Por que algumas pessoas esquecem quem elas são?
A atrofia do hipocampo pode ser a responsável por misteriosos problemas psiquiátricos nos quais o indivíduo simplesmente deixa de saber quem é.
Em 1995, pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, decidiram estudar, por meio de ressonância magnética, o encéfalo de soldados que haviam voltado do Vietnã, cerca de vinte anos antes, com problemas de memória. Ao mapear o cérebro dos veteranos, bingo! Descobriram que todos eles apresentavam o hipocampo, a parte daquele órgão responsável pela lembrança de experiências pessoais importantes, com um tamanho muito menor do que o normal. A revelação dos cientistas americanos, além de ajudar a explicar as dificuldades dos traumatizados de guerra, abriu caminho para entender um dos maiores mistérios no campo dos problemas de personalidade: a chamada fuga dissociativa. Dissociação é o nome técnico para aqueles casos em que o sujeito sai de casa para comprar cigarro e reaparece, tempos depois, em outra cidade, com nome diferente e uma família nova. A menos que se trate de uma encenação meticulosamente planejada, é provável que o fugitivo tenha esquecido, no meio do caminho entre o lar e o boteco, quem ele era, para onde ia e com que finalidade. E desde a pesquisa de Yale passou-se a suspeitar que o responsável pelo monumental branco fosse o hipocampo – uma pequena estrutura do cérebro fundamental para a personalidade, porque sem ela não lembramos quem somos. Segundo a Associação Psiquiátrica Americana, a fuga dissociativa atinge dois em cada 1 000 indivíduos no mundo todo.
A perda da identidade, temporária ou permanente, é uma das formas que os transtornos dissociativos podem assumir. O caso aparentemente mais grave é a convivência, em um mesmo corpo, de múltiplas personalidades. Quando isso acontece, o afetado pode agir num dia como pacato funcionário de banco e no outro como um palhaço de circo. Até que ponto a vítima incorpora, de fato, várias individualidades, com nomes, sobrenomes, tiques e hábitos completamente diferentes é matéria controversa entre os especialistas. Uma grande parte deles tende a achar que o problema não é tão radical assim. Seria apenas uma manifestação de que as várias faces de um indivíduo não conseguem mais conviver harmoniosamente e a sua identidade se fragmentou.
Mas, contrariando os que duvidam das múltiplas personalidades, de acordo com a revista britânica New Scientist, dois psiquiatras americanos conseguiram monitorar o que acontecia no cérebro de Marnie, nome fictício de uma paciente depressiva de 33 anos que dizia incorporar, “quando desejava”, uma segunda personalidade, a de Guardian – uma menina de 8 anos. Guochan Tsai, do Hospital McLean, em Massachusetts, e Don Condie, do Hospital Geral de Massachusetts, usaram um equipamento de ressonância magnética e constataram que o seu hipocampo diminuía a atividade quando Marnie era era dominada por Guardian.
O trauma é “esquecido”, mas volta
Várias pesquisas já demonstraram que os transtornos dissociativos atingem em maior proporção quem passa por situações traumáticas. Cerca de um terço dos indivíduos que desenvolveram distúrbios psicológicos após sofrerem ameaça de morte apresenta despersonalização: a vítima sente que não pertence ao próprio corpo. Como já está claro que situações traumáticas reduzem o hipocampo, parece natural imaginar que ele é o responsável por situações de dissociação. Mas o neurologista Bruce McEwen, da Rockefeller University, especialista nos efeitos que o estresse tem sobre o cérebro, prefere ser cauteloso. “As ligações entre a atrofia do hipocampo e a dissociação são provocantes, mas nebulosas”, diz ele. Novas experiências terão que ser realizadas até uma conclusão definitiva.
Como as razões neurológicas da dissociação são ainda pouco claras, a psicoterapia é um dos meios mais efetivos de se enfrentar o problema. Para a Psicanálise, é necessário encontrar e cuidar do trauma que origina a perda de identidade. “Acredita-se que situações traumáticas, como o abuso sexual, provoquem a dissociação”, afirma Stella Malta, psicoterapeuta de São Paulo, que trata de casos de dissociação desde 1982. “A lembrança é muito pesada, e a vítima acaba inconscientemente deixando-a de lado. Mas, mesmo ‘esquecida’, ela continua atuando na mente da pessoa.” Em certos momentos, a memória inconsciente do trauma torna situações do cotidiano insuportáveis. Se uma mulher sofreu um abuso sexual na infância e é obrigada a ficar sozinha com um homem no ambiente de trabalho, pode ter uma fuga dissociativa de algumas horas ou mesmo de dias, durante os quais esquece quem é. “Após a fuga, a mulher pode pensar que realmente sofreu abuso no trabalho, misturando as lembranças”, conta Stella.
O transtorno dissociativo às vezes é confundido com esquizofrenia, uma doença mental em que a personalidade fica irremediavelmente dividida. Mas os sintomas são diferentes – uma pessoa com dissociação não se sente perseguida, não tem paranoia nem ouve vozes. O tratamento também é
Outro: no caso da dissociação, o objetivo é fazer com que os pacientes reconstruam a própria identidade. “O essencial da terapia é criar um espaço seguro para que as pessoas possam experimentar seus sentimentos”, explica Stella. “Isso refaz a associação entre os ‘pedaços’ que ficaram dispersos.” Muitas vezes os psicoterapeutas trabalham conjuntamente com psiquiatras, que receitam medicações para favorecer a organização mental, sem a qual seria impossível iniciar a terapia.
Algo mais
Alguns psiquiatras acreditam que os fenômenos de possessão espiritual, encontrados muitas vezes em sociedades tribais, podem ser considerados como transtornos dissociativos.
O estresse diminui o hipocampo
As causas neurológicas dos transtornos dissociativos parecem estar no efeito das situações traumáticas sobre o cérebro.
Responsável pela articulação das várias facetas da personalidade, o hipocampo costuma sofrer fisicamente com os traumas psicológicos. Acredita-se que algumas substâncias liberadas pelo corpo em situaç��es de estresse, como o glutamato, causem a atrofia dessa área cerebral
Exames mostram que indivíduos que passaram por traumas profundos apresentam um hipocampo menor do que o normal. Não se sabe se as células nervosas morrem ou diminuem de tamanho, mas nesses casos a ocorrência de transtornos dissociativos é bem maior do que na população em geral
O homem que fugiu dos mortos
No começo dos anos 80, o psiquiatra da Universidade de São Paulo Henrique Del Nero, autor do livro O Sítio da Mente, estava no plantão do Hospital das Clínicas, em São Paulo, quando recebeu um homem maltrapilho, de mais ou menos 35 anos, trazido pela polícia. Aparentemente sonolento, ele não sabia quem era nem de onde vinha. O cidadão não se lembrava, mas havia sumido por três dias e fora achado escavando sepulturas num cemitério. Depois de medicado, ele já era capaz de conversar normalmente. Sabia onde morava, quem era e o que fazia, mas não se recordava que tinha passado dias revolvendo túmulos. O homem disse que trabalhava no Instituto Médico Legal, cuidando de cadáveres: “Ele havia perdido o emprego e só conseguiu um trabalho noturno no frigorífico do IML, lidando com aqueles mortos pendurados em ganchos”, conta Del Nero. O psiquiatra acredita que a fuga foi causada pelo medo que o homem sentia do trabalho. “Ele era obrigado a enfrentar uma situação muito estressante e sua mente não aguentou”, afirma.
Dissociação cotidiana
A possibilidade de perda de identidade está mais próxima do que se imagina. Quando temos de contrariar nossos sentimentos no dia-a-dia, vivemos, segundo o psiquiatra Henrique Del Nero, situações dissociativas. E há indivíduos que, de tanto serem obrigados a agir de modo oposto às suas emoções, acabam explodindo. “Reações histéricas, que hoje são consideradas formas de dissociação, costumam acontecer com pessoas submetidas a situações de ambiguidade extrema ou de estresse”, conta Del Nero.
É o caso do adolescente bem-comportado, filho de uma família muito rígida, que se revolta de repente ao levar uma bronca dos pais. Ele pode sumir por uma noite e acordar no dia seguinte sem se lembrar do que aconteceu, vítima de uma amnésia dissociativa. Já a existência de indivíduos com múltiplas personalidades, um caso extremo de dissociação, é aceita com restrições pela Organização Mundial de Saúde. Segundo a OMS, o problema é muito raro, e há dúvida em até que ponto ele seria causado por indução dos terapeutas – que muitas vezes podem fazer um paciente com dissociação achar que é várias pessoas. Para o psiquiatra Luiz Barreto de Souza, que tem uma experiência de quarenta anos em instituições de tratamento mental, hospitais e consultórios, os diagnósticos de múltiplas personalidades não podem ser levados muito a sério. “Mas servem muito bem para fazer filmes”, ironiza ele.