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Fentanil: como o opioide se tornou a droga que mais mata nos EUA

Cinquenta vezes mais potente que a heroína, o fentanil é um opioide sintético que passou a ser produzido por traficantes. Hoje, ele mata mais do que acidentes de carro nos Estados Unidos – e começa a chegar ao Brasil pelas mãos do crime.

Por Maria Clara Rossini
Atualizado em 19 set 2023, 13h25 - Publicado em 19 Maio 2023, 10h14

É impossível andar em linha reta na calçada. A cada quarteirão, o pedestre precisa contornar as barracas armadas e o lixo. Também desvia de pessoas deitadas ou simplesmente paradas em pé, sem conseguirem se mover. Algumas delas moram nas ruas, enquanto outras circulam na região só para comprar a droga e saem em seguida.

A cidade de São Paulo convive com uma crise humanitária na cracolândia desde a década de 1990. A descrição acima se encaixaria facilmente no cenário brasileiro, mas ela diz respeito ao bairro de Tenderloin, em São Francisco. A cidade do estado da Califórnia é uma das mais ricas dos Estados Unidos, abrigando as residências de 37 bilionários. Nos últimos anos, ela se tornou um dos maiores polos de uso de fentanil por lá.

Em 2021, a cidade sofreu com mais mortes causadas por overdoses de fentanil do que por Covid-19 durante toda a pandemia. A dose letal exata da droga varia com a idade, peso e tolerância do usuário, mas sabemos que 2 mg de fentanil já são capazes de matar alguém por insuficiência respiratória. É pouquíssimo comparado aos 30 mg de heroína necessários para causar uma overdose.

O fentanil não é uma droga nova. Esse opioide é usado em sedações e alívio de dor pós-operatória e oncológica desde os anos 1960. O uso recreativo do remédio, no entanto, fez dele a principal causa de mortes acidentais nos Estados Unidos: em 2021, 71 mil americanos morreram por overdoses de opioides sintéticos, majoritariamente fentanil (1). O número supera as mortes causadas por acidentes de carro (42 mil) e armas de fogo (49 mil).

O Brasil estava com sorte: até 2023, as apreensões de tráfico de fentanil eram pontuais e raras no país. Isso mudou em fevereiro deste ano, quando a polícia federal encontrou frascos da droga em Carapicuíba (SP) e Cariacica (ES). Em abril, outras duas apreensões foram feitas em Manaus (AM) – a proximidade entre as operações acende um alerta vermelho.

É pouco provável que o fentanil cause um estrago semelhante ao que aconteceu nos Estados Unidos (como você verá a seguir, esse é o resultado de uma situação que se constrói há décadas). Mas o Brasil é terreno fértil para dar origem a um cenário diferente – também preocupante. Entenda como os opioides se tornaram o maior pesadelo dos EUA, e quais são os reais riscos que eles trazem ao Brasil.

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A “planta da alegria”

Colagem com cérebro, flor, corrente, ampolas de vidro e formato de perfil de uma pessoa com uma imagem de nuvens dentro.
(Tiago Araujo/Superinteressante)

“Hul Gil” é o nome que os sumérios davam a uma planta cultivada na região da Baixa Mesopotâmia em 3.400 a.C. Sua estrutura de forma esférica liberava um líquido branco quando cortada, que causava uma sensação de bem-estar em quem o consumisse. Hul Gil significa “planta da alegria”, mas hoje a conhecemos como papoula. (E, caso esteja se perguntando, foi daí que surgiu o leite de papoula que aparece em Game of Thrones).

A “planta da alegria” também era cultivada no Egito do século 15 a.C. e passou a circular pelas rotas de comércio do Mediterrâneo. Na Grécia de 400 a.C., Hipócrates percebeu que a planta tinha propriedades medicinais que iam além do “barato”. O ópio, nome dado ao látex da papoula, passou a ser usado para tratar doenças e aliviar a dor.

Só que o uso recreativo, é claro, não foi abandonado. Exemplo disso foram as duas Guerras do Ópio que a Inglaterra travou contra a China no século 18. Naquela época, os britânicos produziam ópio (ressecado, na forma de um pó) e exportavam-no para a China. Quando o imperador chinês proibiu a importação do produto, a Inglaterra passou a contrabandear a substância. O resultado foram duas guerras vencidas pelos traficantes – os britânicos.

Ninguém sabia o que exatamente tornava o ópio tão viciante. Foi só em 1804 que o alemão Friedrich Sertürner isolou seu principal princípio ativo: a morfina. A molécula foi batizada em homenagem a Morfeu, o deus do sonho na mitologia grega. Junto com a codeína e a tebaína, ela forma um grupo de substâncias chamadas opioides naturais – ou seja, que estão presentes naturalmente no ópio.

Quando consumimos essas substâncias, suas moléculas se ligam a estruturas presentes no nosso cérebro, chamadas receptores opioides. O nome é meio ingrato, pois essas estruturas não recebem apenas opioides externos.

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Em condições normais, os receptores se conectam a moléculas produzidas pelo próprio corpo, as endorfinas. Elas funcionam como um analgésico natural: quando você se machuca, por exemplo, as endorfinas entram em ação para aliviar a dor. Por isso que a dor dos ferimentos leves passa com o tempo, mesmo que você não tome remédio.

Só que as endorfinas não servem só para aliviar dores físicas. Não é à toa que elas são conhecidas como hormônios do bem-estar. O corpo libera essas substâncias quando praticamos atividade física ou nos alimentamos – e mais ainda quando a comida é altamente calórica, tipo chocolate. Parte da sensação de felicidade, satisfação, nesses momentos é desencadeada pelos receptores opioides.

Bom, os opioides derivados da papoula também se ligam a esses receptores, só que de forma ainda mais forte que as endorfinas. Quando alguém usa esse tipo de droga por muito tempo, os receptores “cansam”. Vão produzindo cada vez menos efeito. Daí, é preciso usar cada vez mais para obter a mesma sensação de bem-estar.

O maior exemplo disso é uma substância desenvolvida pela farmacêutica Bayer, no final do século 19. Trata-se de um opioide semissintético, obtido a partir de reações químicas com a morfina. Ele prometia ser uma alternativa aos opioides naturais para uso médico, com menos risco de gerar dependência. Era descrito pela farmacêutica como um medicamento “heroico”, e daí saiu seu nome: Heroína – vai em caixa alta nesta menção, já que Heroin era o nome comercial do fármaco.

Devido ao potencial extremamente viciante, a heroína foi proibida mundo afora logo no início do século 20, e deixou de ser comercializada legalmente. Mas a busca por medicamentos opioides mais seguros e eficazes continuou. E numa dessas surgiu o fentanil.

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Ele foi sintetizado pela farmacêutica Janssen em 1959, e, diferentemente da heroína, não é necessário partir da morfina para produzi-lo. Ele entra no grupo de opioides chamados sintéticos, obtido por meio de reagentes químicos.

O fentanil leva apenas alguns segundos para fazer efeito. É como se a molécula se encaixasse perfeitamente nos receptores, chegando a ser 100 vezes mais potente que a morfina e 50 vezes se comparada à heroína (1). Soluções com fentanil são usadas em anestesias e no tratamento de dores agudas, como as de pós-operatórios. Com receita médica, essas pessoas podem comprar adesivos dérmicos com microgramas de fentanil, que são absorvidos aos poucos pela pele.

Os opioides são ferramentas valiosas se usadas corretamente. “Quando a dor é muito intensa, analgésicos fracos [como dipirona e paracetamol] não vão resolver. Aí os opióides realmente são indicados”, diz Thiago Cunha, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.

O problema começou quando doses consideráveis desses medicamentos passaram a ser utilizadas para tratar qualquer dor. Para entender essa história, é preciso retroceder duas décadas e apresentar um outro opioide: a oxicodona.

Epidemia nos Estados Unidos

Infográfico dos dados do fentanil.
(Arte/Superinteressante)

Os riscos dos opioides são conhecidos há décadas, e por isso sempre foram prescritos com cautela. Só que isso mudou nos EUA dos anos 1990. Em 1995, a agência regulatória americana (FDA) aprovou um medicamento chamado Oxycontin, cujo princípio ativo é a oxicodona. Esse opioide semissintético foi desenvolvido em 1917 para tratar soldados durante a Primeira Guerra Mundial, e desde então era usado para dores intensas.

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A diferença do Oxycontin era a camada de revestimento em torno do comprimido, que liberaria a substância ao longo de 12 horas – daí o sufixo contin, de contínuo. Segundo a farmacêutica Purdue, que criou o medicamento, esse sistema de liberação constante diminuiria as chances de dependência química, o que faria dele um opioide mais seguro que a morfina, por exemplo.

Tudo balela. Não havia nenhum estudo mostrando que o revestimento fazia qualquer diferença na tolerância ao medicamento. O intuito da Purdue era fazer com que os médicos americanos receitassem o opioide não só para casos graves, mas também para dores crônicas mais comuns – aumentando consideravelmente seu mercado consumidor. A empresa investiu em um marketing pesado voltado tanto para o público quanto para os profissionais de saúde.*

Deu certo. Em 2001, o Oxycontin alcançou US$ 1,6 bilhão em vendas nos EUA, superando o famosíssimo Viagra. Com ele veio a popularização de outros medicamentos de oxicodona, como o OxyFast e o Percocet. “Aumentou a prescrição de opioides para pacientes que talvez não tivessem a indicação – e algumas dessas pessoas ficaram dependentes”, diz a psiquiatra Renata Rigacci, docente da faculdade São Leopoldo Mandic. “Começa com uma dose, mas logo ela não é mais suficiente, e a pessoa vai perdendo o controle. Daí ela procura diferentes serviços de saúde para obter mais receitas.”

A falta de um sistema público de saúde nos EUA também contribuiu para a epidemia. Muitos casos de dores crônicas poderiam ser tratados por outros meios, como a fisioterapia. Mas esses tratamentos são caros e levam mais tempo. Daí, os planos de saúde privados preferem bancar a opção mais barata e de alívio imediato: geralmente, os opioides.

Assim começou aquilo que o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) classifica como a primeira onda da crise de opioides nos EUA: o vício em medicações prescritas. E não ficou nisso. Quem não consegue mais receitas tende a buscar alívio na heroína de rua. Resultado: uma segunda onda, marcada pelo aumento de mortes por overdose de heroína (veja no gráfico abaixo).

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Gráfico dos óbitos por opioides nos Estados Unidos.
(Arte/Superinteressante)

Em 2012, um outro medicamento entrou em jogo: o Subsys, produzido pela farmacêutica Insys Therapeutics. Trata-se de um spray contendo outro opioide – desta vez, o fentanil. O remédio deve ser espirrado embaixo da língua para o alívio da dor. Ele foi aprovado para o tratamento de pacientes com câncer – só que, em um país em que os opioides já estavam sendo usados para dores crônicas, a empresa viu uma oportunidade de lucrar com os casos moderados também.

Junto com médicos corruptos, os vendedores da Insys Therapeutics enganavam as seguradoras de saúde para conseguir a liberação do Subsys para pacientes não-oncológicos. O fundador da empresa, John Kapoor, foi preso em 2019 após ser condenado por participação em crime organizado.

Mas o estrago já estava feito. Em 2013 se inicia a terceira e atual onda da epidemia norte-americana: a da produção de opioides sintéticos pelas mãos de traficantes. A droga usada recreativamente costuma ser chamada de fentanil não-farmacêutico – a mesma substância dos adesivos dérmicos vendidos sob prescrição, só que produzida de forma ilegal. Ela sai principalmente de laboratórios clandestinos da China, e entra nos Estados Unidos via México.

Para os traficantes, o fentanil tem a vantagem de ser mais fácil e barato de ser produzido quando comparado à heroína – o preço do comprimido nas ruas começa em US$ 2 (2). Nisso, o número de mortes por uso de heroína caiu. E os óbitos por overdose de opioides sintéticos foram à estratosfera. Entre 2013 e 2020, multiplicou-se por 10. Nesse meio tempo, em 2016, o cantor Prince morreu por overdose, justamente de fentanil.

Ou seja: o fentanil passou a substituir a heroína nas ruas, com o agravante de ser ainda mais perigoso.

É fácil errar a mão, porque mesmo pequenas doses de fentanil já podem causar depressão respiratória, levando à morte por baixa oxigenação no corpo. O isolamento e estresse causados pela pandemia de Covid-19 também contribuíram para o aumento de overdoses por opioides: o número de mortes foi de 51 mil em 2019 para 78 mil em 2022 (1).

Os médicos brasileiros não têm o costume de receitar tantos opioides quanto os americanos, mas um dado recente assusta: entre 2009 e 2015, as prescrições desses medicamentos aumentaram 465% no país (4). Além disso, uma pesquisa feita pela Fiocruz mostrou que 2,9% dos brasileiros já usaram opioides sem prescrição médica. O número é três vezes maior que a porcentagem de pessoas que já experimentaram crack (5).

Mesmo assim, é fato que o crack e a cocaína ainda são as drogas que causam maior preocupação no Brasil. A heroína, por exemplo, não é muito disponível por aqui. Levando em consideração o contexto que construiu a crise dos opioides no exterior, é pouco provável que algo semelhante ocorra no Brasil. A preocupação de especialistas é com outro fenômeno que acontece nos EUA: o uso do fentanil para batizar drogas recreativas.

Riscos para o Brasil

Em março de 2023, o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) da Unicamp identificou fentanil no sangue de usuários da região metropolitana de Campinas. Eles não haviam consumido a droga pura – e na verdade, nunca tinham ouvido falar de fentanil. Segundo os próprios usuários, eles haviam usado outras substâncias – cocaína e K2 (um canabinoide sintético que tem se espalhado recentemente pelo país).

Acredita-se que o fentanil apreendido no Brasil este ano seria usado para batizar outras drogas. O objetivo é baratear o custo de produção, obtendo um efeito maior com menos insumo. “No Canadá e Estados Unidos, existem pessoas que desenvolvem problemas por uso de fentanil e nem sabem que estão usando”, diz Renata. “É mais viável pensar nessa junção de drogas no Brasil do que em uma substituição, por exemplo.”

A depressão respiratória causada por uma overdose de fentanil pode matar em minutos. O antídoto capaz de salvar alguém nessa situação é a naloxona, geralmente encontrada na forma de um spray nasal chamado Narcan. A molécula chega rapidamente ao cérebro e se conecta aos receptores opioides, substituindo o fentanil e revertendo a overdose. Mas se a pessoa que estiver prestando os primeiros socorros não souber que aquela é uma overdose de opioide, talvez não consiga agir a tempo.

A epidemia americana de opioides talvez seja o maior exemplo de que a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Fora as apreensões recentes, ainda temos informações pouco precisas sobre o consumo de opioides no Brasil.

E para evitar o mesmo erro dos Estados Unidos, não há outro remédio: é focar na coleta de dados e no esclarecimento de informação sobre a droga, tanto para a população como para profissionais da saúde.

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Fontes: (1) Center for Disease Control and Prevention. (2) Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). (3) National Institute on Drug Abuse. (4) Rising trends of Prescription Opioid Sales in Contemporary Brazil, 2009-2015. (5) III Levantamento Nacional sobre uso de Drogas pela População Brasileira; Livro Império da Dor, de Patrick Radden Keefe; Documentário O Crime do Século, da HBO; João Castelli-Maia, professor assistente de psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC); Thiago Cunha, professor da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.

*Para se aprofundar nos escândalos que envolvem a Purdue e outras empresas farmacêuticas, recomendamos o documentário O Crime do Século, disponível no HBOMax.

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