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Marcia Angell e os bastidores da indústria farmacêutica

A médica americana é capaz de curar sem dificuldade dores de cabeça. Mas ela prefere mesmo é causá-las

Por Tania Menai
Atualizado em 17 mar 2017, 19h50 - Publicado em 30 jun 2006, 22h00

Ex-editora de uma das mais respeitadas revistas médicas do mundo, Marcia Angell fala sobre os bastidores da indústria farmacêutica e diz que os médicos estão sendo educados para receitar os tratamentos mais caros – mas não necessariamente os melhores.

A médica americana Marcia Angell é capaz de curar sem dificuldade dores de cabeça. Mas ela prefere mesmo é causá-las. Acadêmica sênior do Departamento de Medicina Social da Universidade Harvard, Marcia escreve textos que cutucam a ética na medicina. Seu livro mais recente, The Truth About Drug Companies (“A Verdade sobre as Empresas Farmacêuticas”, sem tradução em português), causou enxaquecas na indústria de remédios ao colocar do avesso questões como a prescrição de medicamentos recém-lançados, remédios com campanhas publicitárias mais caras que as dos tênis mais modernos e, principalmente, a controversa relação entre médicos e a indústria farmacêutica. Durante 21 anos, Marcia assinou artigos na New England Journal of Medicine, uma das mais prestigiadas revistas de pesquisa médica do planeta. Deixou a redação no ano 2000, quando ocupava o cargo de editora-executiva. Grande defensora da ciência e mãe de duas filhas, Marcia já foi considerada pela revista Time uma das 25 personalidades mais influentes dos EUA.

P. Você causou polêmica ao criticar a maneira como as empresas farmacêuticas se relacionam com os médicos. Em que medida esse vínculo realmente afeta aos pacientes?

R. Ele é péssimo para os pacientes. As farmacêuticas gastam dezenas de bilhões de dólares para seduzir os médicos oferecendo viagens e convenções. E o pior, muitas vezes fazem isso fingindo que os estão educando. O resultado dessa convivência é que os médicos aprenderam um estilo de medicina que se baseia em remédios. E mais: que remédios recém-lançados, normalmente mais caros, são melhores do que os antigos, ainda que não haja qualquer evidência científica que sustente essa idéia. Os médicos estão aprendendo que para cada reclamação de um paciente há um medicamento que soluciona o problema.

O primeiro contato entre empresas e médicos muitas vezes é feito ainda nas universidades. Isso é saudável?

Universidades e hospitais deveriam proibir que isso acontecesse. Esses estabelecimentos dão liberdade total para profissionais que não passam de vendedores farmacêuticos. Eles distribuem amostras grátis para os médicos jovens nos corredores, pagam almoços e dão brindes de todos os tipos. São pizzas, canetas e blocos de anotações que no futuro vão se transformar em presentes bem maiores, como viagens para o Havaí ou a resorts para jogar golfe. Se essas mesmas instituições proíbem a entrada de vendedores de refrigeradores, elas poderiam, facilmente, banir qualquer outro vendedor. Basta querer.

É cada vez mais comum encontrar anúncios publicitários de medicamentos. Que tipo de resposta os pacientes dão a essas propagandas?

É comum escutar que “um consumidor educado é algo desejável”. E isso não deixa de ser verdade. Mas, nesses casos, os consumidores não estão sendo educados, eles são apenas alvos de marketing. A resposta aos anúncios é o paciente pressionar seu médico a receitar esses remédios mais novos – e mais caros – que viram na televisão. Para os médicos, é mais rápido receitar o tal remédio para o paciente do que explicar por que ele não precisa daquele medicamento. E já que hoje os médicos são obrigados a atender pacientes em consultas cada vez mais rápidas, eles acabam abocanhados por essa armadilha. Deveriam bater o pé e tratar o paciente da forma que ele realmente precisa.

As empresas farmacêuticas afirmam que investem bilhões de dólares em pesquisa de novos medicamentos e usam a propaganda como estratégia para reaver seus investimentos. Você concorda?

Isso é no que as farmacêuticas gostariam que nós acreditássemos. Mas não é assim que funciona. Primeiro, elas são muito menos inovadoras do que se pensa e fazem pouco em termos de pesquisa contra doenças sérias, como aids ou câncer. Elas fazem experimentos clínicos, mas não o trabalho essencial, que é realizado pelos cientistas ligados às redes de saúde de vários países e pelas universidades. E isso acontece porque a indústria farmacêutica está mais preocupada com o marketing do que com a pesquisa e desenvolvimento. Em 2004, o conjunto das 9 principais farmacêuticas americanas teve lucros sobre vendas 3 vezes maiores que a média das outras 500 empresas mais rentáveis dos EUA. Elas gastam 15% do orçamento em pesquisa e desenvolvimento – isso é menos do que a metade do que gastam com administração e marketing.

Mas, apesar da fama de ter ótimos resultados financeiros, a indústria farmacêutica vem perdendo espaço ano a ano entre as mais lucrativas. Após duas décadas na liderança do ranking das 500 mais rentáveis, feito pela revista Forbes, as farmacêuticas agora estão na 5ª colocação. O que está acontecendo?

Essa queda começou em 2001, quando expirou a patente do Prozac. A seguir, várias empresas tiveram problemas similares. Por uma coincidência, alguns dos medicamentos mais vendidos – estamos falando de uma receita anual de cerca de 35 bilhões de dólares – estão com suas patentes para vencer nos próximos anos. E, para piorar, há muito poucos remédios prontos para ocupar o espaço desses “blockbusters de farmácia”. Das 78 drogas aprovadas pela FDA em 2002, por exemplo, apenas 7 foram classificadas como avanços em relação a outras drogas. As outras 71 não passavam de variações de outras drogas que já existiam no mercado.

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O que poderia ser feito para aprimorar a atuação dessas empresas?

Uma das reformas mais importantes que poderiam entrar em vigor imediatamente é exigir que as empresas testem suas novas drogas em comparação às já existentes, e não a placebos. Também seria saudável que elas trouxessem a público os detalhes de seus gastos com pesquisa e com marketing.

É comum ouvir que as farmacêuticas não investem na pesquisa de remédios contra doenças do terceiro mundo, como malária ou leishmaniose, porque países pobres não conseguem garantir o retorno financeiro do investimento. Como a medicina deve se portar diante desse tipo de questão?

Essa é uma situação terrível. Há 20 anos, realidades como essa eram mostradas escancaradamente em revistas médicas, quando o resultado de novos medicamentos eram medidos por seus benefícios em dólares. Colocava-se um preço nos anos de vida ganhos pelo tratamento: se um executivo de propaganda ganhava 500 mil dólares por ano, a vida dele era medida a partir daquele preço. Portanto, os tratamentos mais caros seriam justificáveis. Nesses parâmetros, se uma dona-de-casa tivesse a mesma doença, sua vida valeria quase nada. Felizmente, não vejo mais isso acontecer, apesar de acreditar que a indústria ainda se comporte assim, mesmo que implicitamente.

Você escreveu uma resenha positiva sobre o filme O Jardineiro Fiel, do diretor brasileiro Fernando Meirelles, que trata de pesquisas de medicamentos em países de terceiro mundo. Quão importante foi levar o tema para o cinema?

Muito importante. O filme é muito bom, concordo com o ponto de vista da história. Eu gostaria, apenas, que ele tivesse explicado por que as farmacêuticas estavam fazendo aquilo. Creio ser possível que muitas delas conduzam testes de novas drogas em pacientes na África para não ter de seguir as linhas de conduta de comitês de ética e da FDA.

Como ex-editora de uma das mais importantes revistas de divulgação científica, como você viu a recente descoberta de que um pesquisador coreano fraudou seus estudos sobre células-tronco publicados em jornais científicos?

Não há nada que nós editores possamos fazer. Informações fabricadas são feitas meticulosamente e, se forem plausíveis, não há como detectá-las. Editores recebem os manuscritos, eles não estão no laboratório ou ao lado da cama do paciente examinando passo a passo. Não há maneiras de verificar se o material é totalmente fidedigno. Quem acaba por revelar as fraudes, normalmente, são os colegas de trabalho que deduram os cientistas. E, infelizmente, a publicação de fraudes acontece com remédios também. Resultados indesejados são simplesmente abafados. Houve o caso de um medicamento para a artrite chamado Celebrex. Um teste publicado na revista da Associação Médica Americana dizia que ele causava menos efeitos colaterais do que drogas existentes. Só depois da publicação os editores descobriram que os resultados eram baseados apenas nos 6 primeiros meses de de teste. Quando o teste inteiro foi analisado, não havia vantagem no uso do Celebrex a longo prazo.

Em uma palestra recente, você disse que os EUA têm dado as costas à ciência. O que está acontecendo?

Temos visto uma grande adoção de noções anticientíficas. Há escolas sendo pressionadas a ensinar criacionismo em vez de evolucionismo. Há várias tentativas de desacreditar descobertas científicas, como o aquecimento global. O governo apresenta esse assunto como controverso, algo que, na verdade, ele não é. A medicina alternativa está ressurgindo depois de ter quase desaparecido por conta dos grandes avanços medicinais pós-2ª Guerra. Muitos desses métodos, além de não serem provados, viram as leis científicas de cabeça para baixo.

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O que tem levado essas pessoas a se afastarem da ciência?

Uma das razões é a educação científica precária. Professores ganham mal, então as pessoas mais talentosas não são atraídas para ensinar. Além disso, para ser professor de ciências não é preciso ser cientista. Então, muitas vezes esses professores não sabem o que estão ensinando. O que se aprende em ciências, em vários casos, não passa de uma coleção de fatos. As crianças aprendem como os animais são classificados e como as coisas são vistas pelo microscópio. Mas elas não aprendem a pensar cientificamente – e isso é justamente o oposto de decorar fatos. Pensamento científico envolve ceticismo, até que haja provas. Deveríamos ensinar a maneira de avaliar evidências e como fazê-lo de forma crítica.

Marcia Angell

• Foi editora-executiva da New England Journal of Medicine. Quando deixou o cargo, escreveu um livro sobre os bastidores da indústria farmacêutica.

• É apaixonada por música e adora ir a concertos.

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• Tocava piano e violino, mas uma artrite nas mãos obrigou-a a largar os instrumentos.

• Está lendo Dark Ages America (“América Anos Negros”, sem tradução em português), em que o historiador Morris Berman defende a tese de que os EUA estão em trajetória irreversível de declínio.

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