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A aids está vencendo

Nos últimos anos, o HIV derrotou médicos em quase todos os campos de batalha. Mas a ciência tem nova estratégia: mudar o mundo

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 15 jan 2011, 22h00

Rafael Kenski

Em outubro de 1996, a SUPER chegou às bancas com a capa “Aids: A 1% da Cura”. As 3 classes de remédios então existentes eliminavam 99% dos vírus no corpo humano e parecíamos perto da possibilidade de transformar o HIV em algo tão incômodo quanto uma gripe. De lá para cá, os avanços foram notáveis. Descobrimos duas novas classes de remédios. Testamos vacinas extremamente promissoras. Aumentamos em cerca de 33 vezes os gastos com a doença. Fizemos campanhas de prevenção. E vimos a doença se fortalecer, infectar mais gente e se espalhar pelo planeta. O vírus pulou de cerca de 20 milhões para 33 milhões de pessoas e empobreceu países inteiros. E boa parte do enorme avanço científico nos ajudou a ver como essa será uma guerra difícil: passaram-se 12 anos e continuamos a 1% da cura.

“Essa epidemia sempre trouxe novas surpresas”, disse o belga Peter Piot, que em janeiro deixa a direção do Unaids, programa das Nações Unidas, em uma conferência em agosto, na Cidade do México. Estavam lá mais de 25 mil participantes, médicos e ativistas de todo o mundo. Mas nenhuma tecnologia revolucionária. O clima era, entretanto, de otimismo. Em parte, por causa de algumas boas notícias: segundo a Unaids, a taxa de mortes está diminuindo e teria tido seu pico em 2005, com 2,2 milhões por ano. E, em parte, por causa de novas abordagens, mais focadas no longo prazo do que na solução imediata. “Não podemos nos enganar com a promessa de uma solução tecnológica para a pandemia, porque nenhuma aparecerá no futuro próximo”, escreveu um grupo internacional de médicos no periódico médico britânico Lancet.

O avanço em conhecimento científico que tivemos foi extraordinário. Utilizando bem as tecnologias que já dominamos, imagina-se que seja possível controlar o crescimento da doença. “Nós estamos há 25 anos em um esforço para acabar com algo que é muito fácil de prevenir”, diz Stefano Bertozzi, do Instituto Nacional de Saúde Pública do México. O problema é que isso requer pesquisas em vários campos e, de um modo geral, transformar a sociedade. Mas, na complexa rede que une todas as estratégias de combate à aids, mudar comportamentos pode ser muito mais difícil do que manipular anticorpos.

A busca da cura

Até hoje, todas as epidemias vencidas pela medicina foram derrotadas com a mesma arma: vacinas. O problema é que, até agora, tudo o que sabemos sobre vacinas falhou diante do HIV. Nas primeiras décadas de estudos, tentou-se adaptar à aids a estratégia usada contra a varíola ou a pólio: usar partes ou versões ate nuadas do vírus para ensinar o organismo a combatê-lo. Até hoje, não deu certo. A segunda abordagem foi estimular o sistema imunológico a atacar não o vírus, mas as células infectadas por ele. Com essa abordagem, a companhia farmacêutica Merck desenvolveu uma promissora vacina e a testou em 3 800 pessoas a partir de 2004. No ano passado, divulgou que o produto não só era ineficaz como, em alguns casos, aumentava a o risco de a pessoa contrair o HIV. Foi um enorme baque para os cientistas. As farmacêuticas diminuíram seu interesse pelo assunto, o dinheiro minguou e os médicos ficaram sem rumo: começaram a discutir se deveríamos melhorar as estratégias atuais ou partir para abordagens totalmente novas. Enquanto isso, em outra frente, os resultados eram mais desalentadores ainda: a dos microbicidas, substâncias colocadas na vagina que impediriam a entrada do HIV no corpo. “Em uma área onde a maioria das técnicas de prevenção depende do homem, essa seria uma das poucas a proteger as mulheres”, afirma Zeda Rosenberg, presidenta da Parceria Internacional para Microbicidas. Só que 3 testes não se mostraram eficazes e, em estudos com macacos, descobriu-se que os microbicidas podem até selecionar vírus mais resistentes. A nova geração, já em estudo, só deve estar disponível em meados da próxima década. Resultado: não espere técnicas ou abordagens milagrosas de prevenção em poucos anos. E, mesmo quando elas aparecerem, é provável que não sejam 100% eficazes.

Com tantos tropeços científicos, sobrou apenas uma nova (e pouco tecnológica) ferramenta para ser usada imediatamente: a circuncisão. Estudos realizados em 2007 na África mostraram que homens circuncidados diminuem em 65% o risco de ser infectados – um sucesso tão grande que a experiência que demonstrou essa relação foi interrompida porque seria antiético não oferecer circuncisão a todos os participantes. O princípio é o de que a parte de baixo do prepúcio possui células que se ligam mais facilmente ao vírus, facilitando a infecção. É quase uma vacina, mas que só pode ser aplicada em homens e que talvez seja drástica demais para regiões onde a doença não é tão prevalente.

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Restaram, então, os remédios. Que não previnem a aids, mas permitem o controle da infecção depois que o HIV já está instalado. A combinação das 5 classes existentes até hoje – a última delas, aprovada para comércio no começo de 2008 – permite reduzir bastante a quantidade de vírus no organismo, em alguns casos a níveis tão baixos que os médicos nem sequer conseguem detectar no sangue ou no sêmen do paciente. O HIV ainda permanece escondido no organismo e pode voltar a infectá-lo, mas, enquanto ninguém tem esperança de eliminá-lo, é o mais perto que se pode chegar de uma cura. “Você não cura diabetes, mas você a controla bem. Agora, em 2008, podemos dizer o mesmo para o HIV. Muitas pessoas infectadas hoje levam vida essencialmente normal”, diz Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA.

Existe, entretanto, o risco de que esse coquetel de remédios deixe de funcionar. O HIV é um vírus extremamente mutante, que passa por 180 gerações ao longo de um ano e é capaz de produzir rapidamente linhagens resistentes aos remédios usados para combatê-lo. A estratégia dos médicos é contra-atacar em várias frentes ao mesmo tempo – daí a necessidade de um coquetel de remédios – e reservar alguns para casos especiais, resistentes a todos os outros. Por isso, se quisermos ao menos manter a disputa empatada, precisamos sempre produzir novas terapias. Mas aumentar a força dos remédios pode ser um problema, porque ainda não sabemos os efeitos a longo prazo no organismo de uma guerra entre vírus e remédios fortíssimos. “O índice de infartos entre pessoas com HIV é 10 vezes maior do que na média da população”, afirma Mauro Schechter, da UFRJ. Ele foi um dos autores de um estudo publicado no começo do ano que constatou o aumento no Brasil de mortes de soropositivos por motivos não relacionadas à doença, como males cardiovasculares e diabetes. “O que isso sugere é que o combate à aids precisa lidar com questões muito mais amplas do que só oferecer tratamento contra o HIV”, diz Mauro.

Além de tratar pessoas infectadas, os remédios podem funcionar como prevenção. Eles permitem reduzir a menos de 2% o risco de que mulheres grávidas com aids transmitam a doença aos filhos. E reduzem drasticamente o número de vírus circulando em uma população, o que, em teoria, deve enfraquecer a epidemia. Há até quem sugira administrá-los a pessoas não infectadas, e assim diminuir os riscos de contágio – ainda que não exista uma demonstração da eficácia disso. Apesar de promissores, não podemos ter muita esperança de que serão os remédios que irão parar a epidemia. Hoje, para cada pessoa em terapia, 2,5 novos infectados aparecem, e ainda não se sabe se será viável oferecer tratamento a todos se a epidemia continuar se fortalecendo.


Mudar o mundo

“Nós deveríamos estar ganhando na prevenção contra o HIV” é a primeira frase de um relatório de 2007 do Grupo Global de Prevenção ao HIV, uma reunião de 50 dentre os nomes mais proeminentes no campo. Afinal, todos os 2,5 milhões de infecções ocorridas no ano passado poderiam ter sido evitadas com técnicas simples – e sabemos que boas campanhas de prevenção funcionam. Em 1996, o Brasil fez história ao oferecer acesso gratuito a tratamento para todos os portadores de HIV, distribuição de camisinhas e campanhas agressivas de prevenção. O resultado foi que, no começo desta década, a epidemia no país havia atingido só metade das pessoas que previam as projeções feitas no início dos anos 90.

Há esperança de que planos bem-sucedidos como o nosso se espalhem pelo mundo. E que a liderança de celebridades como Bill Clinton e Bill Gates ajudem a alavancar a arrecadação de recursos para o combate à aids. Ter dinheiro, porém, não é nada se não o usarmos corretamente. E é aí que mais problemas começam.

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Como os sintomas da aids demoram a aparecer, a maioria dos portadores de HIV só entra nas estatísticas depois de anos portando o vírus. Isso significa que a epidemia que vemos hoje é, na verdade, a de alguns anos atrás. Pesquisas feitas entre 2005 e 2007 em países pobres mostraram que apenas um quinto dos infectados sabia do seu status. “A pergunta de ouro em prevenção é ‘onde estão acontecendo hoje as novas infecções?’”, afirma Mariangela Simões, diretora do Programa de Aids brasileiro. Não é uma questão fácil de resolver. Além de trazer complicações para o trabalho ou para a família, a aids pode impedir o paciente de viajar: 74 países no mundo têm algum tipo de restrição e 12 proíbem a entrada de portadores de HIV em seu território.

Outro entrave é que não existe uma só epidemia de aids. Cada país tem uma variação predominante de vírus e, mais importante, grupos mais ou menos atingidos pela doença (veja gráfico na página YY). Não adianta, portanto, utilizar a mesma estratégia no mundo inteiro. Um exemplo disso é o plano do governo americano de oferecer US$ 15 bilhões para o combate à aids a países que se comprometessem com políticas antiprostituição e pró-abstinência sexual. O dinheiro foi recusado por diversas organizações, incluindo o governo brasileiro. “As pessoas mantém atividades sexuais por vários motivos. Para a procriação – e o governo dos EUA quereria que parasse por aí. Mas muita gente faz por diversão. Ou por dinheiro”, diz Thomas Coates, diretor do Programa de Saúde Global da Universidade da Califórnia. Idealmente, cada país deveria ter diversas iniciativas, cada uma focada nos grupos mais afetados da região. “As pessoas gostam de opções”, diz Coates.

Quais são as alternativas, então? Uma proposta para resolver essas questões é o que vem sendo chamado de “prevenção de alto impacto”, a combinação coordenada de técnicas de tratamento e prevenção, que ataque o problema em vários níveis. Ela começa no nível mais básico: mudar o comportamento e estimular as pessoas a planejar melhor suas relações. Entra em cena a publicidade. “Temos bons exemplos de marketing social de camisinhas. Mas ainda precisamos trazer os verdadeiros profissionais de mudança de comportamento para essa área”, afirma o belga Piot, da Unaids. Mudar hábitos e comportamentos, porém, é algo que muitas vezes desejamos, mas não conseguimos atingir. Assim, também é preciso encontrar as causas estruturais, os motivos últimos pelos quais as pessoas adquiriram os vírus. “A aids não é a única coisa com a qual as pessoas se preocupam na vida, e sequer a mais importante”, afirma Jessica Ogden, especialista em HIV do Centro Internacional para Pesquisas em Mulheres. Por que prostitutas não usaram preservativos? Muitas vezes, porque ganharam um extra para que fosse assim. Da mesma forma, jovens de classe média podem estar bêbados ou entendiados o suficiente para desprezarem a camisinha; ou mulheres de sociedades tradicionais podem depender demais dos homens para não impedir contatos sexuais inseguros. Às vezes, a relação entre causa e a infecção pode ser bem complexa: a melhoria do asfalto em Burma pode ter reduzido o índice de aids entre caminhoneiros por diminuir o tempo de viagem e limitar o contato com prostitutas no caminho.

E, finalmente, é importante melhorar a forma como implantamos todas as medidas. “Não há um plano global para distribuir o dinheiro”, afima Jon Cohen, autor de um estudo que analisou o uso de dinheiro em campanhas de aids em todo o mundo. Construir um plano abrangente não é fácil: é preciso coordenar várias esferas da sociedade e avaliar a eficácia de cada projeto. Mas, uma vez construído, o resultado seria uma sociedade e um sistema de saúde melhores, que podem ajudar na luta contra outras doenças e injustiças. Como disse o ex-presidente americano Bill Clinton: “Se conseguirmos mudar a maré dessa epidemia, lançaremos uma explosão de energia e crença no potencial humano que terá respingos na tuberculose, na malária, no desenvolvimento econômico e em tudo o mais que você possa imaginar”.

Para saber mais
The Epidemic: a Global History of Aids
Jonathan Engel, Editora Collins, 2006

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