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Mário Schenberg: o renascentista da ciência brasileira

Ele descobriu como as estrelas morrem e fundou o financiamento à pesquisa no Brasil. Trabalhou com os pesquisadores mais importantes da história e tornou-se um político perseguido na ditadura. Conheça o físico brasileiro que caminhou entre estrelas.

Por Maria Clara Rossini
Atualizado em 16 fev 2023, 19h25 - Publicado em 16 fev 2023, 19h21

Tarde de quinta-feira. Depois do almoço, um homem na casa dos 50 anos coloca sua melhor roupa e vai à delegacia. Ele não pretende fazer uma denúncia, mas dar aulas de filosofia platônica aos oficiais. Os agentes não se surpreendem, já que o homem mantém o compromisso todas as quintas-feiras há meses. O professor fica contente por disseminar as ideias do pensador grego, é claro, mas seu verdadeiro objetivo ali é outro: convencer os policiais de que Platão não era “comunista” – e, assim, recuperar sua cópia do livro Diálogos que havia sido confiscada pelo regime militar brasileiro (1).

Mário Schenberg teve de explicar não só o conteúdo de Diálogos, mas de diversos livros de sua coleção pessoal que haviam sido apreendidos. Ele tinha um apreço especial pelas obras: nascido na cidade de Recife em 1914, não teve muitas opções de livros acadêmicos durante o início da graduação na Escola de Engenharia de Pernambuco.  Schenberg só teve contato com uma “biblioteca razoável”, em suas palavras, quando se transferiu para a Escola Politécnica de São Paulo, em 1933 – instituição que se tornaria a Universidade de São Paulo (USP) no ano seguinte (2).

Schenberg conseguiu recuperar seus livros na lábia. Explicar Platão para uma porção de policiais durões só foi um dos itens da sua lista de feitos improváveis. Ela também inclui desvendar a evolução das estrelas, institucionalizar o financiamento da ciência brasileira e ficar a um triz de ganhar um prêmio Nobel. 

Estamos falando de um dos físicos brasileiros mais importantes e conhecidos fora do país – mas relativamente pouco conhecido por aqui. Nas próximas páginas, buscamos dar nossa contribuição para mudar essa realidade. Com prazer, Mário Schenberg.

Entre estrelas

Os pontos fora da curva da carreira de Schenberg já começam na graduação: um dos principais físicos do país nunca se formou em física. Aos 21 anos estava graduado em engenharia elétrica; aos 22, em matemática. Naquela época não havia bolsas de estudos formais (algo que ele mesmo mudaria anos depois), mas o garoto conseguiu auxílio financeiro para fazer pesquisa na Europa graças ao emprego que tinha como professor-assistente na USP (já na área de física). Em 1938, embarcou para a Universidade de Roma. 

Suas novas pesquisas em física começam antes mesmo de chegar em terra firme. A bordo do navio, Schenberg fez experimentos sobre raios cósmicos ao lado de Giuseppe Occhialini – pesquisador italiano que anos depois participaria da descoberta da partícula méson-pi, junto do brasileiro César Lattes. “Raios cósmicos”, só para lembrar, são jatos de partículas subatômicas que entram na atmosfera, vindos do espaço. Durante a viagem, os dois mediram a variação da intensidade de raios cósmicos de acordo com a latitude em que estavam.

Chegando à Europa, Schenberg candidatou-se a trabalhar com ninguém menos que Enrico Fermi, na época já considerado um dos maiores físicos do mundo. A sorte dele é que na época ninguém pedia diploma de nada: qualquer um que quisesse trabalhar em um laboratório top de linha só precisava apresentar um seminário sobre algum assunto escolhido por Fermi. Tudo no intelecto e na lábia. E Schenberg tinha os dois de sobra.

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Não era a primeira vez que as duas mentes se encontravam. O italiano já havia dado uma palestra em São Paulo em 1934. Era a primeira vez que o estudante recém-transferido de Recife ouvia falar de neutrinos, uma partícula teorizada quatro anos antes por Wolfgang Pauli, um dos pioneiros da física quântica.

Até a descoberta do neutrino, havia uma aparente contradição na física. Ela estava relacionada ao decaimento beta, processo em que um próton se transforma em um nêutron. A massa inicial do próton antes do decaimento beta é que a do nêutron – e isso significa que a reação emitiu energia de alguma forma. Só que, mesmo quando os físicos consideravam todas as formas possíveis de liberação de energia, o saldo entre a massa inicial e final ainda não fechava. Deveria haver alguma outra partícula de energia, que não fosse detectável pelos meios convencionais.

Daí que veio a teoria sobre a existência do neutrino. Apesar de ter energia, ele não possui carga elétrica, e por isso não havia sido detectado até então no decaimento beta (isso só aconteceria décadas depois, em 1956). Quem deu o nome à partícula foi Fermi, que queria se referir a algo “neutro”, junto com o diminutivo italiano “ino”. 

Pois bem. Schenberg conseguiu a vaga para trabalhar com Fermi. Durante esse período,  produziu artigos sobre raios cósmicos e chamou a atenção de físicos europeus. Em seguida, foi para a Suíça trabalhar com Wolfgang Pauli mas sua estadia não durou muito tempo. Estamos falando do final da década de 1930, quando Hitler já avançava seu domínio pela Europa. Schenberg achou prudente ir para a França, que tinha uma saída para o mar. Por lá, virou amigo do físico Paul Langevin (que trabalhava com Marie Curie), e ainda trabalhou com Frédéric Joliot-Curie – genro da cientista.

Schenberg voltou ao Brasil em 1939. Após ter colaborado com pelo menos cinco monstros da física, havia pouco para fazer por aqui. Em novembro do mesmo ano, ele embarcou para os Estados Unidos. Dessa vez, não só para trabalhar com figuras renomadas – mas para se tornar uma delas.

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Ilustração com cenas variadas do Mario Schenberg.
(João Montanaro/Superinteressante)

Carreira relâmpago

Sentado em seu escritório, na Universidade George Washington, o físico George Gamow bate a cabeça com um problema de astrofísica. É sobre estrelas que estão nas últimas fases de sua evolução, prestes a “morrer”. 

Antes de entrar nesse ponto, vamos recapitular o funcionamento de uma estrela. Cada uma delas é um reator de fusão nuclear a céu aberto. Elas fundem átomos de hidrogênio (que possuem um próton) para formar átomos de hélio (que têm dois prótons e dois nêutrons – feitos a partir de prótons). Essa é a reação que acontece sem parar no núcleo das estrelas.

A massa dos átomos iniciais de hidrogênio é ligeiramente maior do que a do hélio final. A diferença é liberada na forma de energia. Muita energia. A maior parte na forma de fótons, as partículas que compõem a luz. Outro pedaço, na forma de neutrinos.

Voltemos agora à questão que incomodava Gamow. Ao final de suas vidas, as estrelas já fundiram quase todo seu  hidrogênio – então sobra pouca energia para liberar. Mesmo assim, nessa fase estelar, seus núcleos passam a resfriar (perder energia) de forma muito rápida, e ninguém sabia por quê. Como, e de onde, está saindo essa energia da estrela?

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Eis que o jovem Schenberg chega a Washington e dá uma olhada no artigo de Gamow. Dois dias depois, o brasileiro procura o professor e diz que ele deveria considerar os neutrinos. Talvez um aumento da ejeção de energia na forma de neutrinos, que ainda eram indetectáveis, pudesse explicar o enigma. Gamow imediatamente pôs a mão na cabeça, de tão surpreso. O mistério estava resolvido.

Os dois físicos batizaram esse fenômeno de ejeção em massa de neutrinos como  “Processo Urca”. O nome faz alusão a uma viagem que Gamow fez ao Rio de Janeiro, quando visitou o cassino da Urca. Segundo ele, os neutrinos saem tão rápido do núcleo das estrelas quanto o dinheiro saía dos bolsos dos apostadores da Urca.

Esse foi o trabalho que deu projeção internacional a Schenberg. Em 1942, foi para a Universidade de Chicago e trabalhou com Subrahmanyan Chandrasekhar. Os dois calcularam o que ficou conhecido como Limite Schönberg-Chandrasekhar (aqui, seu nome ficou registrado com o “ö” no lugar do “e”, a grafia original desse sobrenome germânico).

Como você viu lá atrás, a reação “padrão” que ocorre no interior das estrelas é a fusão de hidrogênio em hélio. Se ela não existisse, a estrela colapsaria sob a própria pressão gravitacional que gera. A liberação de energia (entre outros fatores mais complexos) serve de contrapeso para essa gravidade. E mantém a estrela estável ao longo de sua vida. 

Conforme o tempo passa, porém, mais hélio e menos hidrogênio há no núcleo. Uma hora o combustível para fazer o contrapeso acaba. A estrela não aguenta a pressão gravitacional, e seu núcleo entra em colapso. Quando esse limite é atingido, a estrela se expande na forma de uma gigante vermelha – com diâmetro centenas de vezes maior que o original.

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A partir desse momento, em algumas estrelas, inicia-se a fusão de hélio. O limite de Schönberg-Chandrasekhar é a fronteira entre essas duas fases da vida em estrelas com massa entre 1,5 e 6 vezes a do Sol. Para estrelas maiores ou menores do que isso, há fórmulas diferentes.

Chandrasekhar ganhou um Nobel em 1983 por seus estudos sobre a vida íntima das estrelas. Aliás, o que não faltam são laureados que participaram da carreira de Schenberg: Fermi, Pauli, Joliot-Curie… E nenhum para o brasileiro. O Brasil nunca recebeu prêmio Nobel de ciência – mas Schenberg estaria na lista dos mais cotados.

Albert Einstein provavelmente concordaria com essa afirmação. Os dois gênios se conheceram na Universidade de Princeton, onde o pai da relatividade lecionava. Apesar de não terem feito nenhuma pesquisa juntos, os dois trabalhavam em salas próximas e acabavam trocando ideias de vez em quando (3). Uma lenda que circula entre a comunidade científica é que Einstein teria listado Schenberg como uma das dez personalidades mais importantes da física. Mas não há registro da suposta lista – e talvez essa história seja uma forma de expressar a admiração e o respeito que os cientistas sentiam um pelo outro.

Ilustração com cenas variadas do Mario Schenberg.
(João Montanaro/Superinteressante)

Mudança de rumo

Mário Schenberg teve uma das carreiras científicas mais rápidas da história. Suas principais contribuições para a física foram feitas em um intervalo de quatro anos, antes mesmo de completar 30 aniversários. No período em que viveu na Europa e nos Estados Unidos, o cientista se aproximou da pintura e da fotografia, temas que já lhe interessavam desde criança. Elas foram responsáveis por uma das mudanças de rumo mais inusitadas que um físico poderia fazer: tornar-se crítico de arte.

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E dos bons. Quando retornou ao Brasil, ainda nos anos 1940, Schenberg passou a frequentar eventos e casas de artistas brasileiros. Aproximou-se de nomes como Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Alfredo Volpi e, no exterior, de Pablo Picasso. Escreveu mais de 400 críticas de arte ao longo da vida e foi escolhido pelos artistas para ser jurado da Bienal de Arte na década de 1960.

“Ele foi ficando tão conhecido e integrado no mundo da arte que faziam até piadinhas: tal artista é tão anônimo que nem o Schenberg conhece”, conta Ana Pismel, pesquisadora do Centro Mário Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes.

Seu currículo já tinha ciência, arte… faltava a política para ser considerado um verdadeiro homem renascentista. E ela veio com força. Schenberg foi eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1946. Junto do historiador Caio Prado Júnior, ele aprovou o artigo 123 da Constituição Estadual de São Paulo de 1947. O artigo estabelece que pelo menos 0,5% da receita tributária do estado seja destinada a uma fundação de fomento à pesquisa. Anos depois, essa fundação viria a se tornar a Fapesp – que, apesar de ser vinculada ao estado de São Paulo, é hoje um dos principais órgãos de financiamento à pesquisa do Brasil.

Isso não significa que Schenberg tenha abandonado a carreira científica. Desde o retorno, ele seguia como professor da USP, ajudou a fundar o Departamento de Materiais e Mecânica e o Laboratório de Física do Estado Sólido no final da década de 1950 – e ainda participou da compra do primeiro computador da universidade. Suas aulas eram espontâneas e refletiam seu fluxo de pensamento: não raro, Schenberg se empolgava e seguia fazendo contas nas paredes quando acabava o espaço na lousa.

Ele só não esperava que sua ligação com a universidade fosse cortada tão cedo. Com o golpe militar de 1964, Schenberg foi preso por quase dois meses e aposentado compulsoriamente devido à sua ligação com o partido comunista. Na ocasião em que os militares confiscaram o livro Diálogos, de Platão, também levaram de sua casa a estátua de um santo católico – confundido com Vladimir Lênin (1).

Mas não faltaram amigos para ajudar Schenberg nos momentos mais truculentos da ditadura. O físico desabafou sua frustração por não poder mais entrar na universidade em uma carta a Clarice Lispector. Quando foi decretada sua prisão preventiva, o professor passou um período escondido nas casa de Hilda Hilst e de Jô Soares. O humorista lembra da ideia mirabolante que Schenberg tinha de se disfarçar pintando o cabelo de acaju, como se assim não fosse ser reconhecido na rua.

Mesmo nos períodos mais complicados, o físico nunca abandonou seu interesse por física, artes plásticas, e também temas como religião e filosofia. Deu aula e virou amigo dos (outros) maiores nomes da física brasileira, como César Lattes e José Leite Lopes. Casou-se e teve uma única filha, que hoje é professora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.

Mário Schenberg morreu em 1990, aos 74 anos. Antes disso, teve tempo de vivenciar um último momento histórico na sua carreira: a comprovação experimental do Processo Urca. Ela aconteceu em 1987, com a explosão de uma estrela localizada na Grande Nuvem de Magalhães. Laboratórios de detecção de neutrinos identificaram os jatos dessas partículas previstos por Schenberg e Gamow. O físico João Steiner teve a honra de comunicar a descoberta para o pesquisador sênior em primeira mão. Anos depois, Steiner relatou como foi a recepção da comunidade científica em um texto para a Super:

“Seria natural que ocorresse uma certa euforia por esse feito tão notável. Talvez seja surpreendente que isso não tenha acontecido. Qual seria a razão? A teoria de Gamow e Schenberg era tão perfeita que ninguém tinha a menor dúvida de que, cedo ou tarde, os neutrinos seriam detectados”.

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Referências: (1) Texto ​​Entre estrelas, políticos e artistas, publicado na Revista Fapesp; (2) Livro Diálogos com Mário Schenberg; (3) Texto José Luiz Goldfarb: Encontros na fronteira, publicado na Revista Fapesp.

Fontes: Ana Pismel, pesquisadora do Centro Mário Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes; Roberto Costa, professor do Departamento de Astronomia da USP; Livro Voar também é com os homens – O pensamento de Mário Schenberg, de José Luiz Goldfarb.

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