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O magnata fantasma que guarda a história da Covid-19

Um banco de dados privado sem fins lucrativos armazena 15 milhões de genomas de coronavírus. Mas seu futuro está ameaçado pelo fundador: um filantropo de passado obscuro que costuma bloquear o acesso de pesquisadores à plataforma.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
20 jul 2023, 15h57

Em janeiro de 2004, uma mutação do vírus da gripe aviária H5N1 se espalhou por dez países asiáticos a partir de granjas no Vietnã e na Tailândia. O patógeno, especialista em galinhas e afins, raramente salta para humanos. Mas, quando consegue, mata 60% dos infectados (dos 861 pacientes registrados pela OMS entre 2003 e 2020, 455 morreram). Pode haver uma grande subnotificação, o que reduziria a taxa. De qualquer forma, há o risco de que ele desenvolva, por seleção natural, a capacidade de se transmitir de pessoa para pessoa – o que renderia uma pandemia potencialmente mais letal que a de Covid.

Na época, a colaboração internacional para estudar o H5N1 empacou. Os biólogos de alguns países no epicentro da epidemia, que tinham acesso privilegiado ao vírus, estavam com medo de divulgar o material genético do H5N1 em estado bruto – já que laboratórios europeus e americanos, com equipes e verbas maiores, conseguiriam analisar as sequências de RNA muito mais rápido e publicar suas conclusões na frente.

Esse tipo de preocupação rola por causa do seguinte: a ciência contemporânea é um ambiente competitivo. Agências de fomento concedem bolsas para pesquisadores com base em métricas como o número de artigos que eles publicam, a quantidade de vezes que esses artigos são citados e a relevância dos periódicos em que os textos saem. O problema, óbvio, é que blindar sua carreira não é a coisa mais ética a se fazer durante uma emergência sanitária global.

“A maioria de nós é paga para proteger a saúde humana e animal”, disse, na época, a bióloga italiana Ilaria Capua. “Se publicar mais um paper for mais importante do que isso, estamos confundindo nossas prioridades.” Ela se tornou uma ativista pró-acesso aberto, e denunciou um grupo de quinze laboratórios que compartilhavam genomas virais em um banco de dados fechado com senha. Seu ativismo atraiu o interesse de um personagem que não tinha envolvimento prévio com o mundo científico: um ricaço alemão chamado Peter Bogner.

Em 2008, esse filantropo misterioso investiu milhões na criação da Iniciativa Global de Compartilhamento de Dados de Gripe Aviária – conhecida pela sigla em inglês Gisaid. Essa plataforma online mediava as relações entre os cientistas e impunha condições razoáveis (como dar os devidos créditos) a quem quisesse usar sequências de DNA e RNA disponibilizadas em sua base de dados.

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O site foi um caso de amor à primeira vista com a comunidade acadêmica: até hoje, laboratórios de todo o mundo fizeram o upload de 400 mil genomas de influenza no Gisaid. Em 2010, Bogner percebeu que podia expandir o monopólio para outros vírus – e trocou o avian (“aviário”) da sigla por all (“todos”), pronto para pescar uma oportunidade.

Ela veio dez anos depois. Quando a Covid-19 estourou, o Gisaid se tornou o grande hub de compartilhamento de dados sobre coronavírus. 15 milhões de genomas de Sars-CoV-2 apareceram na plataforma em três anos – mais de trinta vezes todo o material sobre gripe publicado lá em quase duas décadas.

Passado o auge da pandemia, porém, alguns cientistas começaram a perder acesso (parcial ou totalmente) à plataforma, aparentemente como retaliação silenciosa por fazerem críticas construtivas ao Gisaid ou desmentirem publicamente informações erradas fornecidas por Bogner e sua pequena equipe.

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Por exemplo: um grupo do renomado Instituto Scripps, na Califórnia, levou block após escrever – corretamente – que a primeiro RNA de coronavírus da pandemia, em 2020, não havia sido postado no Gisaid, e sim em um outro fórum online de virologia. Bogner reivindica para si esse crédito simbólico.

Em 2020, Duncan McCannel, um figurão do Centro de Controle de Doenças (CDC) dos EUA, pediu aos funcionários do órgão que subissem os genomas não só no Gisaid, mas também em uma base alternativa chamada GenBank. Em agosto, recebeu um e-mail anônimo dramático: “Uma rápida olhada em suas mídias sociais é tudo que é preciso para observar seus esforços desmedidos para perpetuar alegações infundadas que buscam destruir a credibilidade do Gisaid.”

A polêmica mais grave foi a remoção temporária, em março, de dados sobre a possível origem da pandemia no mercado de animais vivos da cidade de Wuhan. Os genomas de vários mamíferos, coletados no mercado após a eclosão da pandemia, saíram do ar pouco após a publicação, sob o pretexto de que os cientistas responsáveis pelo upload haviam violado as condições de uso da plataforma (agora, já estão de volta no ar).

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Currículo? Que currículo?

Em abril deste ano, motivados por relatos como esses, dois repórteres da revista Science tentaram investigar a biografia de Bogner. Eles entrevistaram mais de 70 pessoas que tiveram algum problema para acessar a plataforma, leram centenas de e-mails e mensagens (algumas em que Bogner e outras pessoas ameaçavam cientistas abertamente), foram atrás do currículo do magnata e descobriram que, bem: não há nada para descobrir.

Seus documentos mostram datas de nascimento diferentes, entre 1957 e 1964. A Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, não tem registro de um aluno com seu nome, ainda que ele afirme ter estudado psicologia e feito um mestrado em administração por lá. Ele se mudou para os EUA, supostamente com 22 anos, para trabalhar na produção de um programa de auditório gravado em Los Angeles – e passou dois meses na cadeia por crimes contra o mercado financeiro.

Os maiores doadores da plataforma são bem conhecidos (a Fundação Rockefeller e até a União Europeia já puseram grana lá), mas as contas de Bogner são uma caixa preta: ninguém sabe quanto dinheiro entra nem como ele é gasto.

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É uma história ainda sem desfecho, com muitas morais para o ecossistema da ciência. Os filantropos aprenderam que é uma boa analisar melhor o background das iniciativas que ajudam. As agências de fomento recebem o lembrete de sempre: é preciso pensar critérios de distribuição de verba que estimulem mais a colaboração do que a competição.

E todos os envolvidos nos esforços contra a Covid-19 precisam repensar se a praticidade do Gisaid justifica ter subido o set de dados genômicos mais relevante do século 21 majoritariamente em uma plataforma privada, ainda que sem fins lucrativos. Essa reflexão não era viável durante a emergência sanitária. Mas é fundamental para que a humanidade lide melhor com as próximas.

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