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O hábito é uma droga: quando as práticas da rotina viciam

Coisas inocentes como comida, trabalho ou compras podem se tornar vícios tão fortes quanto as drogas ou o álcool.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 3 abr 2018, 17h24 - Publicado em 31 Maio 1993, 22h00

“Fui viciada em comer. Lembro que esvaziava a geladeira num abrir e fechar de olhos. Quando não dava mais para continuar comendo, me angustiava, ia ao banheiro e vomitava para comer de novo.” Foi assim que a atriz Jane Fonda descreveu os sintomas da enfermidade com a qual conviveu dos 12 aos 36 anos: a bulimia. Quem é vitimado por ela não consegue parar de ingerir alimentos e, caso não o faça, entra em um estado de angústia para o qual só há um remédio: voltar a abrir a geladeira. Quando o estômago está a ponto de explodir, a vítima simplesmente vomita e segue comendo.

Embora seja difícil acreditar que algo tão inofensivo quanto um delicioso sanduíche possa causar dependência, o fato é que pode. E mesmo que não sejam poucos os céticos para quem esse tipo de preocupação não passa de mais uma invencionice de psicólogos interessados em propor novas e extravagantes teorias, a maioria dos especialistas é enfática: coisas simples e corriqueiras como trabalho, sexo e comida são capazes de escravizar uma pessoa. Em certos casos, chegam a se tornar um vício tão irresistível e destrutivo quanto drogas ou bebidas, com direito inclusive à síndrome de abstinência.

Como a polícia não prende ninguém por porte de empadinhas ou coxinhas, em geral esse tipo de dependência passa despercebido no turbilhão da normalidade. “Nunca falei no assunto”, conta Jane Fonda, que só revelou seu sofrimento em 1989, aos 52 anos. “Mas mudei minha atitude porque descobri que de 20 a 30% das mulheres americanas são bulímicas.” Os médicos vão além: para eles, essa compulsão pode ser associada a 70% dos casos de obesidade, e a comida está para os bulímicos como a droga para os toxicômanos.

“Distúrbios alimentares são comuns e sua origem costuma estar relacionada com lembranças da infância”, revela o psiquiatra paulista Sérgio Bettarello, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, citando um exemplo simples para ilustrar a teoria: “Quando um bebê chora, geralmente a mãe lhe dá a mamadeira, o que acaba estabelecendo uma relação entre segurança e alimento. Se no futuro essa pessoa procurar o antigo conforto da comida para compensar frustrações, isso não será estranho.”

A comilança não está sozinha no cenário da tentação compulsiva. “Todos os comportamentos podem se converter em droga”, já garantia, na Idade Média, o médico suíço Teofrasto Paracelso. A questão é descobrir qual a fronteira entre a atitude normal e a impulsiva. Para o psicólogo alemão Werner Gross, especialista no assunto, são quatro as marcas que separam enfermos e normais: o doente sempre perde o controle quando se entrega a uma atividade; quando não a realiza, sofre síndrome de abstinência; sua dependência cresce com o passar do tempo; e, finalmente, perde o interesse por tudo, menos pelo vício. Quando estas características estão presentes, estamos diante de um viciado.

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Outros psicólogos preferem enfatizar os aspectos autodestrutivos que acompanham a dependência. “O que diferencia o hábito do vício é que este sempre traz efeitos perigosos para a pessoa”, comenta o psicólogo Peter Púrpura, de Nova York, que se dedica exclusivamente ao tratamento de pacientes obcecados por sexo. Embora desde 1987 reconhecido pela Associação Americana de Psiquiatria como enfermidade e não perversão, o desvio comportamental dos sexólatras só ganhou notoriedade recentemente, graças ao ator Michael Douglas. Depois de ter sido elogiado pela atriz Sharon Stone por seu desempenho nas cenas quentes do filme Instinto Selvagem, Michael internou-se numa clínica no Arizona para tentar conter a fonte daqueles elogios: uma incontrolável tendência à promiscuidade. Há quem diga que o ator arrumou apenas uma desculpa após ser flagrado pela mulher, Diandra, praticando o vício com outra.

“Tive um paciente que mantinha dez relações por dia”, lembra o terapeuta Haruo Okawara, diretor da Clínica Kinsey de São Paulo, instituição para tratamento de problemas com a sexualidade. O impressionante é que tamanha virilidade não resultava em prazer. “As duas mulheres que viveram com ele nunca atingiram o orgasmo”, diz Okawara. “O sexólatra não busca o prazer da parceira ou o seu. A fixação é repetir o ato, mesmo que fria e mecanicamente.”

Ainda é cedo para se falar em consenso quando se trata de explicar por que as pessoas se apegam a uma atividade a ponto de se tornarem viciadas. Para os especialistas, seria fruto de uma neurose ou perturbação mental, mas enquanto os psicanalistas procuram a causa na infância, os psicólogos falam em falta de autocontrole. “Não dá para generalizar as razões. É lógico que uma personalidade mais desenvolvida tem melhores condições de evitar a dependência”, diz Sérgio Bettarello. Outras pessoas, porém, se refugiam numa ação, como a de comer muito, por exemplo. E vai recorrer a essa “bengala” sempre que encontrar transtornos, criando assim a compulsão.

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Em comum, apenas uma certeza: normalmente, são atividades prazerosas que ensejam a dependência. O que não é difícil de entender: se não sentíssemos certa satisfação em comer, por que iríamos nos alimentar? Mas em que consiste esse prazer, que às vezes pode ser tão pernicioso?

Os bioquímicos têm uma teoria interessante para responder a essa pergunta, graças à descoberta da endorfina, um hormônio segregado no tecido cerebral capaz de gerar efeitos euforizantes parecidos com os das drogas. A endorfina entra em ação toda vez que uma pessoa se vê em situações tensas. Numa mesa de roleta, por exemplo, somos capazes de sentir a mesma euforia de um cocainômano drogado: aumento das pulsações, suor intenso etc. No entanto, se os viciados em determinados tipos de comportamento produzem maior quantidade de endorfina, é algo que os cientistas não garantem.

Recentemente, o psicólogo italiano Daniele Pauletto divulgou uma tese revolucionária relacionada a um vício que aterroriza pais e mães em todo o mundo: em videogames. Para ele, a irradiação contínua de imagens luminosas superestimula o lóbulo occipital direito, que regula as emoções no cérebro, ao mesmo tempo que atrofia o occipital esquerdo, responsável pela capacidade analítica e crítica das pessoas. Esta síndrome, batizada de vídeo-hiperestesia — ou seja, extrema sensibilidade aos estímulos do vídeo —, leva freqüentemente os fanáticos por esses joguinhos a perder o contato com a realidade e entrar numa espécie de estado hipnótico.

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Daniele Pauletto chegou a essas conclusões depois de estudar o comportamento de um menino de 9 anos — Francesco — que passava mais de oito horas por dia jogando videogame. “Foi o meu caso mais espetacular. Francesco já não queria mais nem comer nem dormir. Na escola, não conseguia assimilar o que os professores ensinavam e começou a evitar os amigos”, lembra o psicólogo italiano, que aplicou uma curiosa terapia ao jovem paciente: espalhou pela casa de seus pais enormes cartazes coloridos com a inscrição game over (o jogo acabou), e conseguiu conter a fixação de Francesco pelo “vício”.

Para a maioria dos psicólogos, porém, utilizados com moderação, os games podem ajudar as crianças, já que aumentam a coordenação visual e motora, a concentração e até a memória. Além disso, os jogos ajudam crianças a lidar mais facilmente com computadores. O perigo está no excesso.

Aliás, como quase tudo na vida. Quem nunca cedeu ao impulso de se presentear com alguma bobagem para compensar um dia difícil, mesmo correndo o risco de se arrepender na manhã seguinte? Amenizar a dureza da vida nas compras não chega a ser anormal. Desde que não vire um hábito irrefreável, como o que atormenta a atriz Melanie Griffith.

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“Não consigo resistir. Alguma coisa me empurra loja adentro e me obriga a comprar tudo”, conta a atriz, que depois do sucesso viu o problema se agravar. “Como sou conhecida, quando não tenho dinheiro é só pedir que mandem a conta para minha casa.” Parece frescura de quem tem muito e não sabe como gastar. Melanie garante que não: “No começo, é bom realizar as vontades, mas depois vira um transtorno. É como se não tivesse controle da minha vida.” Para os psicólogos, consumidores incontroláveis só diferem dos cleptomaníacos pelo fato de que estes não passam pelo caixa da loja, simplesmente furtam os objetos. São todos enfermos.

Um dos problemas dos que sofrem com tais enfermidades é que eles só procuram ajuda médica quando já é tarde e quase sempre são os familiares que tomam a iniciativa de buscar tratamento. Mas mesmo eles demoram a descobrir. Viciados dessa espécie são bons dissimularores: os comilões sempre aguardam a noite para atacar a geladeira e os jogadores fingem que vão trabalhar quando saem para a jogatina.

O fato é que, embora suas drogas não sejam tóxicos, essas pessoas padecem de síndromes de abstinência parecidas com as dos toxicômanos: depressão, angústia ou mesmo dores físicas. Terapia ou tratamentos farmacológicos são algumas das alternativas de ajuda para quem sofre de distorções comportamentais tão “inocentes”. Os objetivos terapêuticos também variam: para alguns, como os cleptomaníacos, se busca a abstinência total, para outros apenas um autocontrole maior. O passo fundamental, porém, será sempre o desejo da própria vítima de se curar. Algo como acordar de manhã, olhar no espelho e dizer a si mesmo: “Game over.”

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