Realidade virtual: do paleolítico ao século 21
As pinturas rupestres já eram uma forma de RV. Agora, em 2023, a arte de imitar a vida dá um salto quântico. Veja na nossa reportagem de capa.
A força da mordida de um leão equivale a 50 quilos por centímetro quadrado. Um guepardo perseguindo uma presa chega a 130 km/h. Já um atlatl, artefato manual asteca, propele uma lança a 150 km/h. No alvo, a pressão chega a 75 quilos por centímetro quadrado. Trata-se de uma estrutura simples, mas que mesmo assim transforma seu portador em algo mais letal que um leão, e mais veloz que um guepardo.
A cultura asteca floresceu há relativamente pouco tempo. Mas essa arma existe desde a Idade da Pedra. O atlatl mais antigo, encontrado na França, tem 17,5 mil anos. Ele pode ser feito de madeira ou osso, e serve para encaixar a parte traseira de uma lança. Na hora do arremesso, a coisa dá um impulso brutal ao projétil. Graças a essa ferramenta, o Homo sapiens se tornou o maior predador da Terra.
Mas não foi esse status que nos fez humanos de fato. Foi outra criação do paleolítico: a realidade virtual. Não na acepção moderna do termo, lógico, mas no significado essencial: a capacidade de criar ambientes que não existem na natureza.
As pinturas rupestres já eram isso. Ao “decorar” paredes de cavernas com imagens de bichos, nossos ancestrais traziam um pouco do cenário externo para dentro de um espaço inóspito. A música cumpre um papel semelhante. O que é um instrumento, afinal, se não um artefato capaz de dar vida a sons que, antes de ganhar forma, só existiam nas nossas cabeças?
Por volta de 3.500 a.C. surgiria a forma mais poderosa de realidade virtual: a escrita, que transformava o registro oral, fugidio, em algo concreto, capaz de durar para sempre – que o digam as histórias de Homero e do Velho Testamento; elas foram para o papiro há quase 3 mil anos e seguem firmes no pool cultural da humanidade. Muito mais tarde, o cinema uniria todas as pontas, adicionando imagens e sons às histórias.
Em 1957, veio a primeira tentativa de criar uma realidade virtual no sentido contemporâneo da coisa. Não por acaso, foi pelas mãos de um cineasta: o americano Morton Heilig. Ele criou uma espécie de capacete de RV. Na verdade, era uma caixa na qual você colocava a cabeça dentro. Mas a intenção ali era a mesma dos dispositivos que viriam mais tarde: apresentar conteúdo audiovisual de forma completamente imersiva, indiscernível da realidade.
De lá para cá, porém, nenhum equipamento de RV atingiu esse objetivo. Mas isso está mudando a passos largos. O Vision Pro, apresentado pela Apple em junho, dá um salto quântico na realidade virtual. Nas palavras do editor Bruno Garattoni, que testou o headset na Califórnia e narra a experiência de forma brilhante nesta edição: “Surge uma borboleta, que voa lenta e delicadamente pelo recinto. Estendo o braço, e ela pousa nas costas da minha mão. Não sinto seu toque, pois ela não existe; fora isso, é uma borboleta de verdade”.
A real é que ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos ancestrais. Nos deleitamos com imitações da vida. A diferença é que agora elas começam a ficar maiores que a vida. Boa leitura.