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Pescador: Vida dura, mas digna

O vilarejo de pescadores que ousou ser diferente e briga há 25 anos pela propriedade de seu destino

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h03 - Publicado em 30 jun 2004, 22h00

Denis Russo Burgierman, da Prainha do Canto Verde (CE)

Quando uma jangada sai para o mar, leva um saco de areia como lastro. Foi esse saco que eu usei de travesseiro, quando o enjôo me derrubou. O corpo eu joguei sobre as tábuas, encolhido, sob o sol ardido. Às vezes uma onda grande lavava o barco e me encharcava – e eu agarrava uma corda para me manter a bordo. Comandados por Pilé, 59 anos, três jovens andavam de um lado para o outro desviando de mim, molhando as velas, fazendo contrapeso. E colocando cabeças de bagre nas armadilhas de bambu, como isca para lagostas. Cabeças de bagre. Lá ia eu, de novo, vomitar.

Vida de pescador é difícil. Veja o Cristiano (ou Tiano), que pesca há quatro anos. Pesca longa, de quatro dias, não só 13 horas como a que acompanhei (saímos às 4 da manhã, voltamos às 5 da tarde). Todas as vezes que vai ao mar ele vomita por dois dias seguidos. O Tiano é cozinheiro – dos bons, provei sua moqueca. Podia trabalhar num restaurante. Mas continua pescando. “Se eu gosto? Claro que não. Mas fazer o quê?”, diz. Como fazer o quê? Por que não vai embora para um dos balneários da região, Canoa Quebrada, Morro Branco, onde há turistas, hotéis, restaurantes, empregos? “Porque aqui na Prainha todo mundo se conhece e se ajuda, ninguém passa fome, não tem crime. Se alguém precisa, outro leva um peixe, sem dizer nada”, diz Tiano.

Para resumir, os projetos em curso na Prainha do Canto Verde, a 120 quilômetros de Fortaleza, existem para que esses laços comunitários não se desfaçam. E para que as pessoas continuem levando dignamente a vida dura de pescador.

Quase todo o litoral do Ceará foi grilado nos anos 70 por gente que chegou se dizendo dona de tudo e subornando cartórios. Os grileiros venderam as terras para empreendimentos turísticos e os nativos foram expulsos da praia. Com isso, a pesca artesanal foi acabando. Sem peixe, os locais não tinham mais o que comer – e o turismo fez os preços explodirem. As opções: ir embora ou arrumar um trabalho subalterno, deixando de ser donos do lugar para serem só pobres – ou, às vezes, ladrões, traficantes, prostitutas…

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A Prainha escapou por um triz desse destino. Em 1979, um sujeito comprou terras longe da praia e “convenceu” o cartório a registrar que elas iam até o mar, incluindo o vilarejo. Foi aí seu erro: o “até o mar”. A beira da praia pertence à União. Por isso, o caso foi parar em tribunais federais, mais difíceis de subornar. E, ajudada pela lentidão da Justiça, a comunidade teve tempo de se organizar. Criou-se uma associação de moradores, que ganhou o apoio de ONGs e patrocinadores, muitos deles europeus atraídos por René Schärer, um suíço que se mudou para a Prainha. Organizados e com algum dinheiro, os nativos viram a chance de brigar não só pela terra, mas por muitas outras coisas.

Primeiro compraram um carro e um freezer para vender lagosta direto ao exportador, dispensando o atravessador – e o preço dobrou. Hoje um pescador fatura 65 reais por quilo, o que permite uma vida decente.

Outra luta ganha foi pela educação. Graças ao apoio da Fundação Abrinq, a escola, antes uma tragédia, virou modelo. A história, a biologia e os problemas do vilarejo passaram a ser ensinados. “Isso aumentou a auto-estima e a consciência das crianças”, afirma a professora Marlene Fernandes. “Antes, todo mundo era tímido. Hoje vejo crianças de 7 anos pegando o microfone e falando em público. Imagine os líderes que eles serão aos 20”, diz.

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E o vilarejo criou comunitariamente sua alternativa ao turismo – não para substituir a pesca, mas para complementá-la. Se, em outras praias, há restaurantes e hotéis chiques, lá os nativos recebem em pousadas simples e servem comida caseira. Mas são proprietários.

A Prainha não é o paraíso. Os nativos não são ricos, a vida não é fácil, a pesca não anda boa, ainda mais com a injusta e ilegal competição de pescadores predatórios. Mas as pessoas, pelo menos, ainda são donas dos seus destinos. E parecem bem felizes. Era nisso que eu pensava enquanto voltávamos da pescaria, o Pilé e os três garotos cantando e comendo o pirão de cabeças de lagosta cozido a bordo. O Pilé me ofereceu uma colherada. Levantei a cabeça do saco de areia. E vomitei outra vez.

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Como ajudar

Visite a Prainha. Não espere luxo, mas você vai ser muitíssimo bem acolhido – e gastará pouco. Combine a viagem com o Lindomar, telefone (88) 413-1164.

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