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A saga do azeite: a história, as fraudes e o preço nas alturas

O suco de azeitona é uma tradição milenar no Mediterrâneo. No século 20, o consumo explodiu no resto do mundo – acompanhado de escândalos de produtos falsificados. Entenda como esse mercado funciona, e veja por que o óleo nunca esteve tão caro.

Por Rafael Battaglia
14 mar 2024, 10h00

Texto Rafael Battaglia | Design Luana Pillmann | Edição Alexandre Versignassi

Domenico Ribatti era o maior comerciante mundial de azeite nos anos 1980. Herdeiro dos negócios do pai, o italiano comandava a marca Riolio, e também fornecia no atacado para gigantes como Nestlé e Unilever, que engarrafavam e revendiam o produto.

Ribatti era o poderoso chefão do azeite – em todos os sentidos. No início dos anos 1990, a polícia italiana descobriu que ele fazia parte de um esquema de falsificação. Navios carregados com óleos de avelã e girassol, bem mais baratos, chegavam às refinarias da Riolio etiquetados como “azeite grego”. Ribatti misturava com azeite de verdade e vendia o óleo fake.

Não só: junto a outros empresários do ramo, Domenico definia quais seriam os preços do mercado. Ele também subornou dois policiais (um com dinheiro, outro com caixas de azeite) para abafar o seu esquema. Em 1993, foi acusado de contrabando e fraude, entre outros crimes. Passou um ano na cadeia.

Mutretas no mundo do azeite não são novidade. Cinco mil anos atrás, na cidade de Ebla, atual Síria, tábuas com escrita cuneiforme já mencionavam equipes de fiscais atrás de fraudadores (e esse é o mais antigo registro da produção do óleo de oliva). Simplesmente porque é fácil mascarar azeite (a olho nu, não há como distinguir o óleo puro de misturas).

Hoje, a produção mundial fica em torno de três milhões de toneladas por ano (em litros, 1,3 mil piscinas olímpicas), num mercado avaliado em US$ 22,3 bilhões. E as fraudes, claro, seguem firmes. “É um dos produtos alimentares mais adulterados na Europa”, escreve o jornalista Tom Mueller no livro Extravirgindade: O sublime e escandaloso mundo do azeite de oliva.

No Brasil, terceiro maior importador global, é o segundo alimento mais fraudado, só atrás dos pescados. Em dezembro de 2023, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) apreendeu 12 lotes impróprios para consumo. Foram 82 mil litros que poderiam ter acabado no bacalhau da ceia.

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Como se não bastasse, o mundo do azeite enfrenta ainda outro estorvo: o da escassez. Em 2023, a produção mundial foi quase 20% menor em relação a 2022. Na Espanha, principal produtora, uma seca prolongada fez com que a safra caísse pela metade. As altas temperaturas também tornaram as oliveiras mais suscetíveis a pragas. Na Itália, segunda maior produtora, uma bactéria transmitida por insetos matou 21 milhões dessas árvores.

Infográfico sobre a produção de azeite nos últimos anos.
(Luana Pillmann/Arte/Superinteressante)

Em 2023, o preço global do azeite subiu 95%, de acordo com o Fed (o banco central dos EUA). No Brasil, que importa 99,5% do azeite que consome, o preço nas prateleiras cresceu um pouco menos no mesmo intervalo, mas ainda assim incômodos 37,1%. E a alta segue sem freio. Nos últimos 12 meses até janeiro de 2024, informa o IBGE, já são 41,6%.

A crise é o capítulo mais recente da saga milenar do azeite, um produto que serviu como alimento, moeda de troca e remédio milagroso para diversas civilizações ao longo da história. Vamos entender essa jornada e como funciona o delicado processo de extração do óleo.

Ouro líquido

A oliveira é uma árvore baixa com troncos retorcidos, nativa da bacia mediterrânea. É dela que sai a azeitona, que é uma drupa: fruto com uma única semente (o caroço), assim como o pêssego, a manga e a ameixa.

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Os humanos consomem azeitonas há pelo menos 100 mil anos. Mas não era uma refeição gostosa: azeitonas cruas são superamargas. Com o tempo, nossos antepassados perceberam que, quando pressionadas, elas liberavam óleo (produto final da fotossíntese da oliveira, ótimo para armazenar energia em climas áridos). O suco da fruta, esse sim, era saboroso.

Acredita-se que a domesticação das oliveiras começou no Levante, a porção norte do Oriente Médio. Em Ecrom, antiga cidade cananeia cujas ruínas se encontram em Israel, arqueólogos encontraram uma fábrica de azeite de seis mil anos atrás. Fábrica mesmo: eram cem prensas que, juntas, produziam 500 mil litros por ano, o que faz do azeite um dos primeiros itens de produção industrial.

A prática se estendeu para outras civilizações do Mediterrâneo, e o óleo logo se tornou uma peça importante da economia da Idade do Bronze. Os egípcios compravam quantidades cavalares de azeite da ilha de Creta, na Grécia, para fazer remédios e cosméticos. O produto também servia de combustível para lamparinas e como oferenda aos deuses: a tumba do faraó Tutancâmon estava repleta da iguaria.

Azeitonas recém colhidas, armazenadas in natura.
Fábricas de azeite já existiam há mais de seis mil anos – o que faz do óleo um dos primeiros itens de produção industrial. (Cavan Images/Getty Images)

Os gregos se banhavam em azeite antes de praticar exercícios – tanto para hidratar como por vaidade (gostavam de ficar parecidos com estátuas de bronze). Havia escravizados, chamados de “azeitadores”, que lambuzavam os atletas e, depois, raspavam o óleo remanescente – que, por sua vez, era vendido como remédio. Em Atenas, os vencedores dos Jogos Panatenaicos (uma homenagem à deusa Atena, que tinha como um de seus símbolos a oliveira) ganhavam até cinco toneladas de azeite e isenção de impostos para a exportação do óleo, caso fossem produtores.

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Em Roma, azeite era tão importante quanto vinho. Em algumas regiões do império, o consumo anual poderia chegar a 50 litros per capita. No latim, a expressão oleoum (uma evolução do grego élaion) tem ligação com “oliva” (sinônimo de “azeitona”, uma palavra que só apareceria no século 13 d.C., do árabe az-zaytuna).

Os romanos aperfeiçoaram a produção e plantaram grandes olivais no norte da África e no sul da Itália e da Espanha. Para evitar fraudes, criaram um sistema de rastreabilidade: cada ânfora (um vasilhame com cara de vaso) continha dados sobre a origem e a qualidade do produto, além do nome dos comerciantes envolvidos. Em Roma, existe até hoje o Monte Testaccio, uma pilha de 36 metros formada por 53 milhões de ânforas, que chegavam para abastecer a cidade e eram descartadas depois.

A invasão germânica no século 5 d.C. alterou a dieta romana. O azeite passou a dividir espaço com a banha de porco, a fonte de gordura mais popular no norte da Europa, onde o frio impede a plantação de oliveiras. Os monges cristãos, porém, seguiram 100% fiéis ao óleo. Eles o usavam em rituais religiosos, para tratar doentes e acender lamparinas – a banha queimava rápido demais, empesteando as igrejas.

A expansão do cristianismo nos séculos seguintes obrigou os povos do norte a se renderem ao azeite, já que, na Quaresma e em outros feriados religiosos, o consumo de carne e derivados era proibido. Muitos, no entanto, jamais se adaptaram ao amargor do óleo em comparação com a gordura animal, mais adocicada. No século 16, a Igreja cedeu: nas datas santas, permitiu o consumo de manteiga, um alimento das classes mais pobres que, naquela época, se popularizava entre a elite.

A Europa Mediterrânea, porém, seguiu fã de carteirinha do azeite. E levou o costume para a América durante a colonização. No Brasil, as primeiras oliveiras foram plantadas próximas a igrejas, e seus ramos adornavam cerimônias como, veja só, o Domingo de Ramos, que celebra a chegada de Jesus em Jerusalém.

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Com o tempo, alguns agricultores arriscaram produzir azeite. Mas a Coroa portuguesa logo cortou o barato (e os olivais). Baixou a lei: o Brasil só poderia consumir óleo de Portugal. Mesmo após a independência, a tradição se manteve: hoje, 60% das nossas importações vêm da terrinha.

Infográfico sobre a origem do azeite, conforme países e porcentagem de produção.

Nos Estados Unidos, o azeite era considerado um produto exótico até meados do século 20. Mas tudo mudou quando os americanos descobriram algo que os povos mediterrâneos já sabiam intuitivamente há milênios: que o óleo faz bem à saúde.

Desce uma, doutor

Nos anos 1950, o fisiologista Ancel Keys queria entender por que americanos com altos salários, que supostamente teriam acesso a uma alimentação melhor, tinham mais doenças cardíacas em comparação a populações europeias pobres e com uma dieta rica em gordura.

Keys estudou povoados na Grécia e no sul da Itália (uma região que, até hoje, tem uma das maiores expectativas de vida do mundo). E formulou a seguinte hipótese: a de que o cardápio local, composto por vegetais, oleaginosas e, claro, azeite, estaria associado a um risco menor de problemas cardiovasculares.

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De volta aos EUA, Keys e sua esposa, Margaret, tornaram-se embaixadores da dieta mediterrânea. Ancel passou os anos seguintes estudando os hábitos alimentares de várias partes do mundo, e seu trabalho influenciou outros pesquisadores a se debruçar sobre o azeite.

Assim como outros óleos vegetais, o azeite é composto majoritariamente de gordura insaturada. Carnes e manteiga, por sua vez, têm gordura saturada. A diferença está no número de moléculas de hidrogênio ligadas às de carbono. Na saturada, os átomos estão lotados (saturados) de hidrogênio. Na outra, há menos conexões desse tipo.

Essa diferença estrutural faz com que as gorduras saturadas sejam sólidas em temperatura ambiente; as insaturadas, líquidas. As saturadas aumentam os níveis de LDL, o colesterol que obstrui as artérias. Já as insaturadas sobem as taxas de HDL, o colesterol que as desentope.

O azeite também tem propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes (algo útil para retardar o envelhecimento, já que várias partes do corpo oxidam que nem bicicleta enferrujada). Cozinhar com ele preserva mais os nutrientes dos alimentos do que outros tipos de gordura. Por essas, o alto consumo do azeite (mais de sete gramas por dia) está associado a riscos mais baixos de câncer, doenças cardiovasculares e neurodegenerativas.

Fileira de vidros escuros de azeite em uma linha de produção.
US$ 22,3 bilhões é quanto vale o mercado mundial de azeite. (Bloomberg/Getty Images)

A repercussão do estudo de Keys fez do azeite o queridinho de médicos, chefs de cozinha e programas de TV pelo mundo (alô, Globo Repórter). E os EUA logo viraram o maior comprador de azeite (20% das importações), impulsionando o mercado global.

A alta demanda fez crescer o número de comerciantes intermediários, que compram azeitonas de pequenos produtores ou o próprio azeite já extraído. Isso abriu margem para criminosos, que podem falsificar rótulos e misturar óleos de diferentes qualidades (mais sobre isso adiante). Alguns até colocam clorofila para deixar o produto mais verde, com cara de fresquinho.

Esse é um problema sério na Itália, principal exportador dos EUA. Vários olivais do sul do país estão em regiões controladas pela máfia. Além disso, brechas na legislação permitem que óleos estrangeiros sejam envasados no país e recebam o rótulo de “azeite extravirgem italiano” – mais caro que um produto espanhol, grego ou turco.

A Itália tem uma força policial que lida exclusivamente com fraudes alimentícias: além do azeite, não faltam crimes envolvendo vinhos, queijos e até molho de tomate. Estima-se que esse mercado ilegal movimente US$ 16 bilhões por ano no país.

Mas afinal, o que torna o azeite um produto tão cobiçado e alvo de esquemas? Simples: produzir um extravirgem de qualidade é algo bem difícil.

Fresquinho

Suco de laranja feito na hora é bem melhor que o de caixinha. Com o azeite, é a mesma coisa. Uma vez colhidas, as azeitonas oxidam rápido. Então os produtores (veja na imagem abaixo) se apressam para a extração. “O ideal é que ela comece em até seis horas”, diz a azeitóloga Ana Beloto.

Infográfico com o passo a passo da produção de azeite, desde a oliveira até o envase.
(Luana Pillmann/Arte/Superinteressante)

Assim como acontece no mundo do vinho, o sabor do azeite pode mudar de acordo com a variedade de azeitona e as condições do solo e do clima dos olivais. Os produtores podem fazer azeites com só um tipo do fruto (os chamados monovarietais) ou, o que é mais comum, misturando vários (os blends).

“Extravirgem” é o azeite com menor nível de acidez – até 0,8%. Se o azeite tem de 0,8% a 2% de acidez, ele é do tipo virgem. A acidez maior vem da qualidade dos frutos – alguns podem ter se danificado durante a colheita ou o transporte.

Azeites ruins, com acidez ainda mais alta, não são descartados. Eles podem servir como lubrificantes e combustíveis – caso do lampante, cujo nome vem das antigas lamparinas e é impróprio para consumo. O lampante também pode passar por um refino químico e ser misturado com extravirgens e virgens. Nesse caso, vira um azeite “tipo único”, que pode ser usado na cozinha.

O caldo verde da extração das azeitonas.
95% é quanto o preço global do azeite cresceu em 2023. (JannHuizenga/Getty Images)

Quem define os critérios para classificação é o Conselho Oleícola Internacional, criado em 1956 e que reúne os 19 maiores produtores mundiais (a União Europeia conta como um único membro). Da América, apenas Uruguai e Argentina participam ativamente do clubinho. O Brasil é um “país ouvinte”, sem direito a voz.

É que a produção nacional ainda é pequena (60 mil litros em 2023, a maior parte do Rio Grande do Sul). E recente: começou para valer nos anos 2000, com estudos sobre quais as variedades e cruzamentos seriam mais produtivos por aqui. Mas, embora sejamos novatos na área, nossos azeites têm se destacado em competições internacionais: em 2023, 12 marcas ficaram entre as 500 melhores no ranking Flos Olei, um dos mais respeitados do mundo.

Em 2024, o preço do azeite deve continuar lá em cima. Então fica a dica: leia o rótulo e veja se o óleo foi extraído e envasado no mesmo lugar, o que diminui a chance de fraudes no processo. Escolha as garrafas escuras, que protegem o líquido da luz, e consuma em até 18 meses. Ah, claro: desconfie de extravirgens muito baratos. Sua salada agradece.

Agradecimento Rogério Oliveira Jorge, pesquisador do laboratório de análise de azeites da Embrapa Clima Temperado.

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