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Saúde até no inferno

Morten Rostrup, presidente dos Médicos sem Fronteiras, diz como é possível salvar vidas nas piores catástrofes e epidemias do planeta.

Por Tania Menai
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 31 out 2003, 22h00

O médico norueguês Morten Rostrup, 45 anos, diz que todo médico jovem tem o desejo de mudar o mundo. A diferença é que ele não ficou só na vontade. Há três anos, Rostrup é o presidente do Conselho Internacional dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). Criada em 1971 por médicos e jornalistas franceses, a MSF se desdobra para salvar vidas em situações de catástrofes naturais, conflitos, epidemias e extrema pobreza, além de alertar o mundo para tais problemas. Vencedores do Prêmio Nobel da Paz em 1999, os 15 mil profissionais da MSF estão em quase 90 países, incluindo o Brasil. Rostrup, especialista em medicina interna e intensiva, esteve no ano passado no seqüestro de centenas de pessoas num teatro em Moscou, Rússia, e acudiu vítimas de guerra no Iraque. Ele conversou com a Super na sede americana da MSF, em Nova York.

Como as guerras e a pobreza afetam a vida dos médicos que atuam em campo?

Deixamos de nos preocupar com bobagens. Testemunhamos sofrimento e miséria, mas o bom é que podemos ajudar. As imagens de tragédias na televisão são as piores possíveis, mas a maioria das pessoas sobrevive e estas não aparecem na mídia. Com métodos simples, medicamos e salvamos crianças com malária, coma, convulsões e cólera. Para um médico ocidental, trabalhar em circunstâncias tão precárias é um desafio. Não temos muitos equipamentos, nem raio X, e dispomos de uma quantidade limitada de amostras de sangue. Aprendemos os chamados diagnósticos clínicos – devemos saber quais partes do corpo devem ser examinadas. Também encaminhamos os problemas para o governo ou para a comunidade internacional e dizemos: “Acabar com esta situação é o seu dever”. Ficamos felizes desde que consigamos lidar com pacientes e salvar vidas. Nem sempre é fácil.

Qual a maior tragédia que já presenciou?

A epidemia de fome no Sudão em 1998 foi terrível. O mesmo posso dizer das milhares de pessoas famintas em Angola no ano passado. Durante guerras, é muito doloroso ver a exploração de civis – eles são usados como instrumentos e alvos. Há escravização, estupros e corpos queimados. Homens expulsam moradores e ateiam fogo nas casas. Percebemos o quão cruel o ser humano pode ser. Uma das minhas primeiras pacientes, no Zaire em 1996, foi uma menina na faixa dos 20 anos que foi encontrada viva numa pilha de corpos, depois de um massacre. Ao chegar no hospital, estava desidratada, mal nutrida e com um grande trauma psicológico. Não conseguia falar ou tomar remédios. Durante uma semana, tentamos fazer com que ela se comunicasse e comesse. Funcionou.

Você já esteve em situações de risco?

Nunca fui pego como refém, mas estive em conflitos com explosões. Na recente Guerra do Iraque, duas das seis pessoas da nossa equipe foram seqüestradas e depois soltas. Tentamos evitar riscos desnecessários e temos que saber o quanto queremos nos arriscar para salvar vidas. A pior situação é quando há uma evacuação e temos que deixar nossos pacientes para trás. Eles vão acabar morrendo e não podemos fazer nada.

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Que tipos de feridos chegavam ao hospital durante a Guerra do Iraque?

Vítimas civis, crianças com ferimentos leves e até complicações que precisavam de cirurgias. Vimos algumas mortes. Era difícil avaliar a causa dos ferimentos. Muitos eram provocados pela queda de escombros, mas as piores foram causadas por resíduos de projéteis. Operamos também dois meninos baleados no abdômen. Por sorte, não houve perfuração do intestino.

Como essa guerra atingiu os cidadãos?

As explosões provocaram traumas psicológicos e síndromes de pânico. O estresse causava dores no peito, problemas respiratórios e enfartes. A situação era tensa, as pessoas não saíam de casa e a maior parte do comércio fechou. Nossa equipe se locomovia com facilidade entre o hospital e a casa, numa área tranqüila nas redondezas de Bagdá. Contudo, víamos casas destruídas e sempre ouvíamos explosões.

Como a MSF decide a quem ajudar?

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O nosso único foco é a necessidade. O objetivo é atuar em casos de emergência, salvar vidas e divulgar as injustiças que afetam milhões de pessoas no mundo. A ajuda humanitária é uma das poucas ferramentas que temos para defender civis. Não tomamos partido, mas levantamos problemas que têm a ver com responsabilidade política.

Vocês fazem alertas sobre doenças para as quais não se pesquisam tratamentos. O que esperam com isso?

Tratar das doenças fatais que não afetam as pessoas ricas. Há 30 anos não se faz uma nova droga para tuberculose, que ataca 16 milhões de pessoas no mundo. Da mesma forma, leishmaniose, doença do sono, malária e doença de Chagas tiram a vida de milhões de pessoas por ano nos países pobres. Os remédios que existem são caros, antigos e, pior, tóxicos. A droga usada para a doença do sono, feita à base de arsênico, mata de 5% a 10% dos pacientes. Como 100% deles morreriam de qualquer forma, é melhor dar esses remédios do que evitá-los. Trabalhamos para construir um sistema de pesquisa para os males que afetam pessoas carentes.

A aids é uma dessas doenças?

O HIV não tem sido negligenciado porque também afeta a Europa e os Estados Unidos. O coquetel de anti-retrovirais foi revolucionário, mas nos países em desenvolvimento, onde está a maior parte dos pacientes, as pessoas não têm acesso a essas drogas. Dos 6 milhões que estão para morrer de aids nesses países, apenas 230 mil recebem os remédios e metade deles está no Brasil, que tem feito um excelente trabalho. Na África, onde há 28 milhões de pessoas infectadas, só 30 mil são tratadas. A cada dia, 8 ou 9 mil pessoas morrem de aids no mundo, o triplo de vítimas fatais dos ataques do World Trade Center, em Nova York. A diferença é que elas morrem dentro de casa, em áreas de favelas. É uma emergência silenciosa.

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E que está dizimando povos inteiros…

Todos os aspectos da sociedade são afetados e o crescimento econômico se torna impossível. Em Botsuana, onde há a maior quantidade de casos de aids, a expectativa de vida era de 75 anos. Em 2010, ela vai despencar para 27 anos. Ainda assim, a reação do mundo está vagarosa e os governos não se esforçam o suficiente. Uma organização como a MSF, idealisticamente, não deveria existir. Não nos vemos como uma solução sustentável para a saúde social. A responsabilidade é do setor público.

A violência é um problema de saúde pública. Como a MSF age nesse caso?

Lidamos com as vítimas. Construímos, por exemplo, um programa de assistência médica no meio de uma favela violenta do Rio de Janeiro. A comunidade viu uma atividade que se preocupava com a vida das pessoas, o oposto do que acontecia por lá, e o programa foi continuado pelo governo. Prestamos esse serviço também aos palestinos nos territórios ocupados, ajudando pessoas com traumas psicológicos. Uma interferência médica é capaz de causar efeitos indiretos e até reduzir a violência.

Você costuma dizer que há um abismo entre as resoluções políticas e as conseqüências delas. Como assim?

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Há pessoas tomando decisões no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial que afetam vilarejos na África, mas elas nunca vêem de perto as conseqüências de suas medidas. Elas analisam números em papéis. Devemos mostrar qual o custo humano de cada resolução. Mesmo em guerras, decisões de matar são difíceis de entender.

 

Morten Rostrup

• Tem 45 anos

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• Mora na Bélgica, mas só fica lá algumas semanas entre uma viagem e outra

• Não tem filhos

• Gosta de andar de bicicleta

 

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