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Renda mínima: uma boa ideia também para tempos sem pandemia

O conceito de pagar um salário para cada cidadão é visto com bons olhos tanto por liberais como por socialistas. E a crise é um gatilho para viabilizá-lo.

Por Pedro Menezes
Atualizado em 6 Maio 2020, 21h09 - Publicado em 22 abr 2020, 19h01

Outubro de 2000 foi um mês intenso na vida de Eduardo Suplicy. Marta, sua esposa na época, foi eleita prefeita da cidade de São Paulo no dia 29. Não foi o único acontecimento marcante daquele mês. Nos dias 6 e 7, em viagem a Berlim, Suplicy passou o fim de semana conversando com Milton Friedman, um dos economistas mais influentes da história. O encontro entre o cofundador do PT e o pai do neoliberalismo é ainda mais inusitado porque os dois se reuniram para concordar. Em comum, ambos defendiam que o Estado deveria garantir uma renda mínima a todos os cidadãos.

“Há pessoas que têm resistência à renda mínima, dizendo se tratar de uma proposta neoliberal, pelo fato de Milton Friedman ter contribuído para conceituar e popularizar [a ideia]”, escreveu Suplicy em artigo sobre aquele encontro. “Ser contra a renda mínima só porque Friedman a defendeu é semelhante a ser contra o imposto de renda só porque países capitalistas o aplicam”, completou.

A proposta defendida por Friedman teve origem num artigo de George Stigler, outro vencedor do Nobel, que descreveu ineficiências econômicas geradas pelo salário mínimo. Na conclusão, sem muita ênfase, Stigler propôs outra política pública que geraria o mesmo efeito, mas sem os defeitos apontados. A ideia foi batizada como “imposto de renda negativo”. Friedman gostou e decidiu trabalhar em cima dela.

O imposto de renda negativo é o exato oposto do IR comum. A ideia consiste em transferir dinheiro público para os pobres, de modo que nenhum cidadão tenha renda abaixo de certo valor.

Três anos após o encontro de Suplicy e Friedman, o imposto de renda negativo inspirou o Bolsa Família. O economista responsável pelo desenho do programa foi Ricardo Paes de Barros, ex-aluno de Friedman. O PT protestou. Maria da Conceição Tavares, economista histórica do petismo, tratava o programa como fruto de uma infiltração do Banco Mundial em seu partido.

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De lá para cá, a união entre liberais e socialistas em defesa da renda mínima ficou mais forte. Trata-se de uma das únicas políticas defendidas por duas tribos ideológicas que não se bicam.

Por um lado, muitos liberais argumentam que a renda mínima é um programa social extremamente eficiente. Como o governo se limita a repassar dinheiro para o cidadão, os custos com burocracia são pequenos e é o indivíduo quem escolhe como gastar o valor recebido, em vez de deixar a decisão nas mãos do Estado.

Para liberais, ela traz mais poder de decisão aos cidadãos. Para socialistas, é fundamental para minguar a desigualdade.

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Da mesma forma, muitos no campo da esquerda enxergam a renda mínima como uma ferramenta eficaz no combate à pobreza e à desigualdade. Quando o trabalhador tem a garantia de que receberá algum dinheiro ao fim do mês, ele tem mais poder ao negociar com o patrão. Também aumentam os incentivos para estudar alguns anos a mais, evitando a entrada precoce no mercado de trabalho.

Se diversos grupos conflitantes simpatizam com a ideia, por que ela ainda não é aplicada em larga escala? O motivo é simples: custa caro. O Bolsa Família é barato, mas um lar de quatro pessoas com renda mensal de R$ 1.500 é considerado rico demais para entrar no programa. E, mesmo para quem é miserável, o valor repassado dificilmente ultrapassa R$ 300. Apesar de garantir que nenhum brasileiro tenha renda familiar abaixo de certo limite, o Bolsa Família tem pouco dinheiro e atinge poucas pessoas, em relação ao total da população.

Por isso, muitos defensores da renda mínima propõem uma versão ainda mais radical e custosa: a renda básica universal, conhecida internacionalmente pela sigla UBI, que consiste num pagamento destinado a todos os cidadãos. Ou seja, bilionários e miseráveis, crianças e idosos, todos receberiam o mesmo valor fixo, simplesmente por existir.

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Enquanto o mundo discute essa ideia ambiciosa, o Congresso Nacional já aprovou uma política de renda básica universal. A lei, apresentada por Eduardo Suplicy, existe desde 2004, mas nunca foi implementada. O motivo é a sua inviabilidade prática. O projeto estabelece que o benefício pago deve ser “suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde”.

Caso o governo decidisse pagar mensalmente um salário mínimo para cada brasileiro adulto – R$ 1.045, valor que muitos julgariam insuficiente para cumprir os requisitos da lei –, o custo total superaria R$ 1,5 trilhão. Não dá, pois isso equivale ao total dos gastos federais hoje.

Isso não significa que devemos descartar a renda mínima como uma ideia inviável. A expansão de um programa como o Bolsa Família é possível. E o espírito da proposta original de George Stigler merece ser lembrado: vale a pena substituir políticas públicas menos eficientes por uma renda mínima mais ampla e robusta.

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Mesmo os liberais, céticos com relação a qualquer aumento do Estado, precisam levar a ideia a sério. Quanto menor o número de cidadãos sem condições básicas de alimentação e moradia, maior pode ser o espaço do livre mercado. Se todos tiverem uma garantia mínima de sobrevivência, não precisamos temer tanto o avanço da tecnologia e a substituição de empregos, por exemplo.

A renda mínima é possível e viável, mas para chegar a ela precisamos reinventar o Estado. Esse é o desafio que muitos políticos adiaram por anos. Mas a sociedade civil tem pressionado – a Universidade Stanford até abriu um centro de estudos dedicado exclusivamente a essa ideia.

Muitos defensores da renda mínima esperavam que o projeto continuasse travado numa longa luta, até que veio a pandemia. Conforme o novo coronavírus se espalha e impede as pessoas de trabalhar, diversos países decidiram implementar garantias de renda em larga escala, incluindo Brasil e EUA.

Essas políticas são temporárias, claro, mas o simples fato de terem sido aplicadas já aumenta a viabilidade de novos programas de renda mínima no futuro, mais abrangentes. Vinte anos depois do encontro entre Friedman e Suplicy, nunca estivemos tão próximos de ver as ideias deles se transformarem em realidade, por todo o planeta.

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