Conheça a Yakuza, uma máfia legal
Eles socorrem vítimas de terremotos e dão doces no Halloween. Mas por trás das boas ações, está a principal organização criminosa do Japão
Cena 1. Os relógios de Tóquio marcavam 14h46 em 11 de março de 2011 quando um terremoto de 8,9 graus na escala Richter – o mais devastador registrado no Japão – assolou o nordeste do país. O tremor provocou ondas gigantes que varreram navios, edifícios e automóveis, matando 23 mil pessoas. Menos de 24 horas depois, toneladas de água e comida começaram a chegar para 350 mil desabrigados. A boa ação não era da Cruz Vermelha ou dos Médicos sem Fronteiras. No Japão, os bons samaritanos não vestem jaleco branco. Usam terno preto e têm o corpo tatuado.
Cena 2. Três anos depois do mais grave acidente nuclear japonês, operários ainda são recrutados para remover os destroços da usina de Fukushima. Indigentes e desempregados são aliciados por gangues criminosas para fazer o trabalho sujo e radioativo. É o caso de Shizuya Nishiyama, 57 anos. Dormindo ao relento sob o rigoroso inverno japonês, Nishiyama aceitou o trabalho sem saber onde seria. E pior: sem receber o que foi prometido. Boa parte do salário dos “ciganos nucleares” vai para o bolso dos aliciadores, que ganham US$ 100 por recrutado.
Não parece, mas as duas cenas estão conectadas. No Japão, o honrado cavalheiro que auxilia vítimas do tsunami também escraviza sem-tetos para descontaminar Fukushima. Trata-se de um membro da Yakuza, como é conhecida no Ocidente a principal organização criminosa japonesa. O código de honra da máfia prega proteger os fracos e combater os poderosos. Mas, na prática, a teoria é outra. “Os yakuzas têm uma visão heroica de si e a vendem para a opinião pública”, afirma o historiador Andrew Rankin, da Universidade de Cambridge. “A ajuda humanitária não passa de marketing para conquistar simpatia popular.”
Caminho sem volta
Falando em marketing, os yakuzas nem gostam de ser chamados assim. O nome vem do oicho-kabu, jogo de cartas parecido com o blackjack. Cada jogador recebe três cartas e ganha quem chegar mais perto de 19 pontos. Se as cartas recebidas somam 8 (ya) + 9 (ku) + 3 (za), o jogador faz 20 e perde. Por analogia, yakuza passou a significar algo “inútil” e “sem valor”. Por isso, os mafiosos preferem a alcunha de gokudo (“caminho sem volta”). “O gokudo vai à frente, não volta atrás e termina o que começou”, define o jornalista americano Jake Adelstein, que trabalhou por 12 anos no Yomiuri Shimbun, maior jornal do Japão, e escreveu Tóquio Proibida – Uma Viagem Perigosa pelo Submundo Japonês. Já as autoridades policiais chamam os yakuzas de boryokudan (“grupos violentos”).
Pelos cálculos da Agência Nacional de Polícia (NPA), há cerca de 53 mil yakuzas – fontes não oficiais sugerem 83 mil. Das 22 facções, as três maiores – e mais violentas – são: Yamaguchi-gumi, Sumiyoshi-kai e Inagawa-kai. A primeira tem sede em Kobe e as outras em Tóquio. No Japão, o crime é mais que organizado. É corporativo. As quadrilhas têm sede, escritório, site, fanzine e cartão de visitas. “Fazer parte desses grupos não configura crime no país. Eles são protegidos pelo direito constitucional da livre associação”, explica o advogado brasileiro Eduardo Mesquita, da Universidade de Tóquio.
Cerca de 60% do dinheiro dos yakuzas vem de negócios escusos, como extorsão, agiotagem, prostituição, jogos de azar, pornografia infantil e tráfico de drogas. Os outros 40% do faturamento têm origem em atividades legais, como construção civil, mercado financeiro e setor imobiliário. Em 2006, a polícia de Tóquio mapeou mais de mil empresas de fachada para lavar dinheiro da máfia, incluindo agências de emprego, companhias de seguro e até estúdios de cinema – não é raro ver filmes exaltando virtudes heroicas dos yakuzas.
Outra tentativa midiática de melhorar a autoestima do grupo e recrutar membros passa pela imprensa. Kenichi Shinoda, líder da Yamaguchi-gumi, lançou um tabloide com dicas de viagens, poemas haicai e relatos de pescaria. No editorial, ensina aos jovens valores tradicionais, como valentia, disciplina e lealdade.
40% do faturamento da Yakuza tem origem em atividades legais, como construção civil, mercado financeiro e setor imobiliário
Dogmas do submundo
A máfia japonesa segue uma estrutura familiar. De um lado, os padrinhos (oyabun), que dão grana, conselhos e proteção. Do outro, os afilhados (kobun), que juram fidelidade incondicional. “Se o oyabun diz que o corvo é branco, o kobun tem que concordar”, ilustra David Kaplan, coautor de Yakuza– Um Levantamento Explosivo do Submundo Japonês do Crime. Atualmente, a Yakuza enfrenta dificuldades para renovar os membros – qualquer um com até 25 anos pode ingressar.
Quase um terço dos kobuns vem de grupos de delinquentes juvenis (bosozoku). Quem adere recebe aulas de artes marciais, incluindo o manejo de faca e outras armas brancas (no Japão, armas de fogo são proibidas), e passa por um período de teste para provar lealdade ao oyabun. Reza a lenda que a facção Kodo-kai teria um centro de treinamento na cidade de Nagoya.
Embora o grupo não seja religioso, algumas regras parecem mandamentos. “Nunca revelar os segredos da organização”, “Não ter envolvimento com narcóticos”, “Não tirar dinheiro da quadrilha”, “Não desobedecer superiores” e “Não recorrer à polícia ou à Justiça” são exemplos. Talvez por isso, “entrar para a máfia tornou-se antiquado. Ser yakuza já não é mais tão cool”, afirma Andrew Rankin.
Tradições em declínio
Nos últimos dez anos, a máfia perdeu mais de 33 mil membros – nos anos 1960, tinha 184 mil e mais de 5 mil clãs. Além do cerco policial apertando, também tem muito mafioso pedindo para sair. Mas deixar o crime não é fácil. Por causa da crise que castiga o Japão, muitos desertores não se alocam no mercado de trabalho convencional.
Como muita gente reluta em contratar funcionários com dedos amputados, um dos gestos mais tradicionais dos mafiosos, de cortar a falange do dedo (yubitsume) e oferecê-lo ao chefe da facção como pedido de desculpas, está sendo abandonado. Os mais jovens preferem pagar em dinheiro ou no cartão pelo perdão. Para os amputados – quatro em cada dez yakuzas, segundo a NPA – o jeito é recorrer a fabricantes de próteses para arranjar um emprego. Os mais requisitados cobram até US$ 3 mil por cada peça de silicone, sob medida.
Outro costume com os dias contados é cobrir o corpo de tatuagens (irezumi). Em seus áureos tempos, os yakuzas se submetiam a longas e dolorosas sessões com agulhas de bambu, osso ou madeira para provar coragem. Hoje, para não chamar a atenção da polícia, os novos membros fazem desenhos mais discretos. Sinal dos tempos: homens tatuados já não são mais bem-vindos nas tradicionais casas de banho japonesas.
Legislação anti-yakuza
Um policial de Osaka comparou seu trabalho investigando a Yakuza com o de um jardineiro de bonsai: “Nós apenas aparamos os galhos. Raramente tocamos as raízes”. Isso começou a mudar nos anos 1990, com a criação das primeiras leis contra os yakuzas. Escutas telefônicas, delações premiadas e proteção à testemunha começaram a ser usadas no combate à máfia.
Após dez anos, a legislação endureceu. Ao pedir um empréstimo, alugar imóvel ou abrir conta no banco, a pessoa precisa declarar não ter vínculo com o crime organizado. Desde 2011, é ilegal fazer negócio com membros da máfia. Até quem sofre tentativa de extorsão e não denuncia vira cúmplice. Aconteceu com o apresentador de TV Shinsuke Shimada. O “Jay Leno do Japão” se viu obrigado a se aposentar após ter divulgada uma troca de e-mails com um ex-chefão da Yamaguchi-gumi. “Não acho que estivesse fazendo algo errado, mas esse tipo de amizade tornou-se inaceitável no Japão”, lamentou Shimada.
Outra lei pesada responsabiliza os chefões por deslizes de subalternos. Para não correr riscos, facções criaram um “exame de admissão” para quem deseja seguir carreira no submundo japonês. Entre as 12 questões do teste estão “Como agir em caso de roubo de carro?”, “Quando devo usar escutas ilegais?” e “Em que situações posso recorrer ao chefe da facção?”.
33 mil yakuzas desertaram, morreram ou foram presos nos últimos dez anos
Um mal a ser erradicado
Para agravar a agonia da Yakuza, a Yamaguichi-gumi sofreu um racha em setembro de 2015, expulsando cerca de 3.300 membros, que formaram o grupo rival Yamaken-gumi. A polícia entrou em estado de alerta, temendo derramamentos de sangue como os dos anos 1980. Até pouco tempo, uma das regras dos yakuzas era a de não ferir quem não fosse do crime organizado, o que, de certa forma, os protegia da intolerância da população e do cerco da polícia. Isso também mudou. No fogo cruzado entre as gangues, ninguém está a salvo. Por medida de segurança, os yakuzas suspenderam até a festa do Halloween, em outubro. “Antigamente, a Yakuzaera vista como um mal necessário à sociedade japonesa. Agora é apenas um mal a ser erradicado”, afirma Adelstein.
A Yakuza está perto do fim? Alguns especialistas avaliam que sim. “Ela está obsoleta. Mais uma ou duas leis e eles serão carta fora do baralho”, garante Jake Adelstein. Outros defendem que, se quisesse, a polícia já teria se livrado dos mafiosos. “De certa forma, interessa ao governo manter os yakuzas ao alcance de seus olhos”, acredita David Kaplan. “Mais do que o crime organizado, o que apavora o cidadão japonês é o crime desorganizado”, conclui.