A máquina mais valiosa do mundo
Ela custa US$ 150 milhões. É transportada em três Boeing 747 e suas peças ocupam 40 contêineres. Pesa 180 toneladas e consome 1,3 milhão de watts de eletricidade. Serve para fazer uma coisa extremamente importante – e é a única tecnologia do planeta que a China não tem.
Texto Bruno Garattoni
Design Carlos Eduardo Hara
BBomba atômica. Computador quântico. Mísseis hipersônicos. Robôs, iPhones, carros autônomos. A China faz essas coisas, e todas as outras também: pense em algum produto ou artefato de alta tecnologia, qualquer um, e os chineses serão capazes de produzi-lo (até as vacinas de RNA mensageiro, que eram exclusividade dos Estados Unidos, agora têm uma versão sínica, criada pela empresa Walvax Biotech). Mas há algo que a China não consegue desenvolver, copiar nem comprar – embora tenha passado as últimas décadas tentando fazer isso.
É uma máquina de US$ 150 milhões, que é formada por 100 mil componentes e está entre as coisas mais sofisticadas já criadas pela humanidade. Também é uma das mais perfeitas (dentro dela há peças incrivelmente precisas, com margem de erro de no máximo 1 átomo), e está entre as mais importantes: é o cerne oculto da disputa geopolítica entre a China e os EUA, e grande motivo para os chineses quererem retomar Taiwan. É fabricada numa cidadezinha de 45 mil habitantes no interior da Holanda, em ambientes ultralimpos, por uma empresa da qual você nunca ouviu falar.
O que você acha que é? Difícil até de tentar adivinhar, não? Mas dessa máquina saíram várias coisas que você talvez tenha e use todos os dias. Ela é um sistema de litografia por ultravioleta extremo (EUV), e faz chips de computador.
As CPUs do iPhone e dos Androids topo de linha, dos Macs e dos PCs mais avançados, do PlayStation 5 e do Xbox Series X/S são todas feitas nessa máquina, que funciona como uma impressora de chips: ela usa um processo complexo e interessante para gerar luz ultravioleta extrema, cujas ondas oscilam em altíssima frequência e por isso são muito, mas muito curtas – cada uma delas mede ínfimos 13,5 nanômetros, ou seja, é 10 mil vezes menor do que a espessura de um fio de cabelo.
Essa luz é invisível a olho nu, e não pode ser gerada com lâmpadas; o único jeito é injetar 1,3 milhão de watts de eletricidade na máquina para vaporizar microgotas de chumbo líquido, desencadeando uma reação atômica que libera a luz [veja infográfico abaixo].
Embora sua criação exija grande quantidade de energia, ela é extremamente delicada. Tão delicada que todo o interior da máquina precisa ser mantido em vácuo praticamente absoluto, para evitar que moléculas de ar absorvam os raios EUV. Eles também não podem passar por várias lentes, pois elas causariam o mesmo problema. Por isso, a luz é focalizada por uma sucessão de espelhos ultrapolidos – eles são o objeto mais preciso já produzido pela humanidade, com imperfeições de no máximo 1 átomo.
Quando a luz chega à ponta da máquina, ela é projetada sobre um molde – que contém o desenho exato, em detalhes nanoscópicos, de todos os circuitos que irão formar a CPU. É uma quantidade avassaladora, num espaço muito pequeno: o chip M1 Max, da Apple, que atualmente é o mais complexo do mundo (e é feito nessa máquina), tem 57 bilhões de transistores, espremidos numa área de 4 centímetros quadrados. Só a luz ultravioleta extrema, com suas minúsculas ondas de 13 nanômetros, é precisa o suficiente para imprimir esse nível de detalhes; com qualquer outra, a impressão sairia borrada, tornando impossível fabricar o chip.
Você deve estar pensando: como assim impressão? Os chips de computador são impressos, como um texto em papel? Sim. É o único jeito de construir estruturas tão pequenas. A luz EUV é projetada sobre uma base de silício coberta com substâncias químicas, que reagem a ela e se transformam em compostos metálicos – que formam os transistores e as “estradinhas” que os conectam dentro do chip [veja mais no infográfico].
Quanto menores são os circuitos dentro de uma CPU, mais deles cabem ali dentro – e menor a distância entre cada um. Isso traz duas vantagens: o chip fica mais veloz e consome menos energia. Foi esse “encolhimento” que permitiu os ganhos de performance das CPUs nas últimas décadas [veja quadro abaixo].
O exemplo mais recente é o processador M1, que a Apple colocou nos MacBooks no final de 2020. Ele era 40% mais rápido do que os antecessores (as CPUs Intel presentes nos MacBooks anteriores), e mesmo assim gastava muito menos energia – permitindo que os laptops da Apple alcançassem inéditas 18 horas de bateria. Foi o primeiro processador a ser fabricado com precisão de 5 nanômetros, ou seja, com circuitos menores do que as outras CPUs (que naquela época ainda estavam entre 7 e 14 nanômetros). Só se tornou realidade graças à máquina de litografia extrema, na qual é feito até hoje.
Essa máquina se chama Twinscan NXE, e é produzida em Veldhoven, 120 km ao sul de Amsterdã, pela empresa holandesa ASML (Advanced Semiconductor Materials Lithography), que tem 28 mil funcionários espalhados pelo mundo – partes do sistema são feitas na Califórnia e em Connecticut, nos EUA, e em Taiwan. Mas a Twinscan em si é produzida em Veldhoven, numa planta cercada por cuidados extremos. É preciso vestir roupas de laboratório e máscara e passar por um processo de descontaminação antes de entrar nas áreas mais sensíveis, onde o ar é 10 mil vezes mais limpo (em número de partículas suspensas) que do lado de fora.
Os módulos da máquina são grandes e muito pesados – eles são levados de um lado para outro da fábrica em hovercrafts: colchões de ar sob pressão, único jeito de transportar as peças sem destruir o piso. Apesar de sua brutalidade (ela pesa 180 toneladas e tem aproximadamente o tamanho de um ônibus), a máquina também é incrivelmente sensível.
A fábrica de Veldhoven é isolada do ambiente externo por duas paredes intercaladas por uma grossa camada de ar, e sustentada por 1.500 fundações (estacas) de 23 metros, que dissipam até as menores vibrações sísmicas vindas do lado de fora. A temperatura interna precisa ser mantida a exatos 21,0 graus – qualquer desvio pode fazer com que peças metálicas se expandam ou contraiam, afetando a precisão da máquina.
A ASML foi fundada em 1984 pela multinacional holandesa Philips. Em parceria com a Sony, ela tinha acabado de inventar o Compact Disc (CD), lançado em 1982. O CD foi o primeiro produto digital de massa – e também representava um grande salto em tecnologia óptica. Por isso, a Philips estava na vanguarda da produção de chips e lentes de alta precisão.
Ela queria aproveitar isso para entrar no mercado de CPUs – e se associou a outra empresa, a holandesa ASL, que entrou com as técnicas de litografia. “A primeira década foi ruim, [a nova companhia] não fazia nenhum dinheiro, quase não conseguia pagar os salários, dependia de que a Philips continuasse investindo”, conta Sander Hoffman, porta-voz da ASML.
O jogo só começou a virar em 1991, quando a empresa lançou a PAS 5500: uma máquina de litografia bem mais compacta do que as existentes no mercado (cabia dentro de uma sala grande). Os fabricantes de chips gostaram e começaram a comprar da ASML, que ganhou um respiro financeiro – ampliado em 1995, quando ela entrou na Bolsa de Nova York e se tornou independente da Philips.
A empresa aumentou seu investimento em pesquisa e conseguiu outro hit na década de 2000, com as primeiras máquinas Twinscan: elas têm esse nome porque conseguem trabalhar com dois wafers (placas que dão origem às CPUs) ao mesmo tempo. Isso também agradou, as máquinas venderam bem, e a ASML acabou dominando o setor: hoje ela tem quase 90% do mercado de litografia de CPUs (as japonesas Canon e Nikon dividem o que sobra). E é a única a produzir máquinas de ultravioleta extremo, EUV.
Intel, Samsung e IBM usam as máquinas holandesas para fazer seus chips. Mas o cliente mais importante da ASML é outro, pouco conhecido fora da indústria: a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, ou TSMC. É ela que fabrica as CPUs da Apple e da Qualcomm (os Snapdragon presentes em 90% dos smartphones), alguns chips de vídeo da Nvidia e processadores da AMD, como os do PlayStation 5 e do Xbox Series X/S.
A TSMC é a fábrica de chips mais moderna do mundo. É a principal operadora das máquinas holandesas de litografia extrema – estima-se que, sozinha, tenha de 30 a 40 delas em funcionamento. E é, também, o foco das tensões militares entre China e EUA.
Taiwan e a luz
Em 2020, a China teve superávit comercial de US$ 535 bilhões com o resto do mundo. Também pudera: ela fabrica e exporta de tudo. Mas, naquele mesmo ano, o país comprou US$ 350 bilhões em chips do Ocidente – mais do que gastou importando petróleo. Se os chineses conseguissem fabricar as próprias CPUs, poderiam quase dobrar o seu superávit comercial. E também teriam mais controle sobre o próprio destino.
Em 2019, o então presidente dos EUA Donald Trump decidiu impor sanções econômicas à multinacional chinesa Huawei, que produz equipamentos de rede e smartphones. Naquela época, a Huawei tinha acabado de ultrapassar a Apple e se tornar a segunda maior fabricante de celulares do mundo, só atrás da Samsung. Mas, com as sanções, as empresas americanas ficaram proibidas de vender componentes para a Huawei. Entre elas a Qualcomm, cujas CPUs Snapdragon os chineses usavam em seus celulares. Resultado: a Huawei teve graves problemas, e acabou forçada a vender sua divisão de smartphones.
Isso mostra o poder que os Estados Unidos detêm. Se eles decidirem proibir a venda de chips para alguma empresa chinesa, alegando o motivo que for, ela estará praticamente morta – pois a China não consegue fabricar CPUs modernas. Não é que ela não tente. Em 2020 o país apresentou o Zhaoxin KaiXian U6780, um processador com oito núcleos que prometia o mesmo desempenho de um Intel Core i5-7400, lançado três anos antes.
Na prática, ele não chegou lá: testes independentes revelaram que o chip chinês era 30% a 70% mais lento, dependendo da tarefa. Mas o maior problema não era nem esse. Era que, embora o KaiXian tivesse sido desenhado na China, não era fabricado lá. O chip era produzido pela TSMC, em Taiwan. Ou seja: ele não representava a autossuficiência chinesa.
A China tem uma empresa equivalente da ASML. Ela se chama Shangai Micro Electronics Equipment (SMEE), foi fundada em 2002 e de lá para cá desenvolveu quatro gerações de máquinas de litografia para produção de chips. Só que essas máquinas estão muito, mas muito atrás das ocidentais.
O melhor que elas conseguem fazer, hoje, é trabalhar com precisão de 90 nanômetros – a mesma usada na produção do processador Pentium 4, que a Intel lançou em 2004. Isso mesmo: em fabricação de CPUs, a China está duas décadas atrás do Ocidente. A SMEE promete lançar este ano sua primeira máquina de 28 nanômetros – com a qual, se tudo der certo, ela conseguirá fazer chips similares aos que a Intel vendia em 2012. Mas não é garantido que vá conseguir isso: na prática, os chineses estão há quase duas décadas patinando no mesmo lugar.
“Existe toda uma cadeia de fornecimento, com milhares de elementos, que precisa ser formada”, diz Hoffman, da ASML. Um exemplo: para construir suas máquinas de litografia, a empresa holandesa usa espelhos especiais da fabricante alemã Zeiss. E eles, assim como as máquinas (e o software que elas rodam), são protegidos pelo Acordo de Wassenaar, um tratado de 1996 que foi assinado por 42 países e proíbe a exportação de armas e certas “tecnologias de uso dual” – que possam servir a fins civis e militares – para certos países, entre eles a China.
CPUs, afinal, não servem apenas para celulares e PCs; elas também controlam os sistemas de aviões, navios, mísseis etc. Também há questões de domínio comercial e até de espionagem: em tese, o país que desenha e fabrica os chips tem condições de inserir backdoors (portas secretas) impossíveis de detectar ou remover.
Os holandeses até já tentaram vender máquinas de litografia extrema para os chineses, mas sofreram pressão do governo dos EUA, que conseguiu bloquear o negócio. E os americanos querem que continue assim.
Em março de 2021, a National Security Commission on Artificial Intelligence, um grupo criado pelo Congresso dos EUA para estudar aspectos geopolíticos da inteligência artificial e de outras tecnologias, publicou um extenso relatório no qual recomenda “negar preventivamente as licenças de exportação” de equipamentos “capazes de produzir chips de 16 nanômetros ou menos, em especial equipamentos EUV”, para a China, bem como identificar possíveis “pontos de sufocamento” para retardar o desenvolvimento tecnológico chinês.
Em suma: por meios normais, os chineses dificilmente vão conseguir a tecnologia EUV nos próximos anos. Existe outro jeito: invadir Taiwan e assumir o controle sobre a TSMC, com tudo o que tem dentro dela – inclusive as máquinas de litografia extrema.
Se a China fizesse isso, ela não só se tornaria autossuficiente em chips, mas teria poder sobre o Ocidente (ditando o que a TSMC poderia exportar ou não). Os americanos sabem disso, tanto que já estão se mexendo. Recentemente, o governo dos EUA solicitou que a empresa forneça informações sobre suas tecnologias (ninguém sabe o que, exatamente), e também quer que a TSMC abra uma fábrica em solo americano. Ela já começou a ser construída, no Arizona, a um custo de US$ 12 bilhões. Enquanto isso, a China segue ameçando Taiwan.
Longe de tudo isso, na Holanda, a ASML prepara sua próxima máquina. Ela será ainda maior e mais precisa do que a atual: vai estrear a tecnologia High Numerical Aperture, com espelhos e lentes capazes de um foco mais preciso – e, graças a isso, poderá fabricar chips com precisão de 3 nanômetros (contra os 5 da atual). Ela deve chegar em 2023 e será o próximo salto tecnológico da indústria de CPUs, inclusive no preço: vai custar US$ 300 milhões.