Existiu mesmo um bebê-diabo em São Bernardo do Campo (SP)?
A notícia do nascimento do anticristo fez a circulação diária do jornal Notícias Populares saltar de 70 mil para 150 mil. Mas... era verdade?
1) Em 11 de maio de 1975, o jornal Notícias Populares anunciava na capa, em letras garrafais: “Nasceu o diabo em São Paulo”. A notícia dizia que, em um hospital de São Bernardo do Campo, cidade do ABC Paulista, ocorrera um “parto incrivelmente fantástico e cheio de mistérios”, marcado por “correria e pânico por parte de enfermeiras e médicos”.
2) Segundo a publicação, o bebê tinha “aparência sobrenatural, com todas as características do diabo, em carne e osso”, e já nasceu falando, ameaçando a própria mãe de morte. A criança possuía o corpo cheio de pêlos, dois chifres pontiagudos, um rabo de aproximadamente 5 cm e o olhar feroz, “que causa medo e arrepios”.
3) Nenhuma outra publicação noticiou a história. Melhor para o NP, que viu a edição se esgotar rapidamente. Nas 2 mil bancas que vendiam o jornal em São Paulo, sobraram só oito exemplares. Apesar do sucesso, o editor-chefe, Ebrahim Ramadan, relutou em seguir com o caso, mas a direção mandou a redação continuar. Até 8 de junho, foram feitas 27 reportagens.
4) Por que o bebê nasceu assim? O NP deu duas explicações. Primeiro, porque, convidada para uma procissão na Semana Santa, a mãe teria batido na barriga e afirmado: “Não vou enquanto esse diabo não nascer”. Segundo porque, de acordo com um suposto médico, ela teria criado “descargas magnéticas negativas” ao desabafar: “Por causa desse diabinho, não posso ir dançar”. Já o pai da criança seria um discreto fazendeiro de Marília (SP) que, segundo vizinhos, “não tirava o chapéu por nada nesse mundo”…
5) O público ficou histérico – e acabava virando notícia também. A operária Maria Aparecida, por exemplo, foi para a maternidade, exigindo: “Que isso aconteceu, aconteceu. Então, por que não o mostram?” A doméstica Prudência Antônia Pereira garantiu ter visto a criança: “Quando não entendiam seus desejos, ele rosnava como cachorro. Depois, limpava as unhas com o próprio rabo”.
6) A edição de 12 de maio contou que o bebê-diabo ameaçou funcionárias de morte, rasgou travesseiros com os chifres e fugiu do hospital, saltando de uma janela no 3º andar. Nos dias seguintes, várias maldades do capetinha foram relatadas: ele andou por telhados, enlouqueceu uma mulher, acabou com um ritual umbandista e assustou um taxista, pedindo que o levasse “para o inferno”.
7) Apesar disso, o recém-nascido não teve vida fácil. Feiticeiros, fanáticos religiosos e até o Zé do Caixão se dispuseram a acabar com ele. Uma clínica particular se ofereceu para exibi-lo ao público curioso – desde que o visitante fosse maior de 18 anos, usasse um crucifixo, não tivesse problemas cardíacos e se reponsabilizasse por possíveis “possessões demoníacas”.
8) Com o decorrer dos dias, a história foi esfriando e ganhando cada vez menos destaque no jornal. No começo de junho, foi noticiado que o bebê-diabo havia fugido para o Nordeste, após ter sido sequestrado por pessoas dispostas a queimá-lo vivo. O NP ainda tentou emplacar mais dois diabinhos, de outras cidades, um “bebê-peixe” e um “bebê atômico”, mas sem sucesso.
Por outro lado…
Jornal era famoso por bolar notícias sensacionalistas
– Em maio de 1975, o repórter Marco Antônio Montadon, da Folha de S.Paulo, foi ao ABC confirmar o relato de que havia nascido uma criança com “duas saliências na testa” (chifres) e “prolongamento no cóccix” (rabo). Mas eram apenas más formações, que foram corrigidas com uma breve cirurgia.
– Montadon transformou a história numa crônica (fictícia) de terror, na Folha. O secretário de redação do NP, José Luiz Proença, e o editor de polícia, Lázaro Campos Borges, convocaram um repórter para “repaginar” esse texto e transformá-lo na notícia do nascimento do bebê-diabo.
– Consultado pela ME, o ortopedista Gustavo Borgo, do Hospital Israelita Albert Einstein, disse jamais ter visto relatos médicos de cauda em crianças. Segundo ele, possivelmente o “bebê-diabo” tinha um defeito congênito comum, chamado mielomeningocele, que prejudica o fechamento da coluna do recém-nascido. É resolvido com uma cirurgia logo após o parto.
– O NP foi hábil em procurar fontes oficiais (como médicos e diretores do hospital), mas usar a negativa deles de modo que gerasse ainda mais suspeita no público.
– A história também não é original. Poucos anos antes, O Bebê de Rosemary (1969) causou pânico parecido no Brasil e no resto do mundo. Outro filme recente na época que também causou polêmica foi O Exorcista (1974).
– O público do NP era composto de pessoas mais simples, com maior tendência a se apegar a crendices sobrenaturais. Meses antes, o próprio jornal já havia soltado matérias sobre a “loira fantasma” e o “vampiro de Osasco”, por exemplo.
FONTES Livro Espreme Que Sai Sangue: Um Estudo do Sensacionalismo na Imprensa, de Danilo Angrimani, e Nada Mais Que a Verdade: A Extraordinária História do Jornal Notícias Populares, de Celso de Campos Jr., Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Maik Rene Lima; documentário Nasceu o Bebê-Diabo em São Paulo, de Renata Druck; e site Folha de S.Paulo
CONSULTORIA Gustavo Borgo, ortopedista do Hospital Israelita Albert Einstein e do Hospital Samaritano