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O inventor do CrossFit

Ele teve paralisia infantil, foi expulso de várias academias, treinou policiais e bombeiros - e criou uma indústria que fatura US$ 4 bilhões por ano

Por Bruno Romano
Atualizado em 28 set 2020, 11h24 - Publicado em 29 nov 2018, 19h00

Greg Glassman adora comparar o CrossFit com um bote salva-vidas. É assim que o inventor desse método de treinamento (e agora também empresa multimilionária) define sua criação, quase duas décadas depois do começo na Califórnia. Os náufragos dessa história, seguindo a analogia de Greg, somos todos nós, que deveríamos prestar mais atenção na forma como nos cuidamos.

A salvação via CrossFit inclui treinos de tirar o fôlego. O suor é derramado nos mais de 14 mil espaços, ou boxes, espalhados pelo mundo – também é possível seguir gratuitamente novos desafios diários postados no site oficial da companhia. Enquanto milhares de seguidores cumpriam fielmente séries de exercícios exigentes no último dia 24 de maio de 2018, Greg palestrava calmamente no Rio de Janeiro, explicando a tal ideia do bote para afiliados CrossFit e profissionais de saúde. “Nós detemos o monopólio das pessoas mais bem condicionadas da Terra”, começa Greg, atraindo a atenção geral.

Greg acredita mesmo nisso. Aos 62 anos, fala com seu boné virado para trás sobre o cabelo grisalho bagunçado, vestindo jeans e camisa xadrez de flanela. Sua figura não remete a um guru fitness. Mas seu estilo ousado e falastrão, junto a um ímpeto avassalador, sustenta os alicerces da maior organização desse mercado. Ao vê-lo frente a frente, muitos se impressionam. Na sequência, normalmente agradecem por ele ter mudado suas vidas. E finalizam com uma selfie.

Dono de 100 % da CrossFit Incorporation, Greg está no comando. Sua marca registrada nos EUA gerencia as diretrizes do método de treinamento, os eventos oficiais, como o CrossFit Games, os cursos de formação de treinadores e os direitos de uso de nome de uma crescente rede de afiliadas. Se a indústria da modalidade, segundo estimativa de 2015 da Forbes, gera US$ 4 bilhões ao ano, só a CrossFit Inc abocanha US$ 42 milhões.

Ainda que conte com uma equipe de confiança, a alta cúpula da entidade, o californiano não responde a nenhum conselho de diretores ou algo do tipo. Greg também jura que nunca fez um plano de negócios na sua vida. Mesmo assim, os números não param de crescer. Nas últimas medições divulgadas pela companhia, no fim de 2017, a quantidade de praticantes é estimada em 4 milhões. Um fenômeno mundial.

Após sofrer paralisia infantil (pólio), Greg se tornou um dedicado competidor de ginástica artística na juventude. Ainda que tenha contraído o vírus da poliomielite aos 10 meses de idade, a condição só veio à tona após um ano. Interessado por atividades físicas alguns anos depois, e sem chance de competir em alto nível em modalidades que o atraíam, como corrida e natação, ele enxergou na ginástica, especialmente no aparelho das argolas, um novo horizonte para desenvolver suas aptidões físicas.

Greg seguiu o caminho dos esportes e se tornou personal trainer em Santa Cruz, litoral da Califórnia. Durante a década de 1990, depois de ser expulso de mais de um punhado de academias que não aprovavam seus treinos pouco ortodoxos, aceitou um convite para preparar alguns oficiais, especialmente policiais e bombeiros. Decidiu montar um espaço próprio em um centro chamado Spa Fitness, e começou a colocar em prática a sua alquimia.

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Eram as raízes do que se tornaria o CrossFit, método que combina movimentos funcionais, alta intensidade e variação constante. Em 2001, Greg abriu as portas do box inaugural, o CrossFit Santa Cruz. No número 2851 da rua Research Park Drive, os primeiros discípulos começavam a se juntar.

“Estávamos ali porque acreditávamos na ideia de criar um movimento que mudaria o mundo”, diz o canadense Craig “Patty” Patterson, um dos primeiros frequentadores. “Naquela época, o CrossFit podia ser copiado e se falava muito em se tornar uma organização sem fins lucrativos”, afirma Patty, que fundou em 2004 o pioneiro box fora dos EUA, o CrossFit Vancouver, no Canadá – primeiro indício palpável da expansão do movimento.

Sem freios

Na contramão de grande parte dos primeiros crossfiteiros, muitos ainda na ativa, Patty se desvinculou do movimento: “Eu não me arrependo, mas fico envergonhado com o quão ingênuos todos nós éramos”. Suas críticas caem sobre o sistema que massificou a prática. Para se tornar apto a abrir um box com nome oficial CrossFit, por exemplo, basta passar no teste de um seminário presencial de dois dias oferecido pela entidade.

A partir daí, há liberdade total para definir quanto cobrar dos clientes, ensinar movimentos complexos de agachamentos, levantamento de peso e ginástica (entre outros) e determinar as sequências de treinos. Os cursos introdutórios, chamados Level I (ou Nível 1), custam US$ 1 mil (cerca de R$ 3.900). E cada afiliada desembolsa uma taxa anual de US$ 3 mil (R$ 11.700) à CrossFit Inc. – locais mais antigos mantêm seus preços originais, girando em torno de US$ 500 (quase R$ 2.000).

A matriz norte-americana, por outro lado, não tem participação nos lucros de cada espaço. Em uma entrevista ao programa 60 Minutes da rede norte-americana CBS, em 2015, o fundador explicou suas escolhas: “Eu não estou preocupado em aumentar os negócios. Estou fazendo as coisas certas, para as pessoas certas, pelas razões certas”.

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Ele diz que combater a obesidade e as doenças crônicas é seu alvo principal. Nos EUA, 93,3 milhões de adultos (ou 39,8 % da população) se apresentam obesos, segundo dados do Centro Nacional de Estatísticas de Saúde (NCHS).

Sem diploma universitário, Greg é crítico à formação acadêmica nas áreas de preparação física. Tudo o que era feito antes do CrossFit, diz ele, tem algo falho. Mas aprendeu desde cedo a ter embasamento para defender seus ideais. Na casa dos Glassman, em um subúrbio de Los Angeles, a precisão falava alto. Seu pai, Jeff Glassman, era um cientista espacial, amante de matemática e métodos científicos. Atualmente, ele ocupa o cargo de cientista-chefe da CrossFit Inc. Para argumentar qualquer coisa com o coroa nos velhos tempos era preciso saber o que estava falando. E ainda provar com dados.

Isso ajuda a explicar outra aposta de Greg nos dias atuais: o CrossFit Journal. Espécie de livro sagrado da companhia, ele traz artigos online e discussões sobre o método e seus desdobramentos. Se você começar a leitura agora, há provavelmente mais conteúdo do que será capaz de absorver em uma vida.

Febre mundial

Quando Pavel Saenz foi aos EUA em 2003 para gravar um documentário sobre artes marciais, acabou encontrando um dos poucos boxes da época, instalado em Portland. Praticante de jiu-jitsu, ele ficou curioso com o que acontecia dentro daquele galpão e decidiu experimentar. Foi fisgado pelo CrossFit.

Morador de Santiago, no Chile, Pavel manteve contato com os americanos. Em 2005, foi capacitado a distância para se tornar treinador. Um ano depois, em 2006, Pavel fundou a CrossFit Santiago, primeiro box da América Latina, que hoje abriga cerca de 400 alunos. “Antes de montar meu primeiro espaço, eu treinava algumas pessoas no quintal de casa”, recorda. “Comecei a ver o rápido efeito que aquilo fazia nas suas capacidades físicas, e como muitos dos alunos estavam melhorando em seus esportes”, diz Pavel, atualmente coach de CrossFit Level III (Nível 3), graduação que já permite formar novos treinadores. O grau máximo atual é o Nível 4. Em todos é preciso ter completado as fases anteriores.

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Aos 42 anos, o mexicano mantém uma rotina de treinos, aulas, estudos e trabalho no seu box. “Vejo que nem todas as pessoas estão dispostas a trabalhar duro, mas todos têm essa capacidade dentro de si; determinação física e mental é algo que também se pode treinar”, defende Pavel. Esse mantra crossfiteiro explica a cena típica que chamou atenção do brasileiro Joel Fridman, em passagem pelo Canadá há dez anos. Várias pessoas juntas praticavam exercícios de le-vantamento de peso. Um esporte de nicho, especialidade de Joel, competidor de elite na época. Elas terminavam as rotinas caindo no chão de tanto esforço.

Mas, de alguma maneira, estavam adorando aquilo. “Decidi me aproximar do treinador, expliquei a ele que eu era do ramo e que talvez pudesse ajudá-lo”, lembra Joel. “Ainda bem que o cara me colocou no meu lugar (risos): ‘amigo, você vai treinar primeiro, depois a gente conversa’”, diverte-se hoje.

Desde aquele dia, Joel ficou intrigado e não quis mais sair do box. Pouco tempo depois, cruzou o oceano de volta para inaugurar em São Paulo a CrossFit Brasil, primeiro box no País, aberto em 2009. “Eu acreditei na ideia e no conceito, e nem imaginava que ia ser um fenômeno tão grande”, conta.

Estava nascendo ali apenas o terceiro box da América do Sul – pelo mundo espalhavam-se somente 10% da quantidade de afiliados atuais. “O crescimento foi orgânico, pois o método funciona e te permite trabalhar com diversas possibilidades”, afirma.

No mesmo embalo em que o CrossFit ganhava seguidores, apareciam críticos. Em vez de ignorar o debate – que começou a girar em torno de lesões dos praticantes e de algumas questões legais e comerciais –, a tática foi bem mais feroz. A Cross- Fit Inc. empunhou a bandeira de que havia criado algo capaz de derrubar os tabus e o próprio mercado em que estava inserida. E ao bancar sua visão com unhas, dentes e dezenas de advogados, a empresa vive em uma verdadeira trincheira de guerra.

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As batalhas envolvem disputas judiciais com antigos membros-chave da organização e marcas esportivas, além de denúncias de irregularidades de gente vendendo gato por lebre com seu nome e até processos contra pesquisadores.

Um dos alvos recentes foi a Reebok, em 2018. Patrocinadora oficial dos CrossFit Games, ela foi processada pela falta de pagamento dos royalties da marca e venda de produtos. Ainda neste ano, Russel Berger, ex-diretor de conhecimento da CrossFit , foi afastado em junho por um tweet em que se referia à comunidade LGBT com a palavra “pecado” e agradecia aos donos da afiliada CrossFit Infiltrate, em Indianápolis (EUA), por cancelar um treino em alusão ao evento LGBT Indy Pride. Em 2014, a CrossFit Inc já havia vencido um processo contra a NSCA, Associação Nacional de Força e Condicionamento dos EUA, pela publicação de um estudo que associava lesões ao CrossFit.

Greg fala abertamente sobre os conflitos – seu preferido é o embate contra a indústria de refrigerantes nos EUA – e ainda declara amor a seu time de advogados, que costuma vencer, diga-se, as disputas nos tribunais. No quartel-general da CrossFit nos Estados Unidos, há um banco de dados atualizado com tudo o que envolve a marca. Por ali, monitoram-se de perto publicações, posts e citações mundo afora. Em suma, aquele velho ditado “falem mal, mas falem de mim” não cola, nem mesmo costuma passar despercebido por essa turma.

Para quem vive o dia a dia dos boxes, discussões como essa muitas vezes passam longe. Em outras, interferem na dinâmica dos negócios. Para Pavel, é normal que críticas apareçam e, em muitos casos, a culpa é da falta de informação. “É só se lembrar do começo do UFC, quando muita gente não entendeu ou achou brutal demais. A própria comunidade das artes marciais demorou a aceitar e hoje o esporte se consolidou”, reflete o atleta e empresário.

Talvez o grande desafio já não esteja na parte técnica: “Na América do Norte, pelo menos, a taxa de rotatividade de clientes e treinadores é altíssima, o que me parece inaceitável”, diz Craig “Patty” Patterson. Nos últimos anos, o canadense transformou seu box. Ele mantém referência às origens no CrossFit, mas agora traz um novo conceito mais individualizado chamado MadLab. “O CrossFit transformou o cenário fitness: foi uma revolução à qual sempre serei grato”, diz Patty. “Mas a evolução do movimento se tornou lenta demais, e não acho que tenha feito diferença no mundo”, segue.

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Para o canadense, o que trava o processo é a formação em grande escala de treinadores, com baixa remuneração. Como a chave do equilíbrio, Patty defende a valorização dos profissionais e uma maior aproximação dos espaços com especialistas das áreas de saúde. Só depois, acredita, a mudança de verdade virá.

O futuro do império

Entre opiniões diversas, há um único consenso: esse cenário vai passar por mais uma mudança importante, fruto do aumento da procura. O que vai acontecer exatamente, ainda está difícil de prever. Mas as apostas já estão sendo feitas. “As pessoas vão começar a escolher pela qualidade”, arrisca Joel, que, assim como diversos treinadores, tem suas ressalvas com o sistema de capacitação, mas enxerga o método atuando de forma positiva em larga escala. “Nesse filtro, acredito que a tendência é ter espaços de tamanho médio, menos preocupados com quantidade e mais focados nos alunos”, completa o brasileiro.

Para Pavel, o CrossFit “é uma onda que ainda não atingiu seu auge e que ninguém vai ser capaz de parar”. Ele enxerga no horizonte um interesse mais voltado para a busca saudável da prática: de crianças a idosos, passando pelo que chama de “público urgente”, ou seja, pessoas com doenças crônicas, obesos, fumantes, entre outros.

Quando questionado sobre o futuro do CrossFit, Greg não demora a dizer que fará parte dele. Se alguém quiser comprar a marca, por exemplo, não há valor que o faça vendê-la. Além de bote salva-vidas, o fundador gosta de dizer que o CrossFit é “uma religião liderada por uma gangue de motoqueiros”. A frase teve repercussão, e até lhe rendeu um convite para discursar na escola de negócios de Harvard (EUA).

Pura ironia do destino, talvez. Em uma palestra recente por lá, sem nenhum tom irônico, ele concluiu dizendo: “Eu não sei como alguém pode competir contra mim”.

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