Cada vez mais brasileiros estão tomando esses medicamentos. Mas nenhum deles é totalmente seguro e eficaz. Entenda por que a indústria farmacêutica não consegue vencer a guerra contra a insônia – um mal que aflige 70% das pessoas.
Texto: Bruno Garattoni e Eduardo Szklarz | Foto: Tomás Arthuzzi | Design: Carlos Eduardo Hara
V
ocê sabe como é.Está cansado, teve um dia daqueles, deita a cabeça no travesseiro para esquecer tudo e dormir. Mas não é o que acontece. Por alguma razão, você não consegue parar de pensar. A sua mente vai acelerando e percorre inúmeros temas, muitos deles envolvendo alguma preocupação: a pandemia, a economia, a sua família, algo do trabalho, mil outras coisas… ou simplesmente a angústia de não conseguir pegar no sono. Você frita na cama por um tempo interminável, que parece atravessar eras geológicas, enquanto tenta se forçar a dormir. Desiste, abre os olhos, checa o horário no celular – e se assusta ao constatar que daqui a pouco já vai amanhecer.
Todo mundo já teve uma noite de insônia. Acontece. O problema é quando ela se torna crônica – o que tem ocorrido com cada vez mais pessoas. Um estudo realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com 1.101 mulheres (1) revelou que 32% delas tinham insônia persistente, diagnosticada clinicamente. E essa pesquisa é de 2013: uma época que, comparada a todos os tumultos da vida nos últimos anos, parece um poço de tranquilidade. De lá para cá, o número de insones disparou. “Acredita-se que 60% a 70% da população brasileira tenha alguma queixa em relação ao sono”, afirma a biomédica Monica Andersen, diretora do Instituto do Sono.
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E isso tem se refletido no uso de remédios. Entre 2011 e 2018, as vendas de zolpidem, uma das drogas mais usadas para tratar a insônia, cresceram 560% no Brasil (hoje estão em torno de 15 milhões de caixas por ano). Em 2019, o país consumiu 56,6 milhões de caixas de calmantes e soníferos, segundo dados da Anvisa. E a pandemia agravou o fenômeno: em março e abril de 2020, as vendas de clonazepam (Rivotril) cresceram 22% sobre o mesmo período do ano anterior.
O problema é que esses medicamentos têm riscos consideráveis. O uso contínuo de benzodiazepínicos, como o clonazepam, pode causar dependência – e obrigar a pessoa a utilizar doses cada vez mais altas para obter o mesmo efeito. Se tomados em grande quantidade, e misturados com álcool, eles podem matar por parada respiratória (mesmo risco dos barbitúricos, um tipo mais antigo de sonífero). Já as chamadas “drogas z”, como o zolpidem, não apresentam esse risco, mas também viciam. E têm efeitos colaterais insólitos: podem provocar alucinações e desencadear parassonias, um tipo extremo de sonambulismo (mais sobre ele daqui a pouco).
Até hoje a indústria farmacêutica não conseguiu criar um remédio para dormir que seja realmente seguro e eficaz. Ela continua tentando: sua criação mais recente é o lemborexant, aprovado pela FDA em dezembro de 2019. Ele também é considerado viciante – tanto que sua comercialização, assim como a dos barbitúricos, benzodiazepínicos e das drogas z, é fiscalizada pela Drug Enforcement Agency (a mesma agência que combate o narcotráfico nos Estados Unidos).
Mas por que é assim? Por que, até hoje, os remédios para dormir podem perder o efeito, causar dependência, gerar efeitos colaterais bizarros ou coisa pior? Existe uma resposta – e ela não é muito animadora.
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Do ópio a Hendrix
A humanidade luta contra a insônia há pelo menos dois milênios. O médico Heráclides de Taras, que viveu na Alexandria do século 1 a.C., recomendava ópio. Na Idade Média, os médicos usavam álcool e plantas narcóticas como a datura – que tem efeitos alucinógenos – e a beladona, um dos arbustos mais tóxicos que existem. Ou seja: a medicina só tinha bombas para oferecer aos insones. E isso pouco mudou até o século 19. O escritor Charles Dickens, por exemplo, experimentou de tudo para conseguir dormir. Inclusive uma mistura de álcool e ópio, que só lhe causou uma grande ressaca. Até que inventou um método: deitar com a cabeça voltada para o Norte. Dizia que assim alinhava seu corpo com o campo magnético da Terra. Esse excêntrico ritual deu certo para Dickens – mas não funcionou com mais ninguém.
A insônia só começou a ser enfrentada cientificamente em 1804, quando o químico alemão Friedrich Sertürner descobriu a morfina, inaugurando a era dos alcaloides – uma classe de substâncias que passaram a ser utilizadas para induzir o sono. Os principais eram a hiosciamina e a escopolamina, obtidos de plantas da família Solanaceae. Mas eles tinham fortes efeitos colaterais, como náuseas, vômitos e delírios – ou até a morte.
“O primeiro medicamento que realmente pode ser chamado de hipnótico [indutor do sono] foi o hidrato de cloral”, escreve o neurologista espanhol Francisco López-Muñoz em um artigo sobre a história da insônia. Essamolécula, sintetizada em 1832 pelo alemão Justus von Liebig a partir da mistura entre o cloro e o etanol, foi popularizada quase 50 anos depois pelo também alemão Oskar Liebreich. O hidrato de cloral substituiu os alcaloides porque era mais conveniente: podia ser administrado por via oral, sem a necessidade de injeção. Só que, a longo prazo, podia gerar dependência – sem falar em insuficiência hepática, cardíaca e renal.
A virada do século 20 trouxe uma nova promessa: os brometos de lítio e potássio. Seu grande promotor foi o médico britânico Neil MacLeod, que em 1897 anunciou o que chamava de “cura do sono” com esses sais. Mas os pacientes acabavam tendo náuseas, irritabilidade e alucinações. Em parte, isso acontecia porque o tempo de ação da substância (a chamada “meia-vida”) era longo: ela ficava até 12 dias circulando no corpo, e se acumulava até alcançar níveis tóxicos. Foi quando uma revolução na ciência trouxe uma droga ainda mais promissora – e problemática.
Em 1864, num momento de rara inspiração, o químico alemão Adolf von Baeyer misturou a ureia (substância contida na urina) com um composto químico chamado malonato de dietila. Assim, inventou o ácido barbitúrico – a origem do nome é incerta, mas provavelmente vem da junção das palavras “bárbara” e “ureia”. Em si, o ácido barbitúrico não produzia efeitos no cérebro; mas os derivados dele, que foram sendo desenvolvidos por outros cientistas, sim.
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Em 1902, os alemães Emil Fischer e Joseph von Mering descobriram que um desses compostos, o ácido dietilbarbitúrico, fazia os cães adormecerem. Mering observou os mesmos efeitos em humanos e publicou sua descoberta no ano seguinte, aproveitando para rebatizar a substância: barbital. Em 1904, a empresa farmacêutica Bayer (sem relação com Adolf von Baeyer) comercializou-a com o nome Veronal.
O sucesso foi quase instantâneo – assim como a ação desse tipo de medicamento. Os barbitúricos se conectam aos receptores cerebrais de GABA (ácido gama-aminobutírico), um neurotransmissor que causa relaxamento e sono. Mas a droga não bloqueia esses receptores. Pelo contrário: por meio de um processo químico chamado modulação alostérica, ela faz com que os receptores fiquem mais sensíveis ao GABA (um efeito que também é provocado pelo álcool). O cérebro continua produzindo a mesma quantidade do neurotransmissor, mas, como os receptores estão mais sensíveis, é como se houvesse mais dessa substância – e isso, além de induzir o sono (no chamado “efeito hipnótico”, que não tem nada a ver com hipnose), tem ação sedativa (reduzindo a irritabilidade e a excitação), ansiolítica (diminuindo a ansiedade), anticonvulsiva e de relaxamento muscular.
Todo esse poder numa única pílula era algo inédito na história da medicina. E os laboratórios capricharam no marketing dela, garantindo que tinha poucos efeitos colaterais – e, de quebra, não deixava na boca o gosto ruim dos brometos. As vendas dispararam. Mas, em 1925, os médicos William Leake e Richmond Ware publicaram um artigo na revista JAMA (da Associação Americana de Medicina) alertando para os riscos do barbital. Eles diziam que a droga podia ser obtida sem receita, mas seu potencial viciante não havia sido estudado. “A literatura médica, em especial na Alemanha e na Inglaterra, contém muitos relatos de envenenamento grave e óbitos pelo uso em doses excessivas ou em administração prolongada”, escreveram.
A comunidade científica não deu muita bola. Novos barbitúricos pipocaram nos anos seguintes, incluindo o fenobarbital e a pentobarbitona, usada também para induzir o sono na anestesia cirúrgica. Em 1929, a Califórnia aprovou a primeira lei restringindo a venda e o uso dos barbitúricos, mas ela não pegou. Tanto que a produção subiu de 70 toneladas, em 1936, para 300 toneladas em 1952 – quando o Congresso resolveu discutir o problema pela primeira vez. Na década anterior, as mortes por barbitúricos nos EUA haviam crescido 300%. E só perdiam, no ranking de envenenamentos, para os óbitos causados por inalação de monóxido de carbono.
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Mas nem isso foi capaz de freá-los. Em 1955, os EUA já estavam produzindo esses remédios em quantidade suficiente para abastecer 10 milhões de insones ao longo do ano inteirinho. No começo da década de 1960, Nova York estava registrando 1.500 casos de overdose e 200 mortes por ano relacionadas a essas drogas. Em 1962, o governo dos EUA estimou que havia 250 mil pessoas viciadas em barbitúricos no país – e a atriz Marilyn Monroe morreu por overdose deles. A atriz Judy Garland, em 1969, e o músico Jimi Hendrix, em 1970, tiveram o mesmo fim.
Mas, a essa altura, a indústria já desenvolvera outro produto: muito mais moderno e supostamente mais seguro.
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A era dos benzos
Em 1956, o químico polonês-americano Leo Sternbach recebeu uma missão do laboratório Hoffmann-La Roche: desenvolver uma alternativa mais segura aos barbitúricos. Criou diversos compostos, mas nenhum parecia eficaz. Colocou então um deles num vidro, batizou-o de “Ro 5-0690” e o deixou na prateleira, onde foi esquecido. O químico só lembrou do pó branco um ano depois, quando um técnico do laboratório perguntou se podia jogar o vidro fora. Sternbach retomou os estudos, e veio a descoberta: o Ro 5-0690 tinha efeitos hipnóticos, sedativos e de relaxante muscular. Ele chegou ao mercado em 1960, com o nome de Librium.
Começava ali a era dos benzodiazepínicos – o nome faz referência ao benzeno e à diazepina, os dois componentes da molécula. Em 1963, a Roche lançou o segundo “benzo”: o diazepam, com o nome Valium. Foi uma revolução. Os médicos começaram a receitar o remédio, em grande escala, para donas de casa ansiosas, insones ou simplesmente infelizes – isso até inspirou uma música dos Rolling Stones, “Mother’s Little Helper” (1966).
De início, os benzodiazepínicos pareciam totalmente seguros. Os cientistas demoraram 15 anos para decifrar o mecanismo de ação dessas drogas. Como os barbitúricos, elas tornam o cérebro mais sensível ao GABA, mas seu potencial de overdose é bem menor. Entre 1969 e 1982, o diazepam foi o remédio mais vendido nos EUA – com o pico, de 2,3 bilhões de comprimidos vendidos, em 1978.
Na década de 1980, porém, os efeitos colaterais começaram a pesar. Os médicos notaram que os benzos agiam não só no sono, mas também em outras áreas relacionadas ao receptor GABA. Prejudicavam a memória, a concentração e a coordenação motora, por exemplo. Mas o pior é que os pacientes precisavam de quantidades cada vez maiores do remédio para obter o mesmo efeito inicial. “As avaliações de uso e abuso de benzodiazepínicos demonstram claramente que eles produzem tolerância e dependência na administração de curto e longo prazos”, concluiu, já em 1990, um estudo da Universidade Cornell (2).
Hoje, os benzodiazepínicos ainda são muito usados como remédios para dormir – mas isso não é recomendado pelos médicos. “Se você está apenas ansioso, esses medicamentos até conseguem promover o sono. Mas não porque ajam como indutores do sono, e sim porque diminuem esse grau de ansiedade”, diz a neurologista Andrea Bacelar, presidente da Associação Brasileira do Sono. Isso leva a queixas frequentes nos consultórios, de pessoas que não conseguem dormir com esses medicamentos – em alguns casos, só apelando a doses cada vez mais altas. A dependência física também pode se manifestar. “Os receptores [cerebrais] estão ávidos pela substância. Então, no momento em que você não toma, começa a ter síndrome de abstinência”, afirma Bacelar. Os dois problemas se devem a uma particularidade do cérebro.
Se você tem colesterol alto, por exemplo, e toma um medicamento para isso, aquela droga se mantém eficaz a longo prazo – mesmo caso dos remédios para hipertensão, diabetes e quase todas as doenças crônicas. Só que o cérebro é diferente. Ele se ajusta à presença de substâncias estranhas, aumentando ou reduzindo a sensibilidade dos seus receptores químicos. É por isso que, após o uso contínuo, os medicamentospsicotrópicos – como os remédios para dormir – vão perdendo o efeito e começam a exigir doses cada vez mais altas. É por isso, também, que essas substâncias podem causar dependência: o cérebro se ajusta e passa a precisar delas para funcionar normalmente.
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E a síndrome de abstinência dos benzodiazepínicos é especialmente horrível: sua fase aguda dura vários dias e pode incluir ansiedade, tremores, confusão mental, ataques de pânico e até convulsões – sem falar numa insônia fortíssima.
Nos anos 1990, com a controvérsia começando a manchar a reputação dos benzos, a indústria farmacêutica tentou mais uma vez: e apresentou uma nova classe de medicamentos: os hipnóticos.
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As "drogas z"
A primeira dessas substâncias foi o zolpidem, do laboratório Sanofi, introduzido em 1988 na Europa e em 1992 nos EUA com o nome de Ambien (no Brasil, ele se chama Stilnox). Depois vieram suas variações: zaleplon, zopiclona e eszopiclone – todos os nomes contêm a letra “z”, daí essa família ser conhecida como “z-drugs”. Esses remédios também tornam o cérebro mais sensível ao GABA, mas fazem isso de um jeito diferente: só agem sobre uma subunidade dos receptores que é específica para o sono, a alfa-1. Como em tese eles só mexem com o sono, e não interferem nas outras funções do GABA, são chamados de “hipnóticos”.
Essa ação mais seletiva produz menos efeitos colaterais. E a meia-vida desses remédios também é mais curta. Se você toma um Rivotril (benzodiazepínico) às 22h, por exemplo, quase metade da dose ainda estará circulando no seu corpo na noite seguinte. Isso pode gerar sonolência, desatenção e falta de reflexos durante o dia. Já as drogas z somem do corpo em poucas horas. Por tudo isso, rapidamente se tornaram a principal indicação dos médicos para casos de insônia. Mas o tempo mostraria que elas não eram assim tão inocentes.
“Muitas pessoas,sobretudo as que têm insônia relacionada a outros distúrbios, como ansiedade, começaram a usar esses hipnóticos de maneira diária, às vezes abusando e somando doses prescritas pelo médico”, diz Bacelar. “E aí a gente passou a ter uma preocupação de dependência também com os hipnóticos. Se eles não forem usados adequadamente, podem se tornar uma medicação perigosa.”
Os estudos de segurança do zolpidem foram realizados com pacientes que usaram a droga por até um ano. “Não tem ninguém usando zolpidem há 20 anos, como acontece com os benzodiazepínicos. Por isso, ainda não sabemos os efeitos do uso prolongado”, afirma a médica do sono Luciane Mello, que trabalha no Hospital Federal da Lagoa (HFL), no Rio. Mas algumas pistas começam a surgir já em 2003, quando médicos da Universidade de Atenas, na Grécia, publicaram um artigo (3) apresentando oito casos de abuso e dependência de zolpidem em pessoas que o tomaram para insônia. “É possível que, nas altas doses que nossos pacientes utilizaram, o zolpidem abandone sua seletividade para o receptor [alfa-1, relacionado ao sono] e demonstre todas as ações dos benzodiazepínicos clássicos”, afirma o estudo.
Nos Estados Unidos, o zolpidem foi enquadrado na Categoria IV, que reúne medicamentos com potencial viciante – e que, portanto, só podem ser vendidos sob algumas restrições. No Brasil, ele também é controlado (exige receituário do tipo B, a “receita azul”, que a Anvisa fornece aos médicos em quantidade regulada), mas há uma brecha: na formulação de 10 mg, a mais baixa, esse medicamento é tarja vermelha (não preta) e vendido com “receita de controle especial”, branca, que o próprio médico pode imprimir. Isso torna o medicamento bem mais fácil de obter, facilitando seu uso abusivo.
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As drogas z, como o zolpidem, são menos aditivas que os benzos. Mas também causam dependência. E, embora tenham meia-vida mais curta, podem estar relacionadas a acidentes de trânsito. Em 2010, cientistas da Universidade Nacional de Taiwan analisaram (4) quase 13 mil pessoas hospitalizadas entre 1998 e 2004 devido a colisões. “O uso de zolpidem no dia anterior pode estar associado a um risco aumentado de acidentes”, concluíram. Em 2014, pesquisadores da Universidade de Nantes (5) analisaram os estudos publicados sobre o remédio na França – e encontraram vários exemplos de gente viciada.
“Os 30 relatos de casos obtidos com a revisão da literatura destacam um potencial significativo de dependência e abuso do zolpidem.” Nos EUA, há relatos de pessoas que tomaram o medicamento, não dormiram e tiveram alucinações (também há quem faça isso de propósito, lutando contra a ação do remédio para ficar acordado e sentir efeitos psicodélicos). Em alguns casos, no entanto, as consequências são ainda mais estranhas.
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Sonhando acordada
Numa noite de setembro de 2007, a australiana Mairead Costigan, de 27 anos, tomou um comprimido de zolpidem e foi dormir. Pegou no sono. Pouco depois, levantou-se da cama e saiu de casa de pijama. Fazia 10 graus lá fora, mas ela caminhou descalça por 15 minutos até a Ponte da Baía de Sydney. Câmeras de segurança que registraram o episódio indicaram que Mairead tinha uma expressão facial vazia, sem nenhum traço de emoção – típica de quem está passando por um episódio de sonambulismo. Mairead, que estava concluindo o doutorado em filosofia e recebera ofertas de emprego das universidades de Oxford e Cambridge, escalou uma mureta e despencou 20 metros até a morte. Ela vinha tomando zolpidem, sob orientação médica, havia nove meses – sendo que a bula recomenda “não exceder quatro semanas de tratamento”.
O sonífero também já foi associado a acidentes em que o motorista não se lembra de ter pegado o carro. E até crimes cujo autor não se lembra de ter cometido. Um artigo publicado em 2013 por três médicos dos EUA relata dois casos do tipo (6). Num deles, uma americana de 62 anos, identificada apenas como “Sra. B.”, matou o marido, atingindo-o no crânio várias vezes com um cano de metal e depois colocando um saco plástico ao redor da cabeça dele. A mulher, que não tinha histórico de agressividade, havia tomado pelo menos quatro comprimidos de zolpidem (não se lembrava ao certo) porque não conseguia dormir. Cinco dias antes, tinha começado a usar também o antidepressivo paroxetina, receitado por um médico.
A Sra. B. ficou em casa cerca de 24 horas após o homicídio. Amigos que falaram com ela pelo telefone a notaram estranha. “Eles ligaram para o 911 ao encontrá-la na banheira segurando uma faca na garganta”, escreveu a psicóloga Cheryl Paradis, da Marymount Manhattan College, em Nova York.
É possível que a Sra. B fosse uma psicopata enrustida, e tenha usado o medicamento como desculpa. Mas a história dela não foi a única. Em 2019, a FDA exigiu alterações na bula do zolpidem, do eszopiclone e do zaleplon, para deixar claro que podem causar “comportamentos complexos de sono”, resultar em “ferimentos graves e mortes”, “após a primeira dose ou após um longo período de tratamento, em pacientes sem nenhum histórico desses comportamentos e mesmo nas doses mais baixas” (7).
O mecanismo pelo qual as drogas z podem desencadear episódios como esses, chamados de parassonias, não é bem compreendido. A pessoa pode andar, falar, comer, dirigir, enviar mensagens ou até fazer sexo num estado entre o sono e a vigília, sem se lembrar de nada disso depois. Esse efeito colateral é raro e, segundo a neurologista Andrea Bacelar, geralmente só acomete quem tem depressão ou transtorno bipolar. “Estamos falando de uma medicação que é segura, sim. Mas que também exige cuidados e uma prescrição bem detalhada”, diz.
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Segundo ela, o médico deve manter um olhar atento sobre o paciente, que, por sua vez, nunca deve tomar o remédio antes da hora de dormir – como, por exemplo, às 17h ou 18h. “Ao fazer uso da medicação nesse horário, eu posso induzir o sono, mas com um despertar parcial. Vou dormir pela metade. Terei ondas de sono com ondas de vigília no cérebro. E nesse momento posso ter uma parassonia”, afirma. Como a ação do hipnótico é rápida, ele só deve ser tomado quando a pessoa já está na cama.
Em 2005, surgiu uma nova classe de remédios para dormir: a ramelteona, droga que imita a ação do hormônio melatonina [leia texto abaixo]. Era a primeira vez em mais de 100 anos que um sonífero não mirava o neurotransmissor GABA. Infelizmente, ele se revelou pouco eficaz: com esse medicamento, as pessoas pegam no sono 9 minutos antes, apenas, do que sem ele (8). A busca continuou. Em 2014, a Merck lançou nos EUA o suvorexant, o primeiro inibidor de orexina – um neurotransmissor que foi descoberto em 1998 e está relacionado à vigília. Se você reduzir a ação da orexina, a pessoa fica com sono e dorme.
O remédio era radicalmente diferente de tudo o que surgira antes, e por isso foi recebido com interesse. Em 2020 chegou aos EUA o lemborexant, segundo remédio dessa nova classe (nenhum dos dois está disponível no Brasil). Ambos foram enquadrados pela Drug Enforcement Agency na Categoria IV, de medicamentos com potencial viciante. E o suvorexant tinha outro problema. Uma análise de 2.290 relatos de eventos adversos comunicados à FDA ao longo de um ano revelou (9) que o medicamento estava ligado a 8 suicídios, 11 tentativas de suicídio, e 19 episódios de “ideação suicida” (em que a pessoa cogita se matar).
É um número modesto de casos, e não é exclusividade dos inibidores de orexina. A isotretinoína, por exemplo, usada em casos severos de acne, pode causar ideação suicida – e os antidepressivos também. Nem por isso esses medicamentos deixam de ter sua utilidade. Mas foi uma má notícia para o suvorexant: sua bula, além de alertar sobre a questão do suicídio, menciona o risco de “comportamentos complexos de sono, incluindo sonambulismo, dirigir dormindo e realizar outras atividades sem estar plenamente acordado”, bem como uma assustadora “inabilidade temporária de se mover ou falar (paralisia do sono) por vários minutos quando você está indo dormir ou está acordando.”
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A ciência ainda não consegue dominar o sono. Mas a falta dele tem solução. “O maior problema em relação à insônia não é o remédio. É o entendimento [dela]”, diz o médico Nonato Rodrigues, professor da UnB e especialista em medicina do sono. Para ele, o tratamento mais eficaz é a terapia cognitivo-comportamental (TCC), que é feita com um psicólogo e ajuda a modificar pensamentos e emoções. “Toda a literatura [médica] mostra que a TCC, associada com medicação durante algum tempo, é a melhor das escolhas”, afirma.
Em muitos casos, uma simples mudança de hábitos – boa alimentação, exercício, evitar o uso de telas antes de dormir – já resolve. “A ciência é fundamental para acharmos medidas terapêuticas, sejam farmacológicas ou não. Mas também é necessário aceitar que o comportamento influencia diretamente o sono”, diz a biomédica Monica Andersen. Para dormir bem, é preciso viver bem.
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Melatonina em comprimidos Ela funciona? É seguro tomar?
A melatonina é um hormônio que é produzido naturalmente pelo corpo e induz a sensação de sonolência. Nos últimos anos, muita gente começou a tomar uma versão em cápsulas, feita em farmácias de manipulação, para tentar dormir melhor. Ela até funciona, mas só num caso bem específico: em quem tem o chamado “atraso das fases de sono”. Ou seja, aquela pessoa que deita às 22h porque tem que acordar às 6h, mas só consegue pegar no sono bem mais tarde, tipo às 2h. Ela é capaz de dormir bem, só que adormecendo e acordando tarde. “Nesses pacientes, o uso de melatonina já está bem estabelecido”, diz a médica do sono Luciane Mello, do Hospital Federal da Lagoa, no Rio. Mas é só nesses casos. “A melatonina não faz parte do protocolo, para uso como medicamento, em pacientes com insônia”, explica ela. A melatonina só deve ser usada sob orientação médica. Ela tem baixo risco de dependência, mas seu uso indiscriminado pode provocar dor de cabeça, náusea e tontura, entre outros efeitos colaterais.
E os remédios para enjoo? Eles dão sono – e, por isso, muita gente usa para dormir.
Você talvez já tenha tomado remédios que não são para dormir, mas provocam sonolência.É o caso do dimenidrinato (Dramin, que evita vômitos e vertigens) e de alguns antialérgicos. Muita gente toma um deles antes de fazer viagens longas, por exemplo. É seguro fazer isso? “Se for de maneira pontual – a pessoa usa um Dramin para dormir num voo, por exemplo –, é pouco provável que haja problema”, afirma a médica do sono Luciane Mello. Isso é muito diferente de usar esses remédios para tentar aplacar a insônia. “Não recomendamos que um paciente tome um antialérgico ou outra medicação sedativa de maneira regular sem uma avaliação prévia. É preciso ver o diagnóstico”, diz Mello. Por mais inocentes que esses remédios possam parecer, seu uso contínuo pode criar problemas. O dimenidrinato, por exemplo, não tem grande risco de criar dependência – mas a bula adverte que pacientes asmáticos, com glaucoma ou doença pulmonar devem ter cuidado, pois ele pode piorar os sintomas dessas doenças.
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FONTES 1. Objective Prevalence of Insomnia in the São Paulo, Brazil Epidemiologic Sleep Study. L Castro e outros, 2013. 2.Benzodiazepines: reconsidered. Adv Alcohol Subst Abuse, N S Miller e M S Gold, 1990. 3.Zolpidem dependence case series: possible neurobiological mechanisms and clinical management. IA Liappas e outros, 2003. 4. Increased risk of hospitalization related to motor vehicle accidents among people taking zolpidem: a case-crossover study. Yao-Hsu Yang, 2010. 5. An update on zolpidem abuse and dependence. Caroline Victorri-Vigneau e outros, 2014. 6. Two cases of zolpidem-associated homicide. C. Paradis e outros, 2012.
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