Como desmascarar um charlatão
Muitos paranormais acreditam em seus poderes e não estão enganando ninguém. Mas outros se aproveitam da boa vontade do público para fazer truques de mágica
Em 1º de agosto de 1973, o ilusionista Uri Geller apareceu nos televisores de milhões de americanos sentado na poltrona do Tonight Show, tradicional programa de entrevistas e humor dos Estados Unidos. Vestido com uma camisa aberta até a metade do peito, o israelense naturalizado britânico vivia o auge da sua carreira de paranormal. Ao seu lado, trajando um terno vermelho, estava o apresentador do programa, Johnny Carson, um dos mais populares humoristas da época.
Por ingenuidade ou excesso de confiança, Geller havia se metido em uma enrascada. Carson, além de humorista, era mágico e duvidava dos supostos poderes do convidado, que vinha fazendo fama na TV de todo o mundo dobrando talheres com o “poder do pensamento” e realizando outros feitos com seus poderes supostamente sobrenaturais. Assim que recebeu a confirmação de Geller no programa, a produção do Tonight Show ligou para o também mágico James Randi, um conceituado ilusionista que havia enveredado para o ramo do combate ao charlatanismo. Randi adora um bom truque. Mas a Terra estava se tornando um planeta cada vez mais místico – e perigoso, na sua opinião – com a ascensão de uma vasta gama de práticas esotéricas suspeitas, que surgiram na esteira do movimento New Age, a partir da década de 60.
Sem talheres preparados, paranormal israelense pagou mico para milhares de telespectadores dos EUA.
A opinião pública estava propensa a acreditar em explicações sobrenaturais para todo tipo de fenômeno, de terapias milagrosas a extraterrestres, e não era por acaso que figuras como Uri Geller turbinavam a audiência na TV. Como conhecia bem o ramo, Randi temia que ilusionistas estivessem se passando por paranormais, que é uma forma desonesta de impressionar a plateia. Por isso, ao receber a ligação do Tonight Show, Randi recomendou que os produtores não deixassem Geller utilizar os próprios talheres e demais apetrechos nos seus truques. Os produtores obedeceram e forneceram garfos novos para o convidado, que não pôde tocar no material antes do programa. O israelense sentiu o golpe. Ao sentar na poltrona, disse, apontando para a mesa onde estavam os utensílios: “Isso me assusta”. Geller passou a mão por cima dos objetos, como se tentasse sentir sua energia. “Isso é muito suspeito. Estou passando um sufoco com você”, disse, rindo. O paranormal pediu um descanso, reclamou que o apresentador não quebrou o gelo com perguntas, fez um olhar concentrado diante da mesa, e Carson chamou os comerciais (voltou com um cigarro aceso na mão – eram outros tempos). Não adiantou. Geller não deu nenhum exemplo dos seus poderes paranormais: “Não me sinto forte”.
O truque do israelense é bem simples de acordo com Randi: os talheres são entortados para cima e para baixo antes da apresentação. Assim, a liga metálica fica frágil na parte mais fina da haste. Adicione um pouco de calor fornecido pelo atrito dos dedos e basta deixar que o peso das extremidades do objeto e a fragilidade prévia do metal entortarem o talher até que ele se quebre diante de uma audiência estupefata. Geller faz um truque parecido com chaves, supostamente mais fortes. Mas, em vez de fragilizar o metal antes da apresentação, o ilusionista partiu para uma tática mais ousada. Enquanto distrai a plateia falando frases como “é impossível dobrar uma chave apenas com os dedos”, ele faz justamente isto: dobra a chave num movimento rápido. A plateia, distraída pelo discurso eloquente, nem percebe. Depois esfrega o metal apenas para completar o truque, levantando a ponta da chave aos poucos, na tentativa de convencer o público de que a chave, já torta, está sendo dobrada por força do seu pensamento. Ilusionismo puro? É o que Randi sustenta.
A disputa entre Randi e Geller dura até hoje. Em 1982, o cético publicou o livro The Truth About Uri Geller (“A verdade sobre Uri Geller”, sem edição em português), e as acusações renderam pelo menos três processos do paranormal contra Randi (todos foram arquivados).
Caçadores de fraudes
Dois anos depois da fracassada exibição de Geller, o filósofo Paul Kurtz publicou um artigo com objeções à astrologia. O documento foi apoiado por outros 186 cientistas e serviu de incentivo para a formação do Comitê para Investigação Cética (CSI, em inglês), uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é promover o ceticismo a respeito de atividades ditas sobrenaturais. Desde 1976, figuras como Randi, Carl Sagan e Isaac Asimov colaboram com a causa da CSI, que é um dos mais atuantes grupos céticos da atualidade dedicados a lançar as luzes da ciência sobre alegações paranormais. Esse tipo de organização cética floresceu também no século 19, com a explosão da moda espiritualista, combatida por mágicos e cientistas.
Quando se deparam com um novo médium, vidente ou qualquer um que diga possuir habilidades sobrenaturais, os investigadores primeiro tentam delimitar os poderes da pessoa. Isso serve para focar a análise. Acontece que muitos sensitivos alegam habilidades difusas, que podem ir da vidência à leitura do pensamento, passando pela telecinese e pelo domínio de energias – tudo ao mesmo tempo. “Muitas vezes, os charlatões são vagos, muito ambíguos”, diz Benjamin Radford, pesquisador do CSI e autor de livros sobre monstros, óvnis, vampiros e lendas em geral. “Charlatões se safam muitas vezes porque não determinam exatamente quais são suas habilidades. Se você investiga um desses poderes e mostra que é impossível, eles dizem `ah, não é isso que eu quis dizer, não disse que posso curar o câncer, posso curar a gripe¿.” Com a definição dos poderes do paranormal, os investigadores começam a desenhar experimentos com metodologia científica para testar as alegações. Também usam os conhecimentos de uma área totalmente diferente: o ilusionismo. Alguns poderes paranomais não passam de velhos truques de mágica reciclados para uma nova plateia. Dessas análises, começam a surgir novas dúvidas. Uri Geller, por exemplo, era capaz de entortar garfos e colheres, mas não facas. Por quê? Não soa arbitrário? Por que as facas não respondem à força do seu pensamento? Seria por que elas não possuem a mesma fragilidade para que sejam entortadas previamente? Alguns furos dos charlatões surgem de questionamentos como esse.
O último passo para desmarcarar um falso paranormal é colocá-lo diante de condições controladas, fora do seu palco. “Um mágico poderia se apresentar com câmeras por toda a parte, com cientistas procurando falhas, num ambiente controlado?”, questiona Radford. Exatamente como aconteceu com Geller no Tonight Show. Quando perdeu o controle do cenário, ficou vulnerável. E não foi a única vez: no reality show The Successor, lançado em 2006 na TV israelense, Geller foi pego pelas câmeras com um ímã escondido no polegar para interferir no funcionamento de uma bússola. O problema é que muitos paranormais se negam a trabalhar assim, sem controlar todo o ambiente.
Tire o trapaceiro da sua zona de conforto para testar seus reais poderes. Os truques aparecem.
Para incentivá-los, James Randi tem uma oferta e tanto: US$ 1 milhão para quem conseguir provar que possui poderes paranormais em um teste. O desafio começou em 1964, quando Randi passou a oferecer US$ 1 mil, mas apoiadores da causa cética doaram mais dinheiro, e o valor se tornou milionário com o passar dos anos. Desde então, mais de mil pessoas se candidataram ao teste, que é proposto pelo paranormal. A partir daí, as condições são negociadas. Nunca alguém passou das preliminares. Suspeita-se que os charlatões clássicos, aqueles que estão enganando a plateia deliberadamente, são a minoria entre os candidatos do teste de Randi. A maioria seria de sentivos que realmente acreditam nos seus poderes.
O brasileiro Thomaz Green Morton foi um dos supostos paranormais que aceitaram o desafio. Conhecido como o homem do “rá!” (seu grito energético, que virou uma assinatura), Morton ficou famoso nos anos 80 por juntar a elite artística brasileira no seu rancho de Pouso Alegre (MG). Fazia demonstrações do seu poder da mente, prometia “energizar” pessoas e vivia como uma espécie de guru de uma doutrina não muito clara. “Eu tenho capacidade de cura de determinadas doenças”, disse uma vez em entrevista ao programa Fantástico. A cantora Baby do Brasil foi uma das responsáveis por fazer a fama de Morton ao defender seus poderes publicamente. E também ajudou a levá-lo ao esquecimento após uma briga com o místico. Depois da fama nos anos 80, o paranormal ficou anos recluso, mas ressurgiu em 2002 após aceitar o desafio de James Randi. Em 8 de junho, Morton assinou um contrato com o cético se comprometendo a desempenhar seus poderes entre julho e agosto daquele ano. O homem do “rá!” dizia que iria quebrar um ovo e, em 30 minutos, iria transformar a gema e a clara num pintinho apenas com o poder da mente. Todo o processo, desde a assinatura do contrato, foi documentado pelo Fantástico. Mas, pouco antes do encontro, Morton disse que teria uma viagem a fazer e cancelou a demonstração. Talvez o místico já estivesse satisfeito com a repercussão do embate: ele estava de volta à mídia (chegou a ser capa de uma revista semanal, a IstoÉ). Após a desistência, no entanto, uma investigação preparada pela revista eletrônica dominical trouxe depoimentos de testemunhas que garantiam que Morton passou anos se apresentando como ilusionista antes de se declarar paranormal (um indício de que ele sempre teve conhecimento de truques de mágica). Depois, dissecou suas habilidades com o apoio do mago Kronnus. O especialista reproduziu diversos poderes de Morton, incluindo os flashes luminosos que surgiam do seu corpo quando o guru soltava um rá!. Com a diferença, é claro, que Kronnus não precisou fazer nenhum discurso sobre energias e poderes do além. Para o mago, Morton era um ilusionista barato. Desde então, o guru dos artistas sumiu dos holofotes.
No entanto, no ramo da paranormalidade, nem tudo é trapaça. Muitos sensitivos realmente acreditam que possuem habilidades místicas. Esses são os casos mais complicados para os céticos. “Se for vigarista, você pode descobrir seu truque”, diz Benjamin Radford. Como comprovar que Chico Xavier não recebia espíritos? Em alguns casos, só resta acreditar. Ou duvidar.