Assim caminha a humanidade
Andar, correr, pular, chutar, dançar: pesquisas revelam passo a passo todo o trabalho mal recompensado dos pés e ensinam como proteger essa eficiente estrutura.
Lúcia Helena de Oliveira
O jogador está parado, esperando a ordem do juiz para cobrar o pênalti. Ao soar o apito, ele dá alguns passos para trás, corre, chuta a bola com violenta precisão e comemora o gol aos saltos de alegria. A torcida eufórica talvez ponha nas nuvens a pontaria do artilheiro ou a força do chute, mas poucos se lembrarão dos verdadeiros responsáveis pela proeza, aqueles que sustentaram o atleta, impulsionaram o corpo a toda velocidade e enfim lançaram a bola na direção da rede — os pés. Aliás, além de não lembrar o que é devido, quase ninguém olha direito por onde anda, até porque andar é um ato reflexo, algo que se faz sem pensar. Assim, costuma-se passar distraidamente por cima dos pés, estes pedestres trabalhadores que estão em serviço mesmo quando imóveis, como os do jogador à espera do apito do juiz, e, em movimento, fazem a humanidade caminhar também no sentido figurado da palavra. Se uma pessoa permanece estática ou se ela anda, se dispara correndo ou sai pulando, para cada situação existe uma expressão corporal específica dos pés — um modo próprio de pisar. Os ossos, os músculos e os ligamentos de cada pé se comportam de forma diferente no passo de uma bailarina ou na marcha de um soldado, por exemplo. Essa versatilidade permite ao homem se movimentar segundo os mais diversos ritmos e coreografias. Em compensação, um bicho, ao andar de quatro, tropeça menos do que o ser humano que, para ter mãos livres e com elas modelar o mundo, ergueu duas patas, tornando-se bípede. Pôr apenas dois pés pelas mãos no chão tem um preço, que qualquer estudante de Geometria entende: onde existem no mínimo três pontos — e no caso dos quadrúpedes existem quatro — passa um plano, figura que se assenta com facilidade na superfície; já por dois pontos, formados pelos dois pés, só pode passar uma linha. Ou seja, é como se o homem sempre estivesse em uma corda bamba.
Resultado: o ser humano é o único animal com problemas de coluna e com eventuais dores de cansaço nos pés, embora estes permaneçam firmes no chão. “O equilíbrio é possível principalmente porque a sua estrutura óssea não é uma peça única soldada”, nota o professor de Anatomia Aldo Junqueira Rodrigues, da Universidade de São Paulo, enquanto movimenta o esqueleto de um pé sobre a mesa, mostrando como os 26 ossos se acomodam aos altos e baixos de uma superfície coberta de livros e papéis. Além desse jogo de balanço, são responsáveis pela eficiência dos pés na tarefa de suportar o corpo 21 tiras fibrosas resistentes, os chamados ligamentos, que amarram os ossos para formar três arcos de sustentação: um lateral, um longitudinal e um transversal. “A maioria das pontes é em arco, a estrutura considerada ideal pelos engenheiros para agüentar grandes pesos”, compara Rodrigues.
De fato, cada pé tem de 20 a 25 centímetros quadrados de área para sustentar um adulto parado no ponto de ônibus ou na fila de um banco. Quando uma pessoa fica em pé, a ponta da coluna lombar, conhecida como sacro, divide o peso em partes iguais sobre as duas pernas. Assim como a pedra angular de uma ponte reparte a carga pelas duas extremidades, a articulação que liga a perna ao pé distribui o peso do corpo entre o calcanhar e a base dos dedos. Mas como, na verdade, aquela articulação não fica bem no meio, como no caso da pedra, cerca de 70 por cento da carga acaba pesando sobre o calcanhar e apenas os 30 por cento restantes são sustentados na ponta do pé.
A situação só muda quando a contração dos músculos da perna e um leve requebrar da bacia arrancam um pé do chão: é quando se dá o primeiro passo de uma caminhada. “Então todo o peso fica sobre um único calcanhar e vai se deslocando para os dois primeiros dedos”, descreve o anatomista Rodrigues, em pé na sua sala, reproduzindo em câmara lenta os movimentos. A mímica, porém, não sai perfeita porque, desde que sofreu um acidente na fazenda, no início do ano, o médico anda com problemas no hálux, o popular dedão. É esse dedo que, durante frações de segundo, suporta todo o corpo e, feito uma alavanca, dá o impulso jogando o pé para trás, marcando o início de um novo passo.
Não se negue, porém, a importância dos outros dedos, que em eternos pequenos movimentos vão agarrando o solo a cada passo. Sem eles, o homem sacolejaria como uma carroça com a roda lisa de madeira passando aos trancos sobre os obstáculos existentes no chão. Os dedos equivalem, portanto, às ranhuras esculpidas no pneu de um trator, razão pela qual é capaz de atravessar tranqüilamente os terrenos mais difíceis. “É por isso que, usando sapatos, os quais dificultam o mexer dos dedos, é muito mais complicado subir em uma árvore”, exemplifica o ortopedista paranaense Guglielmo Mistrorigo. Um passeio pode se tornar muito mais cansativo, contudo, para quem não tem as curvaturas dos pés — são os chamados pés planos, como dizem os médicos, ou pés chatos, como diz todo mundo. Neles, as articulações da região plantar desabam a ponto de repuxar os ligamentos dos dedos; estes, dessa forma, mal encostam no chão para auxiliar o andar.
Assim, os quarenta músculos dos pés acabam tendo um trabalho extra para avançar — daí que o dono do pé chato é um preguiçoso por justa causa, pois caminhar poucos metros que seja lhe custa o dobro de energia em relação ao pé normal e, eventualmente, provoca dores. “A criança com pé chato vive pedindo colo”, observa Mistrorigo. Mas, na infância, quando os ligamentos são frouxos e a musculatura ainda é fraca, o pé chato é quase uma unanimidade. Na criança os arcos podem até existir, mas quando elas ficam em pé o peso do corpo os achata — por isso, os primeiros passos do ser humano são desengonçados, como se calçasse pés-de-pato.
No final dos anos 60, Mistrorigo encontrou em uma festa a mãe de duas ex-pacientes, às quais ele havia receitado as tradicionais botas ortopédicas, com palmilhas que forçam a formação dos arcos. “A mulher elogiou o tratamento”, recorda-se o ortopedista. “Mas, antes que eu saboreasse o comentário, ela acrescentou que as botinhas eram tão eficazes que as filhas só as usavam três vezes por semana e, mesmo assim, ficaram curadas.” Desconfiado, Mistrorigo mais tarde arriscou abandonar as “botinhas milagrosas” em alguns casos e, desse modo, constatou algo que durante muito tempo deixou seus colegas com um pé atrás: “O pé plano nas crianças costuma ser um fenômeno temporário, que se corrige naturalmente sem a ajuda do médico”.
De fato, um estudo com mais de 3 mil pessoas, publicado por ortopedistas americanos no início do ano, confirmou que apenas uma em cada 25 crianças continua com pés chatos depois dos 6 anos, calçando ou não palmilhas ortopédicas. Segundo o professor Henrique Sodré Fialho, da Escola Paulista de Medicina, que há dez anos se dedica exclusivamente ao estudo dos pés, tanto o pé normal como o chato ou ainda o cavo — aquele com arcos exagerados — não dão um passo sequer sem exigir conforto, “sem manter as estruturas no lugar certo para caminhar”. Nesse sentido, o mundo caminha muito mal — porque caminha calçado. O sapato, criado ao que tudo indica pelos egípcios há 4 mil anos para proteger a sola natural dos pés, tornou-se com o tempo e com a moda um confinamento, algo que impede a acomodação correta dos ossos.
Cada homem que reclama de dores provocadas por esse verdadeiro espartilho pode estar certo de que a queixa é compartilhada por dezoito mulheres. A proporção é uma questão de altura. Embora os homens costumem calçar dois ou três números maiores do que as mulheres, graças ao seu esqueleto avantajado, a única diferença entre o pé masculino e o feminino é que este último tende a sofrer o castigo adicional do uso costumeiro de saltos altos, os quais deixam o pé feito uma ladeira sobre a qual o peso rola para baixo. “O melhor modelo de sapato é o do homem”, receita o médico Sodré. Mas, cá entre nós, o andar de Marilyn Monroe não seria tão sinuosamente sedutor se ela calçasse um mocassino baixo de bico largo em vez de um salto agulha 7,5.
Os saltos, na realidade, foram uma invenção de machos, criados no século XVI para os oficiais do exército francês acomodarem o pé no estribo das montarias. No entanto, ao adotá-los, há pouco mais de cem anos, as mulheres parecem intuitivamente ter aprendido uma lição de anatomia. “Para compensar o peso jogado para a frente”, descreve Sodré, “a coluna lombar vai para trás, arrebitando o bumbum.” Além disso, os saltos ajudam a mulher a exibir uma antiga marca de feminilidade, isto é, caminhar a passinhos curtos, como gueixas. Isso porque andar é empurrar o chão para trás: ao contrair-se, o músculo da barriga da perna, que termina no tendão de Aquiles, flexiona os artelhos e apóia o calcanhar; o mesmo músculo se estica e, então, como uma alavanca, o pé puxa o solo.
Quanto maior o salto do sapato, menos o pé consegue fazer tal flexão e, portanto, menor a alavanca e menor o passo. Aliás, é justamente para aumentar a alavanca que os atletas largam agachados nas corridas, com os pés totalmente flexionados. Correr, porém, é outra história, pois de acordo com o ortopedista Flávio Murachovsky, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, “há instantes em que ambos os pés ficam no ar e só as pontas tocam o solo”. Para quem busca velocidade, bater o calcanhar no chão é amortecer o impacto — e o ritmo. Mas o que não falta, segundo Murachovsky, é gente pisando errado ao acelerar a marcha. As conseqüências mais comuns são as entorses, quando o osso do tornozelo sai e volta imediatamente para o seu lugar. “O deslocamento, embora breve, é suficiente para machucar os ligamentos ao redor”, explica o médico, especialista em traumas. Para o ortopedista paulista Osny Salomão, o avanço atual da Ortopedia foi possível graças ao aparecimento, há cerca de dez anos, da Biomecânica, a área da ciência que estuda os movimentos do homem. Hoje se sabe, por exemplo, que um pé se cansa menos ao chutar uma bola com força do que nas freadas repentinas que um jogador é obrigado a dar para driblar o adversário — algo que exige muito mais habilidade. Forçam mais os pés, no entanto, os jogadores de vôlei que, nas cortadas, caem sobre os pés com um peso quatro vezes maior do que o apontado na balança. Sempre que se pula numa quadra ou numa aula da saltitante ginástica aeróbica, quem faz força é a perna, mas quem pode sofrer são os pés: a musculatura relaxa para que os ossinhos, um por um, com diferença de frações de segundo, se amontoem ao bater no solo.
Quanto mais forte o impulso, maior o pulo e menor a capacidade dos amortecedores do pé. Assim, por exemplo, quando o jogador Oscar, da seleção brasileira de basquete, com seus 2,04 metros e 102 quilos, volta do salto para fazer uma cesta, seus pés sofrem um impacto de 800 quilos a uma tonelada. “Mas o pé mais problemático é o da bailarina”, sustenta Osny Salomão que, aliás, se considera privilegiado por nunca ter sentido, em seus 54 anos, uma dor no pé. Quem vê o suave deslizar de um par de sapatilhas no palco não imagina que elas costumam calçar pés deformados por calos — que nada mais são do que a resposta da pele a uma situação de aperto. No caso, o aperto provocado pelos ossos metatarsianos dos dedos que, afinal, não nasceram para enfrentar, na posição vertical, a força da gravidade.
“Apesar da aparência, o problema não está tanto em ficar na ponta do pé, já que a musculatura da bailarina começa a ser treinada, a partir dos 5 anos, para diminuir o esforço dos ossos”, revela Salomão. “O pior mesmo é o número de horas que uma bailarina ensaia diariamente.” Sim, porque as articulações do pé suportam pegar no pesado por tempo limitado: a pressão constante faz o material rígido dos ossos e ligamentos ceder, causando um desgaste chamado artrose, que torna os movimentos difíceis como os de uma máquina enferrujada. Nos esportes, ao menos, existe uma corrida tecnológica para evitar seqüelas desse tipo, desde que nos anos 70 surgiram os primeiros tênis especiais para corrida . Justa preocupação: o carioca, ao praticar jogging em Copacabana, talvez nunca tenha se dado conta de que, percorrendo a praia de ponta a ponta, estará tocando o solo cerca de 10 mil vezes com um impacto equivalente a duas vezes e meia o peso do corpo.
“Atualmente, os pesquisadores sabem que cada esporte merece um tênis projetado especificamente para diminuir os riscos de lesões e melhorar o desempenho do atleta”, conta o médico Mário Donato, que fez doutorado em Biomecânica na Escócia e comanda um bem montado laboratório na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Criar tênis para os brasileiros tem sido uma tarefa sob medida: uma pesquisa realizada há dois anos pela UFRJ apontou, por exemplo, que o pé nacional é cerca de 2 centímetros mais largo do que a média dos pés europeus. É irônico, mas, numa época em que a Medicina caminha a passos largos, prolongando a saúde de cada órgão, justamente as pessoas que mais correm, pulam e caminham, ou ainda driblam e chutam bolas a gol impecavelmente, têm a vida útil dos pés abreviada: os ligamentos afrouxam, os ossos se deslocam, a pele cria calos, a distribuição equilibrada do peso é perturbada. Conhecer a força que o pé faz é meio caminho andado para proteger essa estrutura que garante ao homem o direito de ir e vir.
Para saber mais:
(SUPER número 1, ano 2)
(SUPER número 4, ano 9)
(SUPER número 3, ano 11)
Pé ante pé
Tudo que acontece durante um passo
O pé flexiona-se, apoiando-se no calcanhar, para onde o peso do corpo se desloca.
Então, encosta completamente no chão, dividindo o peso do corpo pelas duas extremidades enquanto o joelho começa a se dobrar para dar impulso. Ao mesmo tempo, o osso da bacia, na altura dos quadris, inclina-se para encurtar a outra perna e assim arrancar o outro pé do chão.
Como o corpo é levado para a frente, graças ao impulso do joelho, a carga sobre os pés começa a se deslocar em direção aos dedos; à medida que isso acontece, o calcanhar vai se erguendo.
Nesse instante, praticamente todo corpo é sustentado pelos dois primeiros dedos; o hálux, ou dedão, empurra o solo para trás e as articulações do joelho tiram o pé do chão. Enquanto isso, o outro pé já deve esperar flexionado, apoiado no calcanhar — é o início de um novo passo.
Anatomia de um tênis
Fazer o pé se sentir como se despencasse sobre uma cama de algodão: há quinze anos essa tem sido a pretensão dos fabricantes de tênis. Assim surgiram os solados porosos, usados até hoje, cujas inúmeras bolsinhas de ar absorvem choques. Mas, “com o tempo, o emborrachado acaba se compactando”, nota Amaury Rosenberg, gerente de marketing no Brasil da Nike, que vende 70 milhões de pares por ano no mundo inteiro. Por isso foram criados dispositivos para completar o sistema amortecedor, como bolsas de líquidos ou molas de um vinil especial embutidos no solado. Há dez anos, a Nike criou o airbag (bolsa de ar, em inglês): um gás, cuja fórmula é guardada a sete chaves, é encapsulado para funcionar como um trampolim, transformando o impacto em impulso. “Com isso, o atleta se cansa menos”, garante Rosenberg.
Outro objetivo dos tênis modernos é evitar torções: as palmilhas agora costumam ter uma espécie de moldura para que o pé não saia do lugar. Para que o calcanhar tampouco se mexa acrescentou-se uma peça rígida de plástico, o contraforte, moldada no seu formato. Um dos detalhes mais importantes, porém, são aquelas ranhuras visíveis na sola de borracha, que tornam o calçado especialmente adequado a certos movimentos. Nos tênis de basquete, por exemplo, o desenho de uma espiral ajuda o pé a deslizar nos giros necessários durante a partida.