A espada de Bolívar: como funcionam as forças armadas venezuelanas
A vizinha Venezuela tem uma doutrina completamente diferente da nossa para tudo – inclusive quando o assunto é exército.
Como tudo na Venezuela, as forças armadas também são “bolivarianas”. O nome foi mudado de Forças Armadas Nacionais para Forças Armadas Nacionais Bolivarianas com a Lei Orgânica, de 31 de julho de 2008, então sob o falecido presidente Hugo Chávez (1954-2013). Não foi (só) propaganda. Há diferenças entre o papel de um exército comum e a força bolivariana.
Além das funções básicas de defesa das fronteiras e da ordem – que costumam guiar tudo quanto é exército – as forças bolivarianas têm no seu descritivo um adendo: a “participação ativa no desenvolvimento social”.
A Constituição venezuelana de 1999 previa que fossem as forças armadas fossem apartidárias. As bolivarianas não são – na mudança de nome, também foram definidas como “humanistas e socialistas”.
Por fim, foi introduzido o termo “Novo Pensamento Militar”, que removeu as estratégias inspirada nos EUA e outros países ocidentais e colocou Cuba como inspiração em seu lugar.
A Venezuela é, definitivamente, um país altamente militarizado. Clubes militares são abertos ao público, paradas são uma visão frequente, escolas militares admitem civis – e isso é só o mais obviamente visível. Chávez veio ele próprio da carreira militar, um tenente-coronel do Exército que se lançou à política após liderar uma tentativa de golpe em 1992. Por várias vezes, ele afirmou que o regime bolivariano era uma “aliança civil-militar”.
A coluna do regime
Em 2008, com a mesma lei que mudou o nome do exército, também foi criada a Milícia Nacional Bolivariana – um grupo voluntário, que funciona como exército de reserva.
Na prática, ele é bem mais ativo do que isso. Entre as várias funções da milícia, estão “estabelecer vínculos permanentes entre a Força Armada Nacional Bolivariana e o povo venezuelano”, “Orientar, coordenar e apoiar em suas áreas de competência os conselhos comunitários a fim do cumprimento das políticas públicas” e “Receber, processar e difundir a informação e consolidação dos conselhos comunitários”.
Não é muito difícil entender como a milícia foi vista de fora como um exército de controle político. Assim anunciou o site de oposição La Patilla em 2017: “Num país sem remédio nem comida… Maduro aprova recursos para ‘garantir um fuzil para cada miliciano’”.
As milícias foram força ativa na repressão dos protestos após a tentativa de levante militar fracassada de 30 de abril de 2019. Ainda que, em caso de guerra, os mal treinados e mal armados civis, descritos por um diplomata anônimo ao New Yorker como “exército de cadeira de rodas”, não teriam realmente muita chance. Mas não estão sozinhas: é preciso mencionar também os collectivos – forças de civis armados, sem ligação direta com o Estado, que impõem também a vontade do regime.
Mas a maior parte da repressão ficou por conta da Guarda Nacional, que, com funções de defesa civil, é um dos cinco ramos das Forças Armadas Nacionais Bolivarianas, junto às já citadas milícias e as três forças regulares, Exército, Força Aérea e Marinha Bolivarianos.
Para nossos propósitos aqui, no que implica a capacidade de lutar, o que faz um exército ser “bolivariano”? Em bastante coisa, provavelmente: desde 2002, quando um primeiro golpe militar-civil fracassou em derrubar Hugo Chávez, um expurgo constante das Forças Armadas começou e continua em progresso. Crer ou parecer crer na ideologia do regime é a diferença entre exoneração ou promoção. Em outras palavras, militares são promovidos por fidelidade, não desempenho.
A mudança também foi de estratégia. As Forças Armadas venezuelanas, como as brasileiras e de quase todo o continente, eram preparadas para a guerra convencional e contrainsurgência. Isto é, de estar numa posição de vantagem ou igualdade. Mas com o realinhamento diplomático, a doutrina mudou para o que Chavez batizou de “guerra popular de resistência”. A partir de 2005, o Exército Venezuelano passou a treinar manobras de guerrilha.
As Forças Bolivarianas têm um espaço privilegiado no regime, mas não são à prova de crise. Segundo o SIPRI (Instituto Internacional para Pesquisas da Paz de Estocolmo, na sigla em original), os gastos militares da Venezuela caíram 70% entre 2013 e 2018. Quase todos os equipamentos russos listados ao longo da matéria foram adquiridos antes disso, nos tempos de Hugo. Enquanto os oficiais têm alguns privilégios, como importar comida a uma taxa de câmbio generosa (para depois vender no mercado negro, acusa o oposição), a baixa patente tem que lidar com as mesmas agruras que o venezuelano comum.
E isso tem causado o que pode se revelar um sério problema: desertores das Forças Bolivarianas atravessam a fronteira com a arquirrival Colômbia, prometendo voltar para “liberar” a Venezuela. Só entre janeiro e abril, de acordo com autoridades de imigração colombianas, foram 1.400 deles. Vários acabaram arranjando emprego em grupos radicais colombianos, os paramilitares de ultradireita, mas também, ironicamente, guerrilheiros marxistas-leninistas, como o Exército de Liberação Nacional e dissidências das FARC que não aceitaram o cessar-fogo de 2016. É um tonel de pólvora cada dia mais perto de explodir.