Airbus 320: Revolução a bordo
Pilotar o A320 parece tão fácil como brincar de videogame. O mais moderno avião de passageiros do mundo tem controles eletrônicos do nariz até a cauda. Usa compostos de fibra de carbono no lugar de metais. Cada pedaço do aparelho vem de um país diferente da Europa
Cristina Medeiros, de Toulouse
Qual a diferença entre sentar-se na cabina de comando de um jato capaz de transportar até 180 passageiros e 5,5 toneladas de carga por pelo menos 4 mil quilômetros ( como de Porto Alegre e Natal ou de Manaus e Curitiba) e instala-se diante de uma tela de TV para brincar com um simples aparelho de videogame? Sob um único aspecto, a reposta é nenhuma. Pois o jato em questão, o Airbus modelo 320, ou A 320 , como é chamado, é o primeiro avião comercial do mundo com um sistema de pilotagem totalmente eletrônico. Por isso, mas não só por isso, esse birreator que deve entrar este mês em operação na Europa inaugura uma nova etapa na arte, ciência e tecnologia de voar de fato, o A320 é o pioneiro da geração das fantásticas máquinas voadoras que estarão cruzando os céus do planeta na virada do século.
Terceiro filho do consórcio multinacional Airbus Industrie, surgido em 1970, cujos A300 e A310 transportam 200 mil passageiros por dia com uma decolagem a cada 70 segundos pelo mundo afora, incluindo o Brasil, o A320 tem múltipla cidadania é um pouco francês, um pouco inglês, um pouco alemão e ainda um pouco belga e um pouco espanhol. Ou seja, trata-se de um produto típico da Europa de hoje, onde os sotaques se misturam cada vez mais e as fronteiras importam cada vez menos. Representa a maior revolução na aviação comercial na era do jato desde o aparecimento do supersônico anglo-francês Concorde, na década passada. Mas, ao contrário deste, que já foi descrito como o maior fiasco industrial do Ocidente, o A320 é o aparelho que mais encomendas já teve antes de levantar vôo.
É um troféu da tecnologia. O piloto que toma assento na cabina não lidará com o manche velho de guerra. Em seu lugar, está à sua espera um simples bastão de comando o side stick controller, muito semelhante aos controles dos jogos Atari. Localizado não à frente, mas ao lado do painel, o novo sistema dá ao piloto uma visão livre dos instrumentos. Estes, por sua vez, também não são mais aqueles das gerações anteriores foram redesenhados de forma a eliminar as dúzias de mostradores rotativos que atravancam os painéis dos jatos convencionais. O A320 levou mais longe a inovação experimentada nos A310 fabricados de 1982 em diante. Assim, apresenta apenas seis telas, onde cada informação aparece de maneira clara e em cores vivas.
Além disso, os refinados computadores que governam a aeronave da decolagem ao pouso simplificam de tal forma o trabalho do piloto que lhe permitem funcionar não mais como operador do avião, e sim como monitor do sistema de comando. Ele se decide, com base nas informações à sua frente, por determinada manobra; os computadores conferem se a ordem é adequada e, ao cumpri-la, procuram ainda aperfeiçoar a manobra. No A320, se o piloto e o co-piloto perderem a cabeça, os cérebros eletrônicos conservarão o juízo e o avião no ar. A eficiência dos sistemas de computação eliminou a figura do engenheiro de bordo, encarregado de controlar o funcionamento dos aparelhos em vôo. No comando do A320, três é demais.
Dois sistemas vigiam o equipamento da aeronave, de olho em qualquer mínima falha. E mais: registrado um defeito, os sistemas emitem automaticamente uma mensagem que alcançará o setor de manutenção da companhia aérea na escala mais próxima, para a preparação do conserto e eventual troca de peças enquanto o avião ainda está nas alturas. Ao pousar, perde-se menos tempo no reparo da avaria, o que é bom para os passageiros e melhor ainda para as contas da empresa. Dinheiro, por sinal, era o que os pessimistas menos esperavam ver entrar nos cofres do consórcio Airbus, quando este se propôs a desafiar os gigantes americanos da indústria aeronáutica Boeing e McDonnell Douglas, oferecendo ao crescente mercado internacional uma alternativa em matéria de aviões wide-body para distâncias curtas e médias, silenciosos e econômicos.
Realmente, não se acreditava que um grupo europeu fosse capaz de derrubar a hegemonia americana, inventando um sucessor para o confiável BAC One-Eleven inglês e o elegantíssimo Caravelle francês, ambos irremediavelmente obsoletos. A idéia de uma associação de vários países para conceber e fabricar um novo tipo de avião parecia absurda. Mas pesquisas competentes de mercado e intensivos investimentos em tecnologia acabaram constituindo uma família de aviões apta a conquistar um lugar nos céus. O A320 é o fecho glorioso dessa aventura.
Ele nasceu como nascem quase todos os aviões comerciais. O primeiro passo foi a formação de um grupo de projetos integrado por executivos e engenheiros da empresa fabricante. No caso da Airbus Industrie, isso significou a participação de representantes dos quatro membros do consórcio Aerospatiale (França), British Aerospace (Inglaterra), MBB (Alemanha), CASA (Espanha) e ainda da empresa belga Belairbus, que se associou ao projeto do A320. A tarefa do grupo era estabelecer as medidas vitais do novo produto: tamanho, peso, altura, envergadura e mais uma infinidade de dados técnicos. “Foram meses e meses de cálculos e debates, em que nenhum detalhe pôde ficar de fora”, explica Frédéric Ribere, diretor de produção do A320 na Aerospatiale.
Moreno, baixo, dono de um olhar perscrutador e de uma eloqüência pontuada de gessos e sorrisos, Ribere é um dos responsáveis pelo sucesso do A320. Aos 45 anos, 22 dos quais dedicados “quase integralmente” à Aerospatiale, ele viu nascer o Caravelle e o Concorde e foi um dos primeiros a apostar no projeto Airbus. A grande atração que a empreitada exerceu sobre ele provavelmente tem a ver com seu temperamento, que combina determinação e gosto pelo risco. Desde muito jovem, quando praticava vôo a vela e caça submarina, sonhava em construir carros de corrida. “A velocidade é meu fraco” confessa Ribere, que antes de entrar na Aerospatiale fez estágio numa fábrica de motores de Fórmula 1.
Para conceber um avião econômico, o grupo de projetos achou um caminho inovador capaz de reduzir em 18 por cento o peso (logo, também o consumo de combustível) da aeronave: usar materiais compostos de fibra de carbono a fim de substituir, onde fosse possível, as tradicionais estruturas metálicas. Mais leves, mais baratos e de mais fácil manutenção, os compostos de fibra de carbono (material utilizado, por exemplo, em raquetes de tênis) permitiram economizar mais de 600 mil dólares em cada aparelho. Da mesma forma, a substituição do manche pelo side stick controller, além de melhorar a vida do piloto, ajudou a emagrecer o avião.
O manche, é claro, pesa pouco. O que pesa bastante é todo o conjunto de alavancas, barras, porias e engrenagens que compõem o controle mecânico dos aviões só acionado em casos raros de pane do sistema elétrico. No A32O, o aparato mecânico foi trocado por um afiado sistema de controle eletrônico, chamado FBW, do inglês fly by wire, vôo por cabo, ligado ao side stick por mais de 30 mil fios. Foi outro passo revolucionário. A mudança significou não só um aumento da capacidade do avião equivalente a mais dois passageiros como também uma redução da espessura da fuselagem central, por onde antes passavam as barras.
Tanto melhor para os passageiros: isso permitiu alargar o corredor central do avião e assim eliminar um aborrecimento de todo começo de viagem: a irritante presença do passageiro da primeira fila que bloqueia a passagem durante a eternidade que leva para acomodar seus pertences nos bagageiros superiores. Delineado o projeto base, o calhamaço que o contém embarcou para o chamado escritório de estudos na verdade, um conglomerado de oficinas, laboratórios e centrais de computação onde o projeto inteiro foi detalhado. A seguir, o A320 foi dividido em cinco fatias principais, cada uma desenvolvida por uma das cinco empresas associadas no projeto.
A British Aerospace, por exemplo, ficou responsável pelas asas. Tecnicamente, não é a parte mais complicada. Mas é a mais importante da carcaça do aparelho. Quando um avião se prepara para pousar, muitos passageiros se espantam ao ver tudo o que sai das asas. Ficariam ainda mais surpresos se soubessem quanta coisa ainda ficou dentro. Os ingleses têm 20 por cento do consórcio Airbus. A francesa Aerospatiale, que tem 37,9 por cento (assim como a alemã MBB), desenvolveu os sistemas de computação, produziu a unidade dianteira da fuselagem, montou e testou o aeronave em vôo. Cada grupo construiu uma exata maquete do avião. Adotando o método proposto pela primeira vez já em 1889 pelo engenheiro Horatio Phillips um pioneiro da aviação inglesa, as maquetes foram testadas num túnel de vento, que reproduz as condições de vôo a grande altitude.
Nessa fase, muita coisa do projeto base foi alterada. Alongaram-se ligeiramente as asas, por exemplo, para ganhar maior autonomia de vôo, com ligeiro sacrifício do limite de velocidade. Uma infinidade de cálculos, ajustes e correções antecedeu o sinal verde para a construção do protótipo, a ser testado em vôo real. Tudo é feito com o auxílio de portentosos computadores, num processo conhecido como computeraided design, mediante o qual, um a um ou em conjunto, os componentes do avião são projetados até o último detalhe em questão de segundos. Não faz muito, na década de 60, os desenhos dos aviões eram produzidos em tamanho real, consumindo centenas de metros de papel e milhares de horas de trabalho.
“Naquela época, os computadores eram utilizados só para grandes cálculos”, lembra Jacques Herubel, 52 anos, engenheiro-chefe do grupo de estudos da Aerospatiale, sediada em Toulouse, cidade de 500 mil habitantes no Sul da Franca. Baixo e calvo os pequenos olhos azuis escondidos por óculos de grossas lentes, Herubel parece viver sempre sob grande tensão. No entanto, para os mais de cem engenheiros (a maioria com menos de 40 anos) que trabalham sob sua batuta, ele é um chefe afável e paciente, que mantém com eles uma relação paternal. Pai de quatro filhos o mais velho, com 23 anos, também engenheiro aeronáutico , Herubel é igualmente um dos pais do sistema de controle computadorizado do A320.
Formado pela escola do Concorde, cujo desastre comercial é sua maior frustração, Herubel entende de computadores como poucos na Aerospatiale e detesta calculadoras eletrônicas. “Em vez de exercitar a mente, a informática contribui para atrofiála”, queixa-se ele, entre um e outro cálculo na ponta do lápis enquanto não vê a hora de chegar o domingo dia de esfriar a cabeça e exercitar a voz cantando num coral. A maior dificuldade na construção do protótipo é o caráter artesanal da operação. Aliás, na aviação comercial não se fabrica um protótipo, mas vários, para tirar dos testes tudo o que podem dar. Assim também se passou com o A320. E seus testes revelaram um consumo de combustível 62 por cento inferior ao trirreator americano Boeing 727-200.
Antes ainda de receber o certificado oficial de vôo, o A320 começou a ser fabricado em escala na mais moderna linha de montagem do mundo, com alto nível de automatização, implantada em Toulouse. Na verdade, ele voa antes mesmo de ser montado. As diversas partes do aparelho fabricadas em lugares tão diferentes como Chester, na Inglaterra; Bremen, na Alemanha; e Sevilha, na Espanhachegam a Toulouse a bordo de enormes aviões de carga, que os técnicos espanhóis chamam de “pássaros grávidos” e os ingleses super guppies (supercomilões). Quem supervisiona as sete etapas de montagem final do avião é o diretor Jean Béué, funcionário da Aerospatiale desde 1964.
Esse engenheiro de produção de 48 anos já acompanhou a montagem de mais de mil aviões de vários tipos e conhece cada pedacinho do A320 como a palma da mão. Ele só não sabe pilotar nem é muito chegado a viagens. Passa as férias na casa de campo, onde se dedica de corpo e alma à jardinagem um hábito um tanto curioso para quem pretendia ser professor de Educação Física e chegou a integrar a equipe campeã nacional de rúgbi na França. O dinamismo com que Béué dirige os 150 engenheiros, técnicos e mecânicos da linha de montagem será ainda mais necessário a partir do próximo ano, quando a Aerospatiale aumentar as instalações para acelerar a entrega do A320. O ritmo de oito aviões prontos por mês nunca antes alcançado na Europa foi fixado para dar vazão às encomendas vindas de muitas partes do mundo. (Do Brasil não chegou nenhum pedido.) Pois, mesmo antes de sair do chão, o A320 bateu um recorde: 461 encomendas.
Para saber mais:
(SUPER número 12, ano 3)
(SUPER número 11, ano 4)
Supercagueiros do ar
(SUPER número 8, ano 5)
(SUPER número 6, ano 6)
(SUPER número 5, ano 7)
(SUPER número7, ano 8)
(SUPER número 12, ano 10)
A-320
Os números do superavião:
Comprimento: 37,6 metros
Altura: 11,8 metros
Envergadura: 33,9 metros
Altura da cabina: 2,2 metros
Largura da
cabina: 3,7 metros
Capacidade máxima de assentos: 176 passageiros
Configuração normal (duas Classes): 150 passageiros
Peso máximo na decolagem: 72 toneladas
Peso máximo no pouso: 63 toneladas
Capacidade máxima de combustível: 22,9 toneladas
Comprimento de pista para decolagem: 1 433 metros
Comprimento de pista para pouso: 1 341 metros
Velocidade máxima de cruzeiro: 1003 km/h
Velocidade de cruzeiro em longas distâncias: 966 km/h
Autonomia máxima de vôo: 5 500 quilômetros
Preço: 32 milhões de dólares
Técnica nova até nos testes
Antes de ficar livre para voar, uma aeronave deve provar que tudo nela funciona, em centenas de horas de testes? em condições muito mais difíceis do que na vida real. Antes do A32O, nos testes de aviação civil era preciso aguardar a volta do avião, estudar a fita magnética onde os resultados das provas são registrados, conferir o diário de bordo do engenheiro de navegação e só então analisar os parâmetros medidos durante o vôo. Em Toulouse, isso é história antiga. A fim de ganhar tempo? a Aerospatiale investiu cerca de 10 milhões de dólares numa técnica até então só utilizada em testes de aviões militares: o acompanhamento do vôo por telemetria.
O sistema” que transmite as mensagens em tempo real via satélite, funciona de maneira semelhante ao empregado pela NASA nos testes espaciais. Todas as informações reunidas pelos computadores de bordo são transmitidas para uma central de telemetria, onde são analisadas pelos seis engenheiros e um chefe de escuta. Em Toulouse, esse chefe é Jacques Moncourrier, ex-navegador da Armada francesa, onde serviu por mais de vinte anos. Apaixonado por engenhos mecânicos e eletrônicos desde criança, quando seu brinquedo predileto era desmontar e remontar aparelhos de rádio, Moncourrier não teve dificuldade em instalar o sistema de telemetria na Aerospatiale. Sob sua orientação, a companhia montou um equipamento de visualização gráfica de medidas que pode ser usado mesmo por engenheiros não familiarizados com essa forma de apresentação de dados. “Graças à telemetria”, orgulha-se Moncourrier, “a duração dos testes do A320 foi abreviada em três meses.”