Anestesia
A descoberta de substâncias que inibem dores intensas proporcionou um grande salto na cirurgia: operações antes só realizadas em ultimo caso tornaram-se rotina
GIsela Heymann
Quem já não viu um filme de faroeste, onde o fiel companheiro do herói é ferido na perna? Sem poder andar, não lhe resta outra alternativa senão beber uma golada de uísque e morder com força um pedaço de pano, enquanto o mocinho, a sangue-frio, retira a bala e limpa a ferida: A cena não está tão longe da realidade como se poderia imaginar. De fato, apenas no século passado é que cientistas americanos descobriram os efeitos anestésicos de substâncias como o éter e o óxido nitroso, este mais conhecido como gás hilariante.
Suas propriedades sedativas haviam sido descobertas pelo químico inglês Sir Humphry Davy em 1799.0 gás foi usado nas primeiras décadas do século XIX não em Medicina; mas em espetáculos públicos, onde homens perambulavam rindo sob o seu efeito. Certa vez, um jovem dentista americano chamado Horace Wells foi a uma dessas apresentações. Muito atento, Wells notou que um cidadão que havia cheirado o gás batera violentamente com a perna numa cadeira sem pronunciar sequer um ai.
No dia seguinte, tomou uma decisão corajosa e radical: pediu a um aprendiz que lhe arrancasse um dente enquanto estivesse sob a ação do gás. Não deu outra: a extração foi indolor.
Ajudado por um amigo e aluno, William Thomas Green Morton, Wells tentou, em 1845, demonstrar cientificamente a descoberta, convocando seus colegas a uma apresentação no Hospital Geral de Massachusetts, em Boston. Desta vez, porém, a experiência não deu certo: o paciente gritou de dor e o dentista foi exposto ao ridículo.
Apesar do fracasso do mestre, Morton voltou seus estudos para o campo ainda virgem da anestesia. Pediu então a outro professor, o químico Charles Jackson, que lhe falasse de suas pesquisas com o éter. Morton se entusiasmou com o que ouviu, fez experiências por conta própria e, em 1846, apenas um ano após a desastrada tentativa de Wells, apresentou-se duas vezes no mesmo hospital de Boston. Na primeira, extraiu um dente sem que a vítima sentisse dor.
Na segunda, anestesiou com éter um doente do qual seria retirado um tumor – e ele nada sentiu durante a operação. O dentista foi aclamado.
Segundo o relato de alguns historiadores, Charles Jackson, o amigo químico de Morton, ficou furioso quando percebeu que não seria lembrado pela descoberta. Buscou o reconhecimento durante anos, mas desistiu quando outro americano, Crowford Williamson Long, um médico do interior, divulgou suas experiências com o éter, datadas de 1842, portanto quatro anos antes da demonstração de Morton.
Como a população de Jefferson – a cidade da Georgia onde Long clinicava – tinha desaprovado seu método, ele escondera o feito da comunidade científica, com medo de perder o direito de exercer a Medicina ou, pelo menos, de perder a fiel clientela da província. Seja como for, hoje se aceita que tanto Morton como Long descobriram a anestesia, cada qual de seu lado. Ao primeiro, porém, ainda cabe a glória de tê-la divulgado.
Apesar das divergências e dos acidentes ocorridos nas primeiras experiências, a anestesia se desenvolveu a passos largos. Além do éter e do óxido nitroso, já a partir de 1847 o clorofórmio também passou a ser empregado. Em 1853, o médico inglês John Snow usou a substância em ninguém menos que a rainha Vitória, no parto de seu oitavo filho, Leopoldo. Tempos depois, porém, o clorofórmio foi sendo abandonado aos poucos, devido às inúmeras complicações cardíacas e hepáticas que provoçava. O éter só recentemente – deixou de ser usado, por ser explosivo; o gás hilariante até hoje éutilizado. Em 1884, o oftalmologista checo Carl Koller, que então trabalhava no Hospital Geral de Viena, utilizou pela primei1″a vez a cocaína como anestésico local numa cirurgia de vista. Ele começou a estudar a substância a pedido de um colega chamado Sigmund Freud, empenhado por sua vez em curar um amigo viciado.
A conseqüência do rápido desenvolvimento de substâncias e técnicas anestésicas foi sentida na cirurgia, muito aperfeiçoada a partir de então. A função do anestesiologista que integra uma equipe de cirurgia não se restringe à aplicação das inúmeras drogas disponíveis. A ele cabe, além disso, controlar o estado geral do paciente antes, durante e logo depois da operação. Não é para menos. O processo anestésico tornou-se tão complexo que todo cuidado é pouco.
Atualmente existem dois tipos de anestesia geral: a inalante e a endovenosa. Na primeira, o líquido anestésico é vaporizado e inalado pelo paciente. O vapor vai até o pulmão e a partir daí entra na corrente sanguínea, sendo distribuído por todo o corpo. Quando chega ao cérebro, bloqueia os impulsos nervosos que trazem a mensagem da sensação dolorosa.
Na do tipo endovenoso, a droga é injetada diretamente na veia de onde segue ao coração e então se distribui pelo organismo como no primeiro caso. Em ambas as versões, entram, no mínimo, três medicamentos: um, para fazer o paciente dormir; outro, para mantê-lo imóvel, com os músculos relaxados; e, por fim, o analgésico propriamente dito, que combate a dor.
Já a anestesia local insensibiliza apenas uma região do corpo. E o caso da raquianestesia, muito usada em operações de parto e fraturas de membros inferiores. Injeta-se o medicamento no espaço entre as terminações nervosas que saem da medula espinhal e a membrana que as protege chamada subaracnóide. Esse espaço é preenchido por uma substância chamada liquor que leva a droga ao tronco nervoso que comanda a parte do corpo a ser anestesiada. Ainda não se sabe como os nervos, respondem ao estímulo anestésico. E certo, porém que as drogas deprimem o sistema circulatório e diminuem o ritmo de funcionamento de todo o organismo.
Isso torna a dosagem muito importante. Uma pessoa mais sensível, submetida à mesma quantidade de anestésico dada a outra, normal, pode sofrer até uma parada cardíaca, ou um choque anafilático – uma reação alérgica que chega a matar. Os acidentes mais comuns são devidos à interação da anestesia com outros medicamentos. As combinações e reações são tantas, que nenhum ·anestesiologista pode prever todas elas. Enquanto diversas teorias sobre a ação dos anestésicos esperam comprovação científica, para os chineses tudo parece muito simples. A prática milenar da acupuntura passou a fazer parte das salas de cirurgia na China a partir da década de 60 e, desde então, não cessa de propagar-se pelo mundo.
Divulgou-se muito, por exemplo, um episódio que envolveu o conhecido jornalista americano James Reston. Em 1972, cobrindo a histórica viagem do então presidente Richard Nixon à China, Reston precisou ser operado às pressas, por causa de uma apendicite. Ele mesmo escolheu a anestesia: as agulhas da acupuntura – e tudo correu às mil maravilhas.
A aplicação de agulhas em pontos específicos do corpo estimula o cérebro a produzir analgésicos naturais chamados endorfinas, que bloqueiam a, dor (SUPERINTERESSANTE n.º 6). Atualmente, desde alguns exames preventivos até os complicados transplantes de órgãos, tudo é possível graças ao controle da dor. Seria realmente de espantar se hoje em dia o amigo do mocinho ainda precisasse se encharcar de uísque para suportar a extração de uma bala na perna.