Eutanásia: os limites do direito de morrer
Em 13 países, pacientes têm a possibilidade de pedir a interrupção da própria vida para aliviar o sofrimento – algo impensável no Brasil. Saiba o estado atual das leis sobre eutanásia e suicídio assistido mundo afora, e conheça suas fronteiras éticas mais espinhosas.
Texto: Bruno Vaiano | Design: Caroline Aranha
Ilustração: Luiz Mello | Edição: Alexandre Versignassi
Um grupo de amigas idosas se despede e sobe em seus carros após tomar chá da tarde. São 16h de um domingo em outubro de 2016. Elas estão em Maungaraki, subúrbio pacato da cidade de Lower Hutt, na Nova Zelândia. Alguns minutos depois, o comboio passa por uma blitz e é parado pela polícia. Todas fazem o teste do bafômetro – nenhuma está bêbada. Mesmo assim, são obrigadas a dar seus nomes, endereços e informações de contato.
Nos dias subsequentes, policiais à paisana visitam as casas de dez delas para interrogá-las sobre as conversas que tiveram durante o tal chá. Eles também queriam saber se as idosas escondiam em casa um sedativo barbitúrico que é usado em doses altas para sacrificar animais de estimação doentes em clínicas veterinárias.
Calhou que a blitz era fake. E que o lanchinho era uma reunião clandestina. As mulheres pertenciam a um grupo ativista chamado Exit International, fundado pelo médico australiano Philip Nitschke em 1997 para defender o direito à eutanásia (quando o médico aplica uma dose letal em um paciente que deseja morrer) e ao suicídio assistido (quando o paciente administra a dose letal em si mesmo, em uma situação controlada).
Nitschke acredita que, idealmente, todas as pessoas maiores de 70 anos deveriam ter acesso a drogas que as permitam morrer quando desejarem, ainda que não estejam doentes. Ele é um showman midiático: queimou seu registro de médico em protesto contra o Conselho Federal de Medicina da Austrália em 2014, quando era investigado por auxiliar suicídios ilegalmente.
Nitschke é expoente mais pirotécnico e polêmico da causa, mas não está sozinho. Mundo afora, diversos outros ativistas têm reivindicações parecidas ou advogam por uma legislação menos permissiva: pedem que pelo menos os pacientes em estágio terminal tenham o direito de morrer em seus próprios termos em vez de passar suas últimas semanas ou meses numa UTI, distantes do conforto de casa e submetidos a terapias que não curam e causam efeitos colaterais (essa extensão dolorosa de uma morte inevitável é conhecida pelos acadêmicos
como obstinação terapêutica ou distanásia).
A ideia é que escolher o momento de partir e vivê-lo de forma indolor seria o último dos direitos civis individuais. Os países desenvolvidos garantem liberdades como as de expressão, de crença e de associação, mas a maioria deles não permite que os cidadãos escolham como e quando vão partir – o que, no caso de pacientes incuráveis, significa obrigá-los a tolerar a dor e o sofrimento psíquico de perder autonomia para comer ou tomar banho.
Organizações como a Exit International vêm acumulando vitórias no Ocidente ao longo dos últimos vinte anos. Já existem 13 países em que o suicídio assistido ou a eutanásia são despenalizados, descriminalizados ou legalizados. Traduzindo do juridiquês, esses três termos descrevem, respectivamente, as seguintes possibilidades: que a morte assistida seja um crime sem punição, que ela não seja considerada um crime e, por fim, que seja permitida explicitamente por uma lei. A Nova Zelândia, desde 2020, é um deles.
“A descriminalização e a despenalização acontecem muito”, explica o pesquisador em ciências da saúde Luciano Maia, que estudou normas de eutanásia mundo afora em seu doutorado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). “É como se eu [legislador] estivesse tirando o meu da reta. É mais fácil falar que é crime despenalizado do que dizer que é legal, porque muitas pessoas que não têm conhecimento sobre o assunto acham que estamos falando de desligar o respirador de uma pessoa. E não é isso.”
Em suma: o tabu em torno do tema impede legislações mais assertivas – ainda que o debate atual sobre mortes assistidas passe longe do velho clichê da pessoa em coma ou estado em vegetativo (essa é uma conversa diferente, já que o paciente não pode tomar uma decisão).
Nos países em que a prática é legalizada, as eutanásias e suicídios assistidos só podem ocorrer após um pedido do paciente lúcido, com repetidas confirmações de que esse é seu desejo, obtidas em consultas com mais de um médico. As pessoas morrem certas de sua decisão, idealmente acompanhadas da família e dos amigos e no conforto de suas casas. Uma revisão sistemática de oito estudos realizados em três países mostra que a incidência de transtorno de luto prolongado, estresse pós-traumático e outros problemas de saúde mental é menor ou igual entre os entes queridos de quem passa por eutanásia ou suicídio assistido.1
Eutanásia, em grego, significa “boa morte”. A palavra, originalmente, se referia a qualquer morte pacífica, sem o sentido de que ela fosse induzida.
Porém, conforme os critérios para decidir quem pode passar por esses procedimentos se tornam mais flexíveis, especialistas e ativistas favoráveis à prática se perguntam quais devem ser seus limites – e se é possível impedir que o direito à morte se torne acessível demais.
Por exemplo: devemos permitir que menores de idade optem pelo procedimento? E pessoas com problemas psiquiátricos, como transtorno bipolar, esquizofrenia ou depressão? Se alguém com demência registrou em cartório, ainda lúcido, o desejo de morrer após perder a memória, é correto é cumprir essa determinação depois que a pessoa já não se lembrar mais do próprio pedido (algo que já é possível, por exemplo, na Espanha e na Holanda)?
Esses debates racionais, no âmbito acadêmico, são a ponta de um iceberg de discussões culturais mais profundas, como a resistência histórica dos seguidores de várias religiões ao suicídio e o fantasma que assombra a palavra eutanásia, associada ao horror da eugenia e à matança sistemática promovida pelos nazistas: nas primeiras décadas do século 20, “higienistas genéticos” mais radiciais consideravam um ato de piedade executar pessoas com deficiência e dependentes químicos, ainda que contra sua vontade.
Optar pelo fim vida era permitido na Roma pagã, e continuou sendo nos séculos iniciais de cristianismo no Império Bizantino: a Igreja da época aceitava o suicídio.
Essas questões tornam dificílimo começar uma discussão saudável sobre o assunto – seja na mídia ou na Câmara. Por isso, muitos ativistas e acadêmicos preferem usar termos como morte assistida autoadministrada (para o suicídio assistido) e morte assistida administrada por terceiros (para a eutanásia). Nas próximas páginas, entenda como funciona o direito à morte assistida pelo mundo, e saiba em que pé está o debate sobre esse assunto no Brasil e lá fora. Começando pela Suíça, onde essa conversa é antiga.
O caso suíço
O Código Penal suíço, de 1937, proíbe explicitamente eutanásia, golpes de misericórdia e qualquer outra forma de homicídio praticada com finalidade altruísta, em benefício da vítima. Também proíbe “incitar ou assistir suicídio com fins egoístas”. Porém, não diz nada sobre auxiliar suicidas de maneira altruísta, ou seja: fazê-lo a pedido da vítima, sem interesses financeiros ou de qualquer outro tipo por trás do ato. É essa brecha antiga na lei que permite, na prática, a realização de suicídios assistidos na Suíça.
Um referendo de 2011 – que foi a consulta pública mais recente sobre o assunto – revelou que 85% da população suíça é favorável ao suicídio assistido e que 78% concordam que estrangeiros podem ir à Suíça para realizar o procedimento quando ele é ilegal em seus países de residência. Essa aceitação ampla na esfera pública permitiu que várias organizações de apoio à morte digna florescessem no país, e o transformou no único destino possível para quem deseja uma passagem só de ida (os demais países com leis de morte assistida não aceitam estrangeiros).
A maior e mais conhecida dessas organizações é a Dignitas, fundada em 1998 pelo advogado Ludwig Minelli. Não se trata apenas um local aonde se vai para morrer legalmente. Está mais para um clube de ativistas, cujos sócios pagam 80 francos suíços (R$ 455) ao ano por afinidade à causa, ainda que não planejem, ou sequer desejem, o suicídio assistido para si mesmos. Além de fornecer infraestrutura a quem busca o suicídio assistido – só é possível requisitá-lo sendo membro –, eles militam por cuidados paliativos, diretivas antecipadas e prevenção ao suicídio comum, violento.
A Dignitas tem critérios rígidos ao filtrar quem está apto ao procedimento. Em geral, eles só atendem doentes em estágio terminal e pessoas com doenças crônicas incuráveis ou deficiências que causem sofrimento contínuo.
Uma outra organização, chamada Pegasos, está na ponta oposta do espectro: exige um mínimo de burocracia e crê que qualquer adulto em sã consciência, doente ou não, tem direito de escolher o momento e a causa de sua morte. A Pegasos nasceu em agosto de 2019 inspirada pelo caso do biólogo australiano David Goodal: um homem de 104 anos, lúcido e saudável, que foi à Suíça morrer porque sua qualidade de vida havia piorado com a velhice.
Quaisquer que sejam os critérios, tanto Pegasos como Dignitas concordam que são um tapa-buraco até que mais países adotem legislações favoráveis à eutanásia. “O estrangeiro acha que ir à Suíça realizar um suicídio assistido é uma morte digna”, diz a advogada Luciana Dadalto, doutora em ciências da saúde pela UFMG e uma das maiores especialistas do Brasil em eutanásia e suicídio assistido. “Mas os suíços têm dúvidas se é digno que uma pessoa saia de seu país e morra falando um idioma que não é o seu, em uma cama que não é a sua.”
Cidade de Deus (426 d.C.), de Santo Agostinho, foi o primeiro livro católico a questionar a suicídio, e pesou na decisão de tornar o ato pecado e excomungar os sobreviventes.
Entre 2018 e 2019, Dadalto foi à Suíça como pesquisadora para testemunhar suicídios assistidos nas duas organizações. Ela explicou à Super como funcionam os procedimentos. Com a Dignitas, o grosso da burocracia acontece ainda no país de origem. O processo é caro, mesmo que eles trabalhem sem fins lucrativos: 11 mil francos suíços (R$ 63 mil) com as despesas funerárias inclusas, 7,5 mil (R$ 43 mil) se a família for lidar com o corpo. Há descontos ou gratuidade para quem não pode pagar.
De início, eles exigem uma carta em que o paciente requisita o suicídio assistido e descreve por que suas condições de saúde justificam isso. Também pedem um resumo biográfico: infância, vida escolar, carreira, status de suas relações familiares etc. Por fim, são necessários laudos médicos (tanto recentes como antigos) que comprovem a existência e a evolução da doença, os tratamentos já tentados, o prognóstico etc.
Uma vez que a documentação brasileira seja traduzida, enviada à Suíça e aprovada, o paciente recebe a chamada green light (“luz verde”) e pode embarcar. É preciso chegar ao país no mínimo 72 horas antes da morte, para passar por entrevistas com dois psiquiatras diferentes. Eles vão atestar a lucidez e capacidade decisória do paciente. Só então um médico fornece a receita da droga que levará à morte – que é consumida em casa ou, no caso de estrangeiros, em instalações fornecidas pela Dignitas (ou outra organização). Trata-se de um cômodo em um apartamento ou casa, sem qualquer aparência de clínica ou hospital.
A única exigência, de modo a evitar uma acusação de homicídio, é que a pessoa consiga se mover de modo a causar a própria morte, ainda que as drogas sejam fornecidas por terceiros. Em geral, as opções são beber a dose letal ou aplicá-la por via intravenosa – sem necessariamente espetar a si mesmo: o paciente pode acionar uma válvula para liberar a passagem da droga pelo escalpe, aquela agulha curtinha em forma de borboleta usada em enfermarias. A substância fica armazenada em uma bolsa, semelhante às de soro ou sangue que conhecemos.
Nas fronteiras da lei
A Suíça foi um ponto de partida importante para o debate sobre morte assistida, que só ganhou tração internacional no final do século 20 – puxado, entre outros fatores, pela atuação de ativistas como Jack Kevorkian, um médico americano que realizou ilegalmente 130 suicídios assistidos entre 1990 e 1998, e acabou passando oito anos na cadeia.
Onde pode?
Eutanásia e/ou suicídio assistido são permitidos em 13 países – no caso de EUA e Austrália, em alguns estados, apenas. O gráfico abaixo, elaborado com dados da Federação Mundial das Sociedades pelo Direito de Morrer (WFRtDS, na sigla em inglês), mostra o ano em que a legislação entrou em vigor em cada jurisdição, ou o ano em que o Judiciário tomou uma decisão pivotal no sentido de aceitar o procedimento. No caso da Suíça, nunca houve legalização explícita: é uma omissão no Código Penal, de 1937, que permite a prática.
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Holanda e Bélgica – que foram os primeiros países a aprovar e manter leis explícitas sobre o assunto, em 2002 – se tornaram laboratórios para que legisladores de outros países acompanhem os desdobramentos em longo prazo. Nesses países, as taxas de suicídio assistido e eutanásia vêm aumentando ao longo dos anos. Na Holanda, foram 1.882 eutanásias em 2002 vs. 8.720 em 2022.
8.720 eutanásias aconteceram na Holanda em 2022, contra 1.882 20 anos antes.
Até crianças entre 12 e 16 anos são elegíveis, desde que haja consentimento dos pais. Nada acontece do dia para a noite: o paciente precisa fornecer várias vezes a confirmação de que quer passar pelo procedimento, com algum espaço entre elas, para garantir que o desejo é fruto de contemplação racional, não de desespero.
Essa alta na procura mostra, em parte, que um número cada vez maior de pacientes com doenças terminais se conscientiza em relação à possibilidade de abreviar o próprio sofrimento. Mas reflete também uma flexibilização cada vez maior (e mais polêmica) nos critérios para autorizar o procedimento – expandindo-o para formas de sofrimento incuráveis, mas que não vão causar a morte do paciente dentro de uma janela de tempo de alguns meses, por exemplo. Esses puxadinhos na jurisprudência se tornaram dilemas sem solução clara.
A primeira questão é a das demências. Em linhas gerais, não se considera possível praticar a eutanásia em pessoas com Alzheimer avançado ou outros problemas psiquiátricos que causam degeneração da memória, porque eles não são capazes de confirmar o desejo de morrer no instante da realização do ato.
O problema aí é que cada vez mais pessoas manifestam o desejo de serem mortas por seus médicos em casos de futura demência, por meio de documentos chamados diretivas antecipadas de vontade. Algumas delimitam critérios claros, como “quero morrer quando não estiver mais conseguindo reconhecer meus filhos”.
Em 2018, uma idosa holandesa cujo nome permanece anônimo precisou ser contida por seus parentes e sedada para receber a injeção letal, porque ela não se lembrava mais da diretiva que havia assinado. Essa foi a primeira acusação de negligência médica na prática da eutanásia que virou processo na justiça holandesa. Em 2020, o caso chegou à Suprema Corte do país, que determinou que os médicos devem respeitar as diretivas antecipadas, ainda que seja necessário forçar o paciente a se submeter ao procedimento.
A decisão dividiu opiniões. Em janeiro de 2019, uma especialista em bioética chamada Berna Van Baarsen já havia abandonado sua cadeira em um dos cinco comitês que revisam casos de eutanásia em busca de irregularidades na Holanda, em protesto contra o número crescente de procedimentos em pessoas com demência. Não é trivial, de fato, interpretar que o desejo de viver de uma pessoa com demência valha menos que o de qualquer outra – por mais que ela própria tenha deixado por escrito sua intenção de morrer quando gozava de plena capacidade cognitiva.
Em 1936, médico do rei George V do Reino Unido usou uma injeção letal para acelerar a morte do monarca e dar logo a notícia aos jornalistas. O crime permaneceu oculto até a década de 1980.
O holandês Theo Boer, professor de ética em saúde na Universidade Teológica Protestante, em Amsterdã, e que também integrou um desses comitês entre 2005 e 2014, diz à Super que considera “essa decisão prejudicial para nosso respeito por pessoas com demência avançada. (…) Eutanásia a quem não pode mais consentir com a própria morte deveria ser uma área proibida”.
Boer defendeu a legislação de eutanásia e suicídio assistido em seu país por muitos anos. Mas, após acompanhar a evolução do caso por duas décadas, mudou de opinião. Ele passou a entender que esse tipo de norma, após alguns anos, acaba se flexibilizando para além de seu objetivo original, que é abreviar a morte de pessoas com doenças terminais. E que transformar a morte assistida em regra, não exceção, gera uma mudança perigosa.
“Em certas regiões do Canadá, na Bélgica e na Holanda, a eutanásia se tornou uma forma padrão de morrer. Nessas circunstâncias, o pedido do indivíduo é quase tão autônomo quanto a decisão de usar um celular. Todo mundo faz”, explica Boer. “Então, eu me atento às pessoas internalizando visões sobre o que é uma vida digna diante de envelhecimento, dependência de cuidadores etc. Elas vão pedir eutanásia porque vieram a acreditar na narrativa de que viver assim não vale a pena.”
Ou seja: enquanto alguns grupos argumentam que optar pela própria morte é uma liberdade individual, outros consideram que nenhuma escolha individual é realmente individual. Elas são pautadas no contexto social. Se todo mundo em volta tem certas preconcepções sobre o que é ou não uma vida digna, é natural que nós passemos a cultivar opiniões parecidas.
Visões dissidentes como a de Boer se tornam cada vez mais comuns conforme outros países flexibilizam seus critérios de modo a incluir pacientes psiquiátricos. No Canadá, por exemplo, a lei original de 2016 só permitia a morte assistida de pacientes cuja morte natural fosse previsível e estivesse em um futuro razoavelmente próximo. Em 2019, porém, a Suprema Corte do estado de Quebec decidiu estender o procedimento a qualquer pessoa com uma doença crônica intratável que gera sofrimento insuportável, ainda que não seja letal em curto prazo. Essa decisão permitiu que pacientes de depressão e transtorno bipolar requisitassem o procedimento, algo que Holanda e Bélgica também já permitem.
Para a psiquiatra Tânia Maria Alves – diretora do Ambulatório do Luto no Hospital das Clínicas da USP, em São Paulo –, estender o direito de morte a esses pacientes é um reconhecimento importante de que doenças psiquiátricas são doenças como quaisquer outras. “A angústia foi a última dor a ser reconhecida como tal”, diz Tânia. “O que esses países estão dizendo é que uma dor psíquica dói tanto quanto uma dor física. Se ela for intolerável e a medicina não tiver como diminuí-la, nós a respeitamos.”
“A dor psíquica dói tanto quanto a física. A angústia foi a última dor reconhecida como tal.”
Dito isso, há um problema de demarcação: como a ideação suicida e depressão andam de mãos dadas, é difícil saber quando o paciente está requisitando a morte assistida racionalmente, como fruto de uma ponderação pacífica sobre sua qualidade de vida, e quando o pedido é uma consequência da própria depressão.
É fato que permitir a morte assistida pode evitar um suicídio violento depois, que é traumático para a família e indigno para a vítima. Mas, na ausência de critérios unânimes, a análise desses casos permanece sendo um processo individualizado e raro: só 1% das eutanásias realizadas na Holanda em 2016 foram de
pacientes psiquiátricos.2
O mundo invertido da distanásia
Uma pesquisa realizada em 2016 pela revista britânica The Economist com a organização sem fins lucrativos Kaiser Family Foundation perguntou a brasileiros, americanos, italianos e japoneses sobre o que consideram importante ou não ao final de suas vidas. Nos EUA e no Japão, por exemplo, a maior preocupação é não quebrar as finanças das famílias com os custos (no caso americano, o problema é o sistema de saúde caríssimo, no caso japonês, são os funerais que saem uma fortuna). 3
O Brasil, por sua vez, foi campeão em um critério peculiar: 70% dos brasileiros consideram “viver o máximo possível” algo muito importante, contra 47% dos americanos, 41% dos italianos e 17% dos japoneses. Essa foi, de longe, a maior discrepância registrada na pesquisa, que entrevistou 2 mil cidadãos de cada país.
Essa característica pode ser uma das razões para um fato: o Brasil sofre um caso crônico de distanásia – o prolongamento exagerado do processo de morte dos pacientes, que já explicamos no começo do texto (e que, vale dizer, é proibido pelo Art. 41 do Código de Ética Médica brasileiro).
Nossas famílias, em geral, preferem submeter um ente querido a tratamentos degradantes e inúteis na UTI a deixá-lo morrer em casa com conforto. Por exemplo: em um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Estadual do Pará (UEPA) com 190 familiares de pacientes com doenças terminais em um hospital particular em Belém, 64,2% optaram pela distanásia.4
O interessante é que a pesquisa também verificou quantas, dentre essas 190 pessoas, sabiam o significado da expressão “estado terminal”. Eram apenas 68. Ou seja: apesar das conversas com os médicos, 122 não haviam entendido que seus parentes iriam morrer de qualquer forma, e que submetê-los a tratamentos desconfortáveis seria inútil. Dentre esses 122, a maior parte (85,2%) escolheu pelo prolongamento indefinido. Enquanto isso, 70,9% dos que sabiam o significado optaram por deixar seus parentes morrer naturalmente.
Esses dados escancaram que o problema é, pelo menos em parte, educacional. Não conversamos o suficiente sobre a morte – e acabamos ignorando que, às vezes, ela é inevitável. “A maior parte das pessoas faz uma vaquinha para pagar um fármaco caríssimo, ajuíza uma ação para obtê-lo, porque acredita que isso vai salvar a vida”, diz Luciana Dadalto. “Se essa pessoa recebesse a informação de que não há cura, de não haverá reversão do quadro, de que o fármaco só vai dar mais dois meses de vida com uma qualidade péssima, a decisão talvez fosse diferente.”
Hoje, é consenso entre especialistas que a distanásia deve dar lugar aos cuidados paliativos: terapias e outras intervenções que aliviem a dor e forneçam a maior qualidade de vida possível ao paciente no processo de morrer, sem adiá-lo artificialmente – nem adiantá-lo, o que seria a eutanásia propriamente dita.
Esse trabalho envolve enfermeiros, psicólogos, especialistas em terapia ocupacional, fisioterapeutas e até figuras religiosas, caso o paciente em questão tenha uma crença. O objetivo é a ortotanásia, que é, em grego, a “morte no momento certo” (mais etimologia: eutanásia é “boa morte”; distanásia, “afastamento da morte”).
Francis Bacon foi o primeiro filósofo moderno a usar a palavra eutanásia, no séc. 17. Mas ele se referia ao que hoje chamamos de cuidados paliativos, não à morte assistida.
No Brasil, em 2019, havia apenas 191 grupos de profissionais dedicados a cuidados paliativos em hospitais, clínicas etc., sendo que o ideal seriam mais de 2 mil (o país tem 2.500 hospitais com mais de 50 leitos).5 Calcula-se que só 0,3% dos pacientes tenham acesso a esses serviços.6
A falta de tato com o assunto no Legislativo beira o cômico: durante a CPI da Covid em 2021, o senador Renan Calheiros comparou os cuidados paliativos à eutanásia – como se ambos consistissem em desligar aparelhos e deixar alguém morrer, o que não é verdade –, enquanto outro senador, Otto Alencar, chamou os paliativistas de “especilalidade macabra” e de “personal da morte”. Nonsense absoluto.
Após uma onda de cartas de repúdio e reportagens apontando os erros, Otto Alencar chegou a pedir desculpas em entrevista à Folha de S. Paulo. Mas, mesmo nessa hora, reforçou a ideia de que a distanásia é a melhor saída: “Na minha opinião, um doente que está em UTI e tem chance de vida, o corpo médico deve ir até o fim para salvar a vida dele. Ele só deve sair da UTI se estiver morto”.
191 serviços de cuidados paliativos existem no Brasil. O ideal seriam, no mínimo, 2 mil.
Se a ideia é que os congressistas representem o povo, então é inegável que, nesse aspecto, eleitos e eleitores estão alinhados: ambos precisam de mais educação sobre o tema. Em 2014, quando houve uma audiência pública sobre cuidados paliativos na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), o então chefe do Núcleo de Cuidados Paliativos do HC, Ricardo Tavares de Carvalho, falou do receio, entre os profissionais de saúde, de serem acusados de negligência se deixarem de oferecer tratamentos a pacientes com doenças terminais, ainda que eles sejam agressivos e desnecessários.
Ou seja: antes de chegar a uma discussão informada sobre eutanásia e suicídio assistido, o Brasil precisa passar por um processo ainda mais árduo de afastar o tabu em torno da morte – e aceitá-la como parte da vida. Estender artificialmente as últimas semanas ou meses de alguém com uma doença terminal quase nunca é sinônimo de mais qualidade de vida. Mas, muitas vezes, é garantia de piorar a qualidade da morte.
Enquanto Holanda ou Canadá discutem até onde devemos ir com a eutanásia e a morte assistida, os brasileiros com doenças incuráveis precisam se acostumar com a ideia de que morrer entubado na aridez de um hospital não é a única alternativa – nem a mais digna.
Fontes: (1) artigo “Grief after euthanasia and physician-assisted suicide”, por Karl Andriessen e outros, 2019; (2) artigo “Is euthanasia psychiatric treatment?”, por Damiaan Denys, 2018; (3) relatório Kaiser Family Foundation/The Economist four-country survey on aging and end-of-life medical care; (4) artigo “Distanásia e ortotanásia: práticas médicas sob a visão de um hospital particular”, de José Antônio Cordero da Silva e outros, 2014 (5) “Atlas dos Cuidados Paliativos no Brasil 2019”, elaborado pela ANCP; (6) entrevista com a médica Ana Claudia Quintana Arantes no programa Provoca, da TV Cultura. Agradecemos ao jornalista Adriano Silva, ex-diretor de redação da Super e que está produzindo um livro-reportagem sobre morte assistida, por ter dividido informações conosco.