A volta das terapias com drogas psicodélicas
A Austrália liberou o uso da psilocibina, o alucinógeno dos cogumelos, em tratamentos para a depressão. Nos EUA, estuda-se o potencial terapêutico do MDMA, a molécula do ecstasy, contra traumas de guerra. Veja como esses e outros psicodélicos podem ajudar a psiquiatria.
EEm julho deste ano, a Austrália se tornou o primeiro país a aprovar a psicoterapia assistida por substâncias psicodélicas. Mais especificamente, a psilocibina (que é o princípio ativo de cogumelos alucinógenos, do gênero Psilocybe) e o MDMA (a molécula do ecstasy).
Não se trata da legalização dessas substâncias para o consumo livre. Os pacientes, com diagnóstico de depressão ou transtorno de estresse pós-traumático, tomam as drogas em clínicas especializadas, sob supervisão, como se fosse quimioterapia – em alguns casos, a administração é intravenosa. São horas sentado em uma poltrona sob efeito da substância, e sempre há uma sessão de terapia com um psicólogo antes, depois ou durante a experiência, dependendo do protocolo.
Os EUA podem ser o próximo país a aprovar os tratamentos com substâncias psicodélicas. O transtorno de estresse pós-traumático em militares na ativa e veteranos de guerra custa ao país US$ 41 bilhões por ano (1), e talvez o MDMA possa ajudar: em setembro deste ano, saiu no periódico Nature Medicine o maior estudo clínico já realizado com a droga para tratamento de combatentes traumatizados. Foram mais de 100 voluntários. Metade usou o psicodélico real em suas terapias; metade, um placebo. 86% dos integrantes do primeiro grupo melhoraram, contra 69% dos que ficaram com o fake. (2)
Não é uma diferença gritante – especialistas argumentam que são necessários mais estudos, com um número maior de voluntários –, mas ela está lá. Tanto que a Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos (MAPS), responsável pelos testes, deve submeter um pedido de liberação do tratamento à FDA (a Anvisa dos EUA).
Psilocibina e MDMA são os únicos dois psicodélicos que já passaram pela última das três fases padronizadas de um ensaio clínico – o rito de verificações de eficácia e segurança pelo qual qualquer droga ou terapia precisa submeter-se antes de serem disponibilizadas comercialmente. Mas outros também têm apresentando resultados promissores, e podem ir pelo mesmo caminho nos próximos anos.
A seguir, vamos examinar como essas substâncias funcionam, e por que elas podem ser úteis contra certos transtornos psiquiátricos.
O que é um psicodélico
A superfície dos nossos neurônios é repleta de moléculas que funcionam como botões, chamados receptores. Eles são como fechaduras, que só podem ser acionadas por uma determinada chave – outra molécula, que dá um encaixe perfeito. Esse é o painel de controle dos neurônios. Encaixe a chave certa e você manipula a atividade do cérebro.
Qualquer corpo saudável fabrica suas próprias chaves. Uma delas é a serotonina. Em condições normais, essa molécula se conecta a receptores conhecidos pelo código 5-HT2. Esse click gera aquele sentimento gostoso que você tem ao chegar em casa e encontrar quem você ama, comer sua refeição favorita ou assistir a um filme que você gosta. Bem-estar, em suma.
Um psicodélico não é definido pela capacidade de gerar alucinações visuais. O que essas drogas têm em comum é a afinidade com o 5-HT2. Elas funcionam como simulacros de serotonina.
É isso que difere os psicodélicos da Cannabis, por exemplo. O THC e CBD presentes na planta se ligam aos receptores canabinoides, que são outro botão e desencadeiam outras mudanças no cérebro. Os psicodélicos também são diferentes da cocaína (um estimulante do sistema nervoso central) e dos opioides (que são depressores).
Esse é só o básico da explicação. Uma característica adicional da maioria dos psicodélicos é o que os cientistas chamam de experiência subjetiva. A viagem em si.
Por uma série de mecanismos ainda pouco compreendidos, essas drogas acalmam a chamada “rede de modo padrão” do cérebro (em inglês, default mode network) (3). Trata-se de um conjunto de neurônios interconectados, que ficam mais ativos em pessoas com depressão. Um dos sintomas mais clássicos dessa condição é o “pensamento ruminante” – o ato de trazer de volta para a mente problemas do passado, sem parar. E que está presente com mais força em quem sofre de estresse pós-traumático (TEPT).
A baixada de bola da rede de modo padrão tem a ver com os relatos tão comuns em experiências psicodélicas, como o aumento da empatia e a dissolução do ego (a sensação de que você e o mundo são uma coisa só, não entidades separadas).
E a ideia central do uso terapêutico é a seguinte: essa abertura para o mundo exterior – a sensação de que você está em sintonia com algo lá fora, em vez de perdido nas próprias caraminholas – pode ser útil para tratar casos graves de depressão e TEPT em pacientes que não respondem a antidepressivos convencionais (que, em geral, também estimulam a circulação de serotonina, mas sem a mesma intensidade). Ao livrar-se dos pensamentos ruminantes por alguns momentos, sob a administração controlada de psicodélicos, poderiam aprender o caminho para reequilibrar a mente.
Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo, tentou descrever a experiência subjetiva em 1953 após usar mescalina, um psicodélico presente em alguns cactos. “[É como] estar livre da rotina e da percepção comum. Poder contemplar, por poucas horas em que a noção do tempo se desfaz, o mundo interno e externo. Não como eles se mostram ao animal dominado pelo instinto de sobrevivência, ou ao ser humano obcecado por termos e ideias. Mas tais como são percebidos pelo Todo.”
O livro que Huxley publicou sobre essa experiência em 1954, intitulado As Portas da Percepção, não só batizou a banda As Portas (The Doors) como inspirou Timothy Leary, professor de psicologia de Harvard.
Ele começou suas pesquisas com psilocibina e ácido lisérgico (LSD) em 1960. Mas faltava rigor acadêmico. Leary se tornou entusiasta, e usuário, das substâncias. Virou uma celebridade – ídolo dos intelectuais de seu tempo, que se fascinaram com o LSD. E acabou demitido de Harvard em 1963. Mas o episódio só fez crescer o culto à substância.
Ela ainda era legalizada. Conforme o uso recreativo disseminou-se, com os perigos que uma droga alteradora de consciência traz, cresceu também a pressão para tirá-la da praça. E em 1968 o LSD e todos os outros psicodélicos foram criminalizados nos EUA – numa decisão adotada mundo afora ao longo dos anos seguintes.
Hoje, no Brasil, algumas substâncias podem ser usadas terapeuticamente sob autorização especial, caso da ibogaína, enquanto outras são permitidas para fins religiosos e de pesquisa, como a ayahuasca e os cogumelos que contêm psilocibina. Como veremos a seguir.
Santo Daime
A doutrina do Santo Daime foi criada pelo seringueiro Raimundo Irineu Serra na década de 1920, após consumir um chá feito a partir de um cipó amazônico: ayahuasca (na língua indígena quéchua). Durante a experiência psicodélica, Irineu teve a visão de uma mulher que o instruiu a espalhar a palavra de Deus por meio da infusão. Ela também ditou qual deveria ser o nome do líquido: “Daime”, da frase “dai-me amor, fé e cura”.
Irineu não foi o único. O chá de ayahuasca também está no centro das doutrinas da União do Vegetal e da Barquinha, outras duas fés de origem amazônica. Por isso, seu consumo é autorizado para fins religiosos no Brasil. Além do cipó-mariri (Banisteriopsis caapi), a receita leva uma outra planta, chamada chacrona (Psychotria viridis). O princípio ativo do cipó é a molécula dimetiltriptamina, ou DMT, encontrada em vários outros vegetais, fungos e até animais – caso do sapo Bufo alvarius, cujo veneno contém DMT.
A legalização da ayahuasca por aqui ajuda pesquisadores brasileiros a investigar seu potencial terapêutico para pessoas com depressão resistentes às drogas convencionais. Por exemplo: um estudo conduzido pelo Instituto do Cérebro, da Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN), ministrou ayahuasca a 29 pacientes com depressão severa, que já haviam usado dois ou mais antidepressivos sem sucesso. (4)
Metade dos participantes tomou o chá real; os demais, um placebo bem convincente: além da cor e aroma semelhantes ao líquido original, a mistura continha sulfato de zinco – um composto amargo que induz vômitos, comuns nos rituais com ayahuasca. Esse foi o primeiro estudo duplo-cego, com placebo, que avaliou os efeitos terapêuticos do psicodélico. Sete dias após a experiência, 64% das pessoas que tomaram a ayahuasca apresentaram índices significativamente menores de depressão. No grupo placebo, 26%.
Essa pesquisa é um bom exemplo do que se vê em estudos clínicos não só com ayahuasca e DMT puro, mas também com psilocibina e LSD (falaremos mais sobre esses dois adiante). Eles são chamados “psicodélicos clássicos”, e têm efeitos semelhantes. De modo geral, dois terços dos voluntários que passam por tratamentos experimentais com essas substâncias apresentam alguma melhora no quadro psiquiátrico, ainda que muitas pesquisas contem com um número pequeno de participantes.
Cogumelos mágicos
O Brasil é um dos poucos países do mundo (outro deles é o Nepal) que permite a venda de cogumelos alucinógenos – mais conhecidos como “mágicos”. O mais comum, nas lojas online, é a espécie Psilocybe cubensis, e que cresce naturalmente por aqui. Só tem um detalhe: qualquer site terá o aviso “produto destinado a estudos e coleção etnobotânica”.
Essa é uma precaução necessária porque, embora os cogumelos em si não sejam ilegais, o princípio ativo que eles contêm – a psilocibina – é. A Lei proíbe isolar, vender e usar a molécula ativa. A psilocibina existe num limbo regulatório: trata-se de uma droga ilegal que pode circular em um ser vivo legalizado. Na prática, isso permite o consumo recreativo indiscriminado.
Assim como o DMT, a psilocibina se conecta aos receptores 5-HT2 dos neurônios. A diferença é que os cogumelos nascem no mundo todo, não só na Amazônia. Por esse motivo, há mais pesquisas com psilocibina – não só para depressão, mas também ansiedade, bipolaridade, transtornos alimentares…
O Centro de Pesquisas Psicodélicas do Imperial College, em Londres, é uma das instituições de referência que embasou a decisão da Austrália em liberar a substância para uso médico. Um estudo clínico (5) comparou duas sessões de terapia com psilocibina versus seis semanas de uso do antidepressivo escitalopram em pacientes com depressão moderada e severa. 50% dos pacientes do grupo que usou o psicodélico apresentaram melhoras, contra 28% no grupo do escitalopram.
Isso não significa que uma terapia deve substituir a outra. Por ora, os psicodélicos são destinados à parcela da população que não responde aos tratamentos convencionais. A aprovação na Austrália, por exemplo, é específica para pacientes com depressão resistente – e deve ser feita em clínicas, com profissionais treinados que seguem um protocolo válido nacionalmente.
“Efeitos adversos dessas substâncias são raros, desde que usados em contextos controlados: laboratórios e clínicas”, diz Rafael Guimarães, pesquisador da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP que já conduziu estudos clínicos com psicodélicos. “Nenhum efeito adverso grave tem acontecido em qualquer estudo clínico no mundo com LSD, psilocibina ou ayahuasca. Isso sugere que essas substâncias são seguras.”
LSD
No início dos anos 1930, o químico Albert Hofmann foi contratado para estudar substâncias constritoras de vasos sanguíneos que evitassem sangramentos excessivos durante partos. Seu empregador era a farmacêutica suíça Sandoz, onde eram investigados compostos isolados do fungo esporão-do-centeio (Claviceps purpurea), que tinham essa propriedade anti-hemorrágica.
Hofmann criou 24 combinações de moléculas orgânicas similares às do fungo esporão antes de chegar à dietilamida do ácido lisérgico, que recebeu o nome LSD-25. O composto não se mostrou útil, e saiu da lista de afazeres da empresa. Mas deixou animais eufóricos durante os testes. Hofmann ficou com uma pulga atrás da orelha. Em 1942, então, decidiu sintetizar o composto novamente – e tomá-lo.
No dia 19 de abril, o cientista ingeriu 250 microgramas. Quando começou a se sentir tonto, pegou a bicicleta e pedalou do laboratório até sua casa. Foi a primeira viagem (literalmente) de LSD da história. A substância foi estudada intensamente nas décadas seguintes. A Sandoz chegou a fornecer LSD para pesquisas psiquiátricas, sob o nome Delysid.
Uma pesquisa recente de maior rigor metodológico foi realizada pela Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (MAPS) – criada nos anos 1980 justamente para conferir maior credibilidade às pesquisas com psicodélicos. Em 2014, a MAPS publicou um estudo duplo cego, com placebo, para verificar a segurança e eficácia do LSD no tratamento de ansiedade em 12 pessoas com doenças terminais (6). Um grupo fez duas sessões de 200 microgramas de LSD intercaladas com psicoterapia, enquanto outro grupo usou 20 microgramas nas sessões – quantidade insuficiente para desencadear uma trip.
O grupo de maior dosagem apresentou níveis reduzidos de ansiedade (cerca de 20%) em comparação ao outro. Após as primeiras análises, o segundo grupo também tomou a dosagem efetiva. Segundo os autores, todos os participantes apresentaram, em diferentes níveis, redução da ansiedade, menos medo da morte e maior qualidade de vida mesmo um ano após as sessões.
Um outro teste clínico, publicado em setembro deste ano (7), utilizou uma metodologia semelhante em 42 participantes com ansiedade generalizada. 65% do grupo que usou LSD apresentou melhora, em comparação a 2% do grupo placebo. Os estudos ainda são pequenos para serem conclusivos, mas servem para mostrar que, em condições controladas, a substância é tão segura quanto o DMT da ayahuasca e a psilocibina dos cogumelos.
Não há evidências científicas, porém, de que doses baixas de LSD tenham qualquer efeito na criatividade e produtividade dos usuários. A prática conhecida como microdosing (“microdosagem”) é queridinha de profissionais do Vale do Silício, que tomam doses com efeitos imperceptíveis acreditando que a substância daria um boost no cérebro. Uma pesquisa feita com 100 participantes pelo Imperial College de Londres mostrou que os supostos benefícios da prática não passam de efeito placebo. (8)
Em 1970, dois anos depois de a posse de LSD ter sido criminalizada, o governo americano incluiu o ácido lisérgico e todos os outros psicodélicos no chamado Ato de Substâncias Controladas, classificando-os como “droga de alto potencial adictivo, sem evidências de uso médico”. Nenhum deles, porém, é capaz de gerar dependência química.
“O principal elemento de construção das convenções de drogas e de sua periculosidade é sua dimensão política, o contexto em que foram criadas”, diz Paulo Pereira, coordenador do grupo de pesquisas internacionais sobre política de drogas da PUC-SP. “Claramente o LSD entra na lista de maior periculosidade como reflexo da contracultura dos anos 1960.”
Ibogaína: a droga antidroga
Mauro* era fumante havia anos. Tinha tentado parar algumas vezes, mas sem sucesso. Foi quando recebeu a dica de um amigo: uma clínica no interior de São Paulo que fazia tratamentos para dependência química com ibogaína, uma molécula psicodélica presente na raiz de iboga. Essa é uma planta que cresce no Gabão e alguns outros países da África.
A primeira pessoa a verificar os efeitos terapêuticos da ibogaína foi Howard Lotsof, um jovem viciado em heroína. Em 1962, ele experimentou a substância e acordou no dia seguinte sem fissura nem outros sintomas de abstinência do opioide. O mesmo aconteceu com outros sete amigos de Lotsof.
A ibogaína tem um mecanismo de ação diferente dos outros psicodélicos mencionados até aqui. Ele também tem afinidade com os receptores 5-HT2 – mas não só. O psicodélico induz a produção de uma proteína chamada fator neurotrófico derivado das células da glia (GDNF). Sabe-se, por meio de experimentos, que ratinhos com baixos níveis de GDNF são mais propensos a consumir drogas adictivas, como cocaína e morfina (9). Quando se injeta GDNF nos roedores, esse comportamento diminui.
Grosso modo, drogas viciantes como opioides, cocaína e nicotina atuam inundando o cérebro de dopamina – outra dessas moléculas-chave que se encaixam em fechaduras nos neurônios, como a serotonina. Os neurônios se “acostumam” e precisam de cada vez mais dopamina para obter o mesmo efeito. O que o GDNF faz é proteger os neurônios com esses receptores e promover o crescimento e a ramificação dessas células. E essas novas conexões dariam uma espécie de reset no cérebro.
É assim que Mauro descreve sua experiência com a ibogaína. “No processo, fui eliminando coisas ruins. Não só o cigarro, mas pensamentos que me perturbavam. Eu refleti sobre minha vida, sobre coisas ruins que fiz, e tentei olhar sob outro prisma. Tive uma facilidade muito grande de sair do meu corpo e olhar pra mim mesmo”. Ele está sem fumar há um ano.
A primeira coisa que Mauro fez quando chegou ao centro de tratamento foi assistir a palestras sobre a substância e passar por um check-up médico. Dentre os psicodélicos citados neste texto, a ibogaína é a que apresenta maior risco: um estudo da Universidade de Nova York (NYU) identificou 19 óbitos associados à ibogaína entre 1990 e 2008. É que a substância aumenta a frequência cardíaca. Se for consumida por um paciente com problemas cardiovasculares ou que está sob efeito de outras substâncias (como a cocaína), ela pode ser fatal.
O Brasil não coloca a ibogaína em sua lista de substâncias controladas (como faz com o LSD, por exemplo). Por isso, é possível fazer o tratamento em clínicas especializadas. Mas sai caro: por conta da baixa disponibilidade da molécula, o tratamento passa dos R$ 10 mil.
Espanha e Inglaterra estão conduzindo estudos de fase 2 (a penúltima antes da aprovação para uso comercial) com ibogaína contra opioides, como heroína, fentanil e oxicodona. A iniciativa é bem-vinda, claro. Nos EUA, essa classe de drogas se tornou uma questão grave de saúde pública, que mata 220 pessoas por dia – e o problema tende a espalhar-se pelo mundo. Em um estudo observacional conduzido no México, 30 dependentes de opioides fizeram tratamento com ibogaína – e metade deles não voltou a usar a droga até um mês após a terapia . Por aqui, a USP de Ribeirão Preto busca voluntários para testes clínicos para tratamento contra o alcoolismo.
MDMA
Duas décadas antes da Sandoz, a farmacêutica Merck já queria desenvolver um composto que controlasse sangramentos. Acabou sintetizando a metilenodioximetanfetamina, conhecida pela sigla MDMA. Nos anos 1970, ela era estudada como uma ferramenta para auxiliar sessões de psicoterapia, já que os pacientes se sentem mais confortáveis para conversar sob efeito
da substância.
Não só conversar. A droga – também conhecida como ecstasy e Michael Douglas no mercado ilegal – se tornou hábito em festas e raves. O MDMA não tem efeitos psicodélicos tão evidentes, como as alucinações visuais. Mesmo assim, a alta afinidade com os receptores de serotonina faz com que ele seja classificado dessa forma.
A molécula inibe a ação de proteínas que regulam as quantidades de serotonina no cérebro, bem como as de outros neurotransmissores, como dopamina e norepinefrina. Essas moléculas acabam se acumulando e trazem doses reforçadas de bem-estar e confiança (em si mesmo e nos outros). Daí o forte uso recreativo.
Mas vale lembrar: a droga utilizada em tratamentos médicos pouco tem a ver com a versão recreativa, que geralmente é misturada com outras anfetaminas.
O MDMA tem sido estudado em sessões de terapia com pacientes que sofrem de TEPT. Os EUA são os maiores interessados: o índice de suicídio entre veteranos de guerra é 57% maior em comparação à população civil, chegando a 17 mortes por dia. O MDMA foi classificado como breakthrough therapy (“terapia inovadora”) pela FDA, a Anvisa americana, em 2017. Isso significa que a substância pode ser avaliada e aprovada mais rapidamente quando forem apresentados os devidos estudos comprovando sua segurança e eficácia – como o teste de fase 3 com 100 veteranos mencionado anteriormente.
É um resultado promissor, mas o ideal seria testar mais gente. Apesar do potencial das moléculas psicodélicas, o renascimento do interesse científico por elas é recente. E o número de estudos clínicos robustos, pequeno. “Essa é uma das críticas que foi feita à decisão da Austrália. Como ainda existem poucos estudos, não se sabe quais são os efeitos de longo prazo no organismo (…). Muitas dessas lacunas são reflexo da falta de incentivo à pesquisa por conta da proibição”, diz Paulo Pereira.
Não é fácil olhar para os psicodélicos sem as lentes sociais e culturais, mas esse é o papel da ciência: investigá-los de maneira mais imparcial e fornecer dados para a criação de políticas públicas eficazes. E o que os dados têm mostrado é que essas moléculas merecem, ao menos, ser tratadas com tanta seriedade quanto outros medicamentos.
Foi uma citação do poeta inglês William Blake que inspirou o título de As Portas da Percepção, de Huxley. “Se as portas da percepção estivessem limpas, tudo apareceria para o homem tal como é: infinito.” Sem querer, a frase diz algo sobre os problemas que atrapalham a investigação dessas moléculas potencialmente eficazes contra depressão, vícios e outros transtornos mentais. Se a sociedade olhar para os psicodélicos com a percepção limpa de preconceitos, eles podem mostrar caminhos inéditos para aliviar o sofrimento psíquico.
*O nome foi alterado para preservar o sigilo da fonte.
Referências: (1) artigo “The Economic Burden of Posttraumatic Stress Disorder in the United States From a Societal Perspective”; (2) artigo “MDMA-assisted therapy for moderate to severe PTSD: a randomized, placebo-controlled phase 3 trial”; (3) artigo “The psychedelic state induced by ayahuasca modulates the activity and connectivity of the default mode network”; (4) artigo “Rapid antidepressant effects of the psychedelic ayahuasca in treatment-resistant depression: a randomized placebo-controlled trial”; (5) artigo “Trial of Psilocybin versus Escitalopram for Depression”; (6) artigo “Safety and Efficacy of Lysergic Acid Diethylamide-Assisted Psychotherapy for Anxiety Associated With Life-threatening Diseases”; (7) artigo “Lysergic Acid Diethylamide–Assisted Therapy in Patients With Anxiety With and Without a Life-Threatening Illness: A Randomized, Double-Blind, Placebo-Controlled Phase II Study”; (8) artigo “Self-blinding citizen science to explore psychedelic microdosing”; (9) artigo “GDNF — A potential target to treat addiction”; (10) artigo “Fatalities temporally associated with the ingestion of ibogaine”; (11) National Institute on Drug Abuse; (12) artigo “Treatment of opioid use disorder with ibogaine: detoxification and drug use outcomes”; (13) 2022 National Veteran Suicide Prevention Annual Report.
Fontes: livro Psiconautas: viagens com a ciência psicodélica brasileira, de Marcelo Leite; André Negrão, pesquisador do Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas; Eduardo Schenberg, neurocientista e fundador do Instituto Phaneros.