existiu. Além disso, o fato de estarem em hebraico demonstra que o uso é próprio de quem está inserido na narrativa e acredita nela. “Quem fez e quem usou o amuleto muito provavelmente é um judeu”, afirma ele. Referências a Abraão também aparecem em textos de magia escritos em papiros e usados para submeter demônios, unir namorados etc. Chamar pelo “Deus de Abraão, Isaac e Jacó” era uma prática bastante freqüente, o que revela a influência cotidiana dessas histórias.
O legado de Abraão
De acordo com a Bíblia, Abraão morreu aos 175 anos de idade e foi enterrado por seus filhos Ismael e Isaac onde estava o túmulo de Sara, nos arredores da cidade de Hebron. Seu legado espiritual independe da existência histórica. Para milhões de fiéis no mundo todo, basta o exemplo de fé e obediência do patriarca. “Abraão introduziu o revolucionário conceito de monoteísmo ético”, diz o rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista. “Ético porque acreditar em um único Deus exige assumir a igualdade entre todos os filhos dele. Todos os povos, portanto, são iguais. E, embora tenhamos um único Deus, Deus tem mais do que um único povo.”
Para o psicólogo Henry Abramovitch, da Universidade Tel Aviv, em Israel, a saga de Abraão foi uma verdadeira viagem em busca do autoconhecimento – que ainda se mantém como fonte de inspiração para muita gente. Abramovitch, cujo nome em russo significa “filho de Abraão”, escreveu o livro The First Father (“O Primeiro Pai”, ainda sem tradução em português), no qual traça um estudo psicológico sobre o patriarca.
“Ele tinha tudo e deixou esse tudo a fim de buscar um novo destino. As palavras do chamado divino, em hebreu Lech Lekha, podem ser lidas literalmente como ‘Vá para si mesmo’”, afirma o psicólogo. “Assim, ele se torna o protótipo da jornada ao conhecimento de si mesmo e da individualização.” Abraão não é um homem que simplesmente segue ordens. Pelo contrário, ele ensina como estar em contato com o self, o âmago de si mesmo.
Uma das passagens mais célebres da história do patriarca, o sacrifício de Isaac, inspirou o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard a refletir, na obra Temor e Tremor, sobre o que é a fé. O livro lançou as bases para uma nova teologia no século 20, voltada ao mesmo tempo para a transcendência e a ação no mundo. “Abraão acredita que deve obedecer a ordem divina e sacrificar seu filho, mas tem a certeza de que Deus não vai abandoná-lo”, diz o filósofo e cientista da religião Ricardo Quadros Gouvêa, da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.
Situação a princípio absurda, Kierkegaard parte daí para concluir que a fé vai além da capacidade da razão, não se resume à ética e aos valores universais e, especialmente, exige um engajamento no momento presente. “Abraão sabia que teria Isaac de volta. Demonstrou, ao mesmo tempo, desprendimento e compromisso”, afirma Ricardo.
Na mística islâmica, o patriarca representa um símbolo da busca pelo centro de si mesmo. Ele é o amigo íntimo de Deus, o jovem herói que destrói os ídolos internos e instaura a unidade de cada indivíduo. “A característica essencial de cada ser humano é a ligação com o sagrado. Você é um jeito de Deus aparecer – isso é monoteísmo, o um que está presente em cada pessoa”, diz a psicóloga Beatriz Machado, da USP, que pesquisa as obras do mestre sufi Ibn ‘Arabî.
Para os estudiosos da Cabala, a mística judaica, Abraão também apresenta aspectos simbólicos. “Ele está relacionado à expansão de fronteiras, à superação das próprias limitações e ao princípio de que tudo está relacionado com tudo”, afirma Roberto Natan, professor de meditação cabalística na Academia de Cabala Rav Meir, no Rio de Janeiro.
A unidade é um tema recorrente quando o assunto é Abraão. Primeiro, porque ele é considerado pai espiritual das três grandes tradições monoteístas. Depois, por deter, de acordo com o relato bíblico, a paternidade biológica de judeus, por meio do filho Isaac, e de árabes, pela linhagem do primogênito Ismael. A ciência vem agora corroborar essa tese.
Uma pesquisa, realizada em conjunto por cientistas de cinco países, entre eles Estados Unidos e Israel, mostrou que palestinos, sírios, libaneses e judeus têm forte parentesco genético entre si. O estudo, que comparou o DNA de 1 300 homens árabes e judeus de 30 países, revelou também que esses povos possuem um ancestral comum, possivelmente os semitas ocidentais, que teriam habitado o Oriente Médio há pelo menos 4 mil anos. Seriam todos eles descendentes do mesmo patriarca?
Enquanto os cientistas ainda não têm a resposta para tal pergunta, judeus, cristãos e muçulmanos continuam a buscar cada qual o “seu” próprio Abraão. Em cada crença, um aspecto do patriarca é ressaltado. “Abraão pode ser comparado a um moderno meio de comunicação que apresenta diferentes mensagens, de acordo com os paradigmas de cada religião e cultura”, afirma Reuven Firestone, especialista em judaísmo e Islã do Hebrew Union College, nos Estados Unidos.
“Mas ele pode ser também a ponte entre as três tradições. Afinal, Abraão é um legado de todos.” Firestone lembra o capítulo 18 do Gênesis. O patriarca está diante de sua tenda, descansando, quando percebe a chegada de três homens. Hospitaleiro, recebe-os com distinção. Não pergunta quem são nem se têm dinheiro. Simplesmente lhes oferece pão, leite, manteiga e um novilho preparado na hora. “Eis uma herança de Abraão: o exemplo de acolhida e hospitalidade”, diz Firestone. Que todos os filhos sejam bem-vindos na grande tenda do patriarca.
Mulheres de Abraão
O que seria de Abraão se não fossem Sara, a esposa, e Agar, a escrava? Figuras fundamentais na saga do patriarca, elas protagonizam alguns dos mais importantes capítulos do Gênesis. “O que movimenta o texto bíblico e as promessas são os filhos”, diz a pastora metodista Nancy Cardoso Pereira, teóloga especialista em Bíblia Hebraica.
As memórias femininas, no entanto, são contidas pela tradição patriarcal. Abraão mente a respeito de Sara, dizendo que ela é sua irmã, em duas versões da mesma história. Quer salvar a própria pele. Muito bonita, Sara chama a atenção do faraó e, em outra ocasião, do rei Abimelec, que a tomam como concubina. Deus, porém, os castiga. Eles descobrem a farsa e repreendem Abraão. Sara não diz uma palavra – não argumenta nem lamenta.
As duas mulheres se confrontam quando o assunto é o primogênito de Abraão. Seguindo um costume comum no período patriarcal, a estéril Sara cede uma das servas ao marido para que a descendência se garanta. Agar engravida e, segundo o relato bíblico, passa a esnobar a sua senhora. Por causa disso, Sara se ressente e castiga a escrava, expulsando-a do clã. Agar foge, então, para o deserto.
Num dos mais belos trechos do Gênesis, Deus surge a Agar próximo a um poço, no meio do deserto, e pede que ela volte para casa. (O “Deus do poço” é uma imagem bastante recorrente na religiosidade do período patriarcal.) Também a ela Deus promete: “Multiplicarei tua descendência de tal forma e será tão numerosa que não se poderá contar”. Isso acontecerá por meio de Ismael, filho que ela carrega no ventre. Agradecida, Agar nomeia o Deus que conversou com ela de El-roí, o “Deus que me vê”.
“É possível que a esterilidade de Sara e de outras mulheres do período esteja relacionada a uma tradição mesopotâmica das sacerdotisas, que não engravidavam para se dedicar ao culto da divindade”, diz Nancy. “Para contar essa história, não mais no contexto da autonomia religiosa daquelas mulheres, o registro narrativo as apresenta como estéreis.”
Filhos de Abraão
Segundo o Gênesis, Ismael, o filho de Agar e Abraão, deu origem aos povos árabes. O profeta Mohammad, ou Maomé, teria vindo dessa linhagem. Para os muçulmanos, o itinerário de Abraão vai além das terras de Canaã e do Egito. “Abraão passou pela Palestina, pela Arábia Saudita e por Meca, onde teve de deixar sua segunda esposa, Agar, e Ismael”, afirma o xeque Ali Abdune. “Segundo as escrituras sagradas, separar-se do filho primogênito foi um teste que Abraão teve de passar.”
Agar foi expulsa duas vezes por Sara – a segunda vez por um motivo que o texto bíblico não esclarece direito. Diz o Gênesis que Ismael brincava com o irmão Isaac. Sara, ao ver a cena, temeu pela herança do seu próprio filho e pediu a Abraão que expulsasse a escrava e Ismael (que aparece no texto ora como um adolescente, ora como uma criança). Ambos foram parar no deserto. A água acabou e Agar, desesperada, começou a chorar. Deus, então, apareceu e disse: “Não temas, pois Deus ouviu os gritos do menino do lugar onde ele está. Ergue-te! Levanta a criança, segura-a firmemente porque eu farei dela uma grande nação”.
Para o mundo judaico-cristão, o filho da promessa de descendência numerosa é Isaac. Foi ele que Abraão quase sacrificou na colina de Moriá, local que a tradição encarregou-se de associar ao monte em que se edificou o Templo de Jerusalém. De Isaac, o segundo patriarca, se originou o povo de Israel. Para o Islã, porém, Deus testa de maneira semelhante a fé de Abraão, mas o nome do filho e o lugar não são mencionados. Numa passagem do Alcorão, o patriarca diz: “Ó filho meu, sonhei que te oferecia em sacrifício”. Quando Abraão demonstra que vai se submeter à ordem divina, outro filho lhe é prometido, Isaac. Por isso, a maioria dos muçulmanos acredita que Ismael foi o menino quase oferecido em holocausto.