Nas águas da Amazônia
O oceanógrafo francês levou dois anos para fazer um megalevantamento da vida na floresta
Luiz Carlos Marin
Realizar uma expedição pelo rio Amazonas era uma idéia antiga de Jacques-Yves Cousteau. Em suas pesquisas marinhas, o explorador francês percebeu que a saúde da vida oceânica estava ameaçada pelas águas de origem continental. Depósito final das correntes fluviais, o mar havia se transformado em receptáculo de poluentes humanos e industriais. Para investigar o tamanho do estrago, ele começou a mergulhar também nos principais rios e lagos da Terra. Esteve no Nilo (Egito) e no São Lourenço (Canadá) antes de chegar ao maior rio do mundo, no dia 29 de maio de 1982. Na época, sabia-se muito pouco sobre a Amazônia, mas o oceanógrafo já vislumbrava o que estava por vir. “Hoje, o mundo está preocupado com a guerra nuclear, mas essa ameaça vai desaparecer. A guerra do futuro será entre os que defendem a natureza e os que a destroem. E a Amazônia vai ficar no olho do furacão. Cientistas, políticos e artistas desembarcarão aqui para ver o que está sendo feito com a floresta. ”Foi uma das missões mais ambiciosas da equipe de Cousteau. Meses e meses de atividades administrativas e de pesquisa só para conseguir o dinheiro e as autorizações oficiais dos diversos países visitados. Em seguida, um cuidadoso planejamento dos equipamentos necessários para garantir a navegação nos rios – como instalações portuárias, disponibilidade de combustíveis, freqüências de rádio, locações para filmagens, situação das estradas e muito mais.
Três percursos
A expedição foi dividida em três equipes. A primeira, comandada pelo próprio Jacques Cousteau, percorreu o Amazonas e seus principais afluentes até Iquitos, na fronteira do Brasil com o Peru. A segunda, liderada pelo filho de Cousteau, Jean Michel, tinha mais sete integrantes e viajou por terra de Lima até os Andes em busca da nascente do rio, em picos onde helicópteros até poderiam pousar, mas não conseguiriam alçar vôo novamente devido ao ar rarefeito. O próximo passo era acompanhar o Apurimac, principal ramo fluvial andino do Amazonas. O terceiro grupo seguiu por terra e por ar com a missão de descobrir os limites da Amazônia, conhecer o Pantanal e encontrar caçadores de ouro.
Além de um enorme contingente de apoio (cozinheiros, camareiros, taifeiros, mergulhadores, pilotos, motoristas, fotógrafos, cinegrafistas, pesquisadores e guias locais, é claro), os exploradores precisaram de diversos tipos de veículos e equipamentos para cobrir tamanha vastidão (veja no mapa ao lado o percurso da expedição): o principal era o Calypso, embarcação adquirida por Cousteau em 1950. A bordo, o helicóptero Félix, a lancha Charland e botes infláveis. Havia também um hidravião, o Papagallo, e duas embarcações recém-adquiridas: um hovercraft francês com capacidade para nove passageiros e 700 quilos de carga, que, deslizando sobre um colchão de ar com velocidade de 35 nós, era ideal para adentrar rios, pântanos e terrenos abertos; e o amazonense Anaconda, que dispunha de beliches para 12 pessoas e ficou o tempo todo ao lado do Calypso, como um dormitório flutuante. A equipe terrestre dispunha de um jipe e um helicóptero, mas se deslocava quase todo o tempo no Amarillo, caminhão de fabricação italiana com tração nas seis rodas, que puxava um contêiner com 5 toneladas de equipamentos.
Até chegar ao Brasil, a equipe de Cousteau havia realizado 52 expedições oceânicas em 32 anos. Já se acostumara aos sinais de risco, como um tubarão nadando em círculos ou os ventos que prenunciam as tempestades. Na Amazônia, quase tudo era novidade. Rapidamente, os exploradores perceberam que os dois maiores perigos eram as tempestades repentinas (numa das regiões do mundo em que mais chove) e os rios sinuosos, com seus troncos submersos, bancos de areia mutáveis e uma vegetação aquática muito densa, que poderia se enroscar nas hélices dos barcos. Além disso, as distâncias colossais entre os pontos que precisavam ser visitados deixavam o helicóptero Félix e o hidravião Papagallo muito afastados da base, no Calypso.
No lado andino, o desafio era superar atoleiros, penhascos, corredeiras entre rochas e tribos indígenas às vezes pouco amigáveis – além do soroche, a doença das alturas, que provoca dor de cabeça, desidratação, falta de fôlego e pode levar à inconsciência. Comida? Muitas vezes, só havia cápsulas de astronauta, barras de chocolate e aspirina. Ao final, o grupo percorreu 6400 quilômetros até chegar a Manaus e se encontrar com a equipe fluvial, para brindar e comemorar. Só um mês depois entraria em cena a terceira equipe, liderada pelo mergulhador Raymond Coll, companheiro de Cousteau desde a primeira expedição arqueológica submarina, três décadas antes. O trajeto: 11 mil quilômetros por terra com o Amarillo e um caminhão anfíbio chamado Jacaré (veja o infográfico da página 42).
Dois anos depois de iniciada, a expedição chegou ao fim, com um levantamento minucioso sobre a composição da água do Amazonas e seus afluentes, um enorme acervo fotográfico das espécies animais e incontáveis histórias da vida na região – como a devastação provocada pela ação do homem e a forte influência do mercado de drogas. Foi assim que descobrimos que o Amazonas e seus mais de mil afluentes despejam no mar 900 milhões de toneladas de sedimentos a cada ano – é o mesmo que cada habitante do planeta jogar 150 quilos de terra no mar. A expedição revelou ainda que vivem na Amazônia mais espécies de peixes do que em todo o Oceano Atlântico e que a maior floresta do mundo é provavelmente a mais antiga formação vegetal da Terra, hábitat da mais exótica vida animal terrestre: aranhas, formigas, roedores, papagaios, cobras, morcegos e macacos, tudo ali é maior do que em qualquer outro lugar. Jacques Cousteau, que ensinara gerações a preservar o meio ambiente marinho, mostrou que essa imensa região, que se estende por nove países da América do Sul, ainda era um dos últimos refúgios onde a vida permanecia tão selvagem.
Na terra, no ar e na água
Os fabulosos veículos e instrumentos da expedição
Félix
O helicóptero Félix levanta vôo de sua plataforma, na popa do Calypso, para mais uma excursão de reconhecimento aéreo pela floresta. Foi com ele que a equipe conseguiu as melhores imagens do encontro do rio Amazonas com as águas do mar
Calypso
Veículo-base da missão, o Calypso era um superbarco. Dispunha de guindaste hidráulico, laboratório fotográfico, câmera para observação subaquática, laboratório de ciências, compartimento de mergulho e sala de comunicação ultramoderna
Papagallo
Como o Félix, o hidravião Papagallo servia para missões de reconhecimento. Era usado principalmente quando se precisava cobrir grandes distâncias, como no dia em que a equipe sobrevoou a garganta do rio Apurimac, nos Andes
Jacaré
O caminhão anfíbio Jacaré foi fundamental na viagem ao Pantanal, permitindo que os exploradores subissem o rio Xingu para chegar à tribo dos txucarramães. Ali, eles ficaram cinco dias filmando os costumes tradicionais e a adaptação dos índios ao mundo exterior
Mergulho
Feito de neoprene fino, o traje de mergulho protegia da água fria sem sufocar no calor tropical. Tanques de ar duplos garantiam mais autonomia para os mergulhadores fotografarem e filmar com suas câmeras especiais a densa vida do rio Amazonas
Mestre dos mares
Cousteau revelou a vida subaquática
Oceanógrafo, mergulhador, cineasta e inventor, Jacques-Yves Cousteau nasceu em 11 de junho de 1910. Graduado pela academia naval da França, chegou a capitão-de-corveta. Pretendia seguir carreira na Marinha, mas suas aspirações foram interrompidas por um acidente de carro, em que quebrou os dois braços. Apaixonou-se pelo mergulho e, junto com o engenheiro Émile Cagnan, desenvolveu o aqualung. O cilindro portátil de ar comprimido regulado por uma válvula, também conhecido como scuba (sigla para self-contained underwater breathing apparatus ou aparelho autocontido de respiração subaquática), comercializado desde 1946, aposentou os escafandros e foi fundamental para as explorações petrolíferas submarinas e a pesquisa da vida marinha e fluvial. Cousteau criou também a câmera de TV submarina e dispositivos bastante simples que permitiam fotografar embaixo da água. Durante a Segunda Guerra, serviu como oficial de armas na França e foi membro da Resistência aos nazistas, o que lhe rendeu uma condecoração com a Legião de Honra. Terminado o conflito, fundou o Grupo de Pesquisas Submarinas da Marinha francesa. Foi um importante ecologista e produziu inúmeros livros, filmes e programas de televisão veiculados no mundo todo, como a série O Mundo Submarino de Jacques Cousteau e o filme O Mundo do Silêncio (1955), co-dirigido pelo cineasta Louis Malle, que ganhou o Oscar e a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Morreu em 1997, antes da publicação de seu último livro, Man, the Octopus, and the Orchid.