A era do robo sapiens
Adivinhe quem vai reinar num mundo dominado por máquinas superinteligentes: criador ou criatura
Eduardo Azevedo
O ano era 1940, cidade de Nova York. Dentre tantos contos que preenchiam os jornais – leitura comum nos periódicos da época -, houve um em especial que chamou a atenção dos leitores, por mostrar uma visão bastante original do futuro. Falava de um mundo em que os seres humanos teriam de compartilhar o planeta Terra com uma criatura fantástica e, ao mesmo tempo, quase tão humana quanto nós mesmos: os robôs.
O personagem principal da história era Hobbie, um andróide programado para fazer companhia a crianças, mas que, justamente por não ser uma pessoa de verdade, deixava as mães cismadas com sua presença. Do autor pouco se sabia: era russo, tinha 20 anos e se chamava Isaac Asimov.
Ano 2000, Novo México. O cientista americano Mark Tilden, 39 anos, trabalha em seu laboratório. Ao lado dele, uma placa: “Cuidado! Não pise nos robôs”. Pisar nos robôs? Que robôs? São aranhas, centopéias, grilos, baratas – todos digitais, feitos com peças de TVs quebradas, computadores antigos e outras parafernálias. “Eles nunca param de se movimentar. Quando encontram um obstáculo, seu sistema nervoso – formado por ondas de rádio aleatórias – os dirige para outra direção qualquer, totalmente impre-visível”, afirmou Tilden à Super.
Tilden se considera um roboticista desde os 3 anos, quando construiu seu primeiro robô. Para muitos do ramo, Tilden é um gênio. Basta uma pequena busca na Internet para concluir que jovens cientistas do mundo inteiro o têm como parâmetro de sucesso e utilizam constantemente seus métodos. No fundo, Tilden é apenas um dos milhões de pessoas que nunca esqueceram as idéias de Asimov. Assim como os camponeses da Idade Média foram assombrados por bruxas e dragões, não há quem, no século XX, não tenha imaginado um universo dominado por andróides.
Na vida real, a cada dia que passa a robótica fica mais próxima do cotidiano do cidadão comum. Os robôs já constroem nossos carros, separam nossa correspondência e estão entre os garotos-propaganda dos comerciais de TV, como o pingüim-robô, nova estrela da cervejaria Antarctica. Segundo a Comissão Econômica da Organização das Nações Unidas, a ONU, o aumento de demanda por robôs em 1999 foi de 20% em relação ao ano anterior e deve se elevar ainda mais em 2000.
Mas algo ainda está faltando. Onde está o astuto Data do seriado Jornada nas Estrelas ou o enigmático Hal de 2001, Uma Odisséia no Espaço? Por que poucos são como o recém- criado Sarcos, da empresa americana Sarcos Research? Atualmente, 90% dos robôs são de uso industrial e, apesar de eficientes em suas funções automáticas, estão longe de corresponder às nossas exigentes expectativas, já tão infladas pelo cinema e pela literatura.
É fato que a maioria dos futurologistas do passado erraram ao imaginar um início de século XXI abastado de andróides convivendo com as pessoas. Mas, já para as próximas décadas, os especialistas prevêem o surgimento de máquinas capazes de deixar qualquer um maravilhado – ou morto de pavor.
A dupla americana formada pela jornalista Faith DAluisio e pelo fotógrafo Peter Menzel passou os últimos dois anos vasculhando o mundo atrás das melhores pesquisas na área para tentar responder aonde podemos chegar com isso. A conclusão está no título de um livro lançado recentemente por eles: Robo Sapiens. Ao folhear as páginas recheadas de fotos magníficas (entre elas as duas que utilizamos para ilustrar esta reportagem), você fica com a impressão de que está chegando o dia em que surgirá uma nova espécie no Sistema Solar, meio humana, meio máquina, com inteligência superior a qualquer organismo biológico. “Na verdade, já estamos caminhando para isso. Somos os ciborgues de hoje e logo virão os de amanhã”, afirma Faith, referindo-se ao que podemos acrescentar ao nosso corpo, como membros artificiais, dentes falsos, aparelhos de audição.
O Robo sapiens, esse híbrido homem-máquina, não sairá andando pela rua de um dia para o outro. A ciência tem de resolver primeiro enigmas bem modestos. Os cientistas ainda não conseguiram construir uma máquina altamente inteligente capaz de jogar xadrez como o Deep Blue e, ao mesmo tempo, movimentar-se com a destreza do cachorrinho eletrônico da Sony. O Brachiator III, da Universidade de Nagóia, no Japão, por exemplo, é capaz de mover-se por cordas com a agilidade de um macaco, mas não executa movimentos simples, como abrir portas.
“O grande problema na área é integrar tudo no mesmo robô. Os meus, por exemplo, jogam muito bem futebol, mas não falam nem fazem cálculos complicados”, afirma a portuguesa Manuela Veloso, professora do Departamento de Inteligência Artificial da Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos. Manuela trabalha com times de robôs autônomos que jogam futebol comunicando-se e traçando estratégias entre si, sem a ajuda de humanos. “Com essas habilidades poderemos criar grupos de robôs para salvamentos e combate a incêndios”, diz Manuela.
Mas será que robôs espertos assim serão sempre criaturas obedientes? A palavra robô vem do tcheco e significa “aquele que é forçado a trabalhar” ou “serviçal”. Sua primeira utilização no sentido em que a conhecemos hoje aconteceu em 1920, quando o teatrólogo tcheco Karl Capek a empregou para denominar os trabalhadores artificiais de uma de suas peças futuristas. Mas talvez não seja exatamente como serviçais que os robôs se situarão no futuro. “Em 2040, já teremos máquinas com inteligência superior à humana”, afirma o cientista Hans Moravec em seu polêmico livro Robot: Mere Machine to Transcendent Mind (Robôs: De Meras Máquinas a Mentes Superiores). Para Moravec, os robôs substituirão as pessoas na Terra – algo que ele vislumbra com naturalidade. “Essas coisas são nossos descendentes. Nós as fizemos. De uma maneira ou de outra, elas são nossa semelhança. Não há diferença entre os robôs e nós. A parte biológica não é necessária”, diz Moravec.
Afirmações desse tipo, vindas de gênios da computação, têm gerado polêmica e rejeição. Gordon Cheng, pesquisador do Electrotechnical Lab de Tsukuba, no Japão, não vê sentido na repulsa à idéia de robôs inteligentes. “Parece-me pouco razoável nos colocar a favor ou contra algo que ainda nem existe”, afirmou Cheng à Super. Claro, ele pertence à corrente otimista da robótica, a mesma que aposta em um futuro com empregadas eletrônicas que não durmam, andróides que dirijam nossos carros com total segurança e robôs-companheiros que cuidam de velhinhos. “Um cachorro-robô poderia ser tão útil quanto os cães de verdade, treinados para guiar cegos, e com uma vantagem: poderia dizer ao seu dono em que rua ele está, quem está na frente dele e qual o horário certo para tomar o remédio”, diz Manuela. O futurologista Ray Kurzweil, fundador da empresa de consultoria Kurzweil Technologies, vai além. Em seu livro A Era das Máquinas Espirituais, ele expõe sua crença de que em 2099 será impossível distinguir um humano de uma máquina.
“Acho que, em matéria de robôs, qualquer coisa pode acontecer no futuro, mas é bastante difícil dizer quando”, afirma Mark Yim, pesquisador da Universidade Stanford e chefe do laboratório de Robôs Modulares da Xerox em Palo Alto, nos Estados Unidos. “Em 2040, possivelmente teremos um robô inteligente. No entanto, vai demorar bem mais para construir algo que substitua os humanos, capaz de fazer um dowloading do nosso cérebro”, diz.
O futuro da robótica é um dos temas nos quais há menos consenso entre os cientistas. Rodney Brooks, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), chegou a propor que começássemos a pensar nos direitos civis dos robôs. Seu princípio politicamente correto: se as máquinas chegarem a se tornar inteligentes, elas terão de ser respeitadas, como qualquer forma de vida. “Isso é ridículo. Robôs não são uma forma de vida. Um dos mais sofisticados robôs existentes são os mísseis de longo alcance. São autônomos, reconhecem imagens e podem lidar com diferentes situações”, diz Sebastian Thrun, roboticista da Carnegie Mellon. “Será que alguém considera um míssil uma forma de vida? Iria mudar alguma coisa se colocássemos olhos e boquinha neles?”
Essa discussão ainda vai longe. E, se o progresso da ciência mantiver esse ritmo, são boas as chances de que, um dia, os próprios robôs estejam aptos a expressar sua opinião.
Sem escolha
“A longo prazo, quero mostrar que as máquinas e os humanos podem conviver muito bem. Aliás, quer uma pessoa goste quer não, vai haver robôs à nossa volta, pois a tecnologia caminha nesse sentido. Acho que é bastante inútil as pessoas dizerem que não gostam deles, uma vez que não terão escolha.”
Manuela Veloso
Pesquisadora do Departamento de Inteligência Artificial da Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos
Escravos, sempre
“Nós não estamos indo para um mundo dominado por máquinas: já estamos em um. E não há com o que se preocupar. As máquinas são desenvolvidas de acordo com as necessidades humanas. Não devemos temer que elas tomem o controle da Terra, porque há uma regra primária da robótica que é válida tanto para os filmes quanto para a realidade: máquinas que aborrecem as pessoas são simplesmente destruídas.”
Mark Tilden
Roboticista do Los Alamos National Laboratory, dos Estados Unidos
Como nós
“A cultura japonesa se alimenta da idéia de robôs inteligentes por toda parte: nas casas, no trabalho e nos hospitais. Particularmente, construo dispositivos parecidos com pessoas.
Acredito que, justamente por ter um formato semelhante ao do corpo humano, esses robôs adquirirão naturalmente as nossas habilidades.”
Gordon Cheng
Programador de robôs do laboratório
eletrotécnico de Tsukuba, no Japão