As grandes invenções
Na escolha das maiores invenções da humanidade, cientistas deixam rigor de lado e cada um procura ser o mais original - e divertido - possível
Ivan Finotti
“Uma velha piada diz mais ou menos o seguinte: um cara está fazendo uma pesquisa nacional sobre a mais extraordinária invenção de todos os tempos. Durante suas viagens, vê-se no extremo sul dos Estados Unidos e encontra um cavalheiro distinto, balançando-se na cadeira na varanda da frente de sua casa. O pesquisador aproxima-se dele e pergunta:
– Senhor, se não se importa, eu gostaria de fazer-lhe uma pergunta para a pesquisa que estou realizando. Estou interessado em descobrir o que as pessoas consideram a maior invenção de todos os tempos. O senhor tem alguma opinião a respeito?
O velho cavalheiro coça a cabeça e então responde:
– Bem, eu diria a garrafa térmica.
Isso deixa o pesquisador perplexo.
– Senhor, das milhões de respostas que recolhi, ninguém falou da garrafa térmica. Pode ter a bondade de dizer por que ela é sua escolha?
– É fácil – diz o velho. – Veja, a garrafa térmica mantém o que é frio, frio. E o que é quente, quente. Mas como é que ela sabe?”
Contada pelo neurocientista cognitivo Marc Hauser, professor de Harvard, essa piada pode parecer não estar à altura de uma lista séria com as maiores invenções de todos os tempos. Mas tudo bem: a lista não é lá muito séria mesmo. Afinal, imagine uma centena de cientistas, pesquisadores, artistas e intelectuais tentando impressionar uns aos outros ao responder à pergunta: “Qual é a maior invenção dos últimos 2 mil anos?”. Foi exatamente o que aconteceu e é também o que faz ser tão interessante a lista coordenada pelo editor e ensaísta americano John Brockman em seu site Edge (www.edge.org).
A pesquisa, que deu origem ao livro As Maiores Invenções dos Últimos 2 Mil Anos, publicado no Brasil, traz a colaboração de gente como o grande especialista em inteligência artificial Rodney Brooks (que escolheu como a maior invenção o motor elétrico), o editor da revista Nature John Maddox (o cálculo) ou o maior evolucionista da atualidade, o inglês Richard Dawkins (o espectroscópio, aparelho que analisa a luz das estrelas e mostra do que são feitas).
Não se trata de uma ação isolada. A exemplo do que já acontece há alguns anos na indústria de música, cinema e entretenimento, listas parecem ser a nova coqueluche da ciência. Também acaba de sair por aqui o volume Idéias que Mudaram o Mundo, em que o historiador Felipe Fernández-Armesto lista 178 idéias que, adivinhe, mudaram o mundo.
As maiores invenções
No caso da maior invenção dos últimos 2 mil anos, Brockman aproveitou a chegada do novo milênio e lançou a pergunta numa lista de discussão, de modo que cada um dos convidados podia ler o que os outros escreveram. Assim, quando o primeiro deles, o biólogo Brian Goodwin, tascou a imprensa como a maior invenção, poucos se dignaram a segui-lo – apesar de, mesmo assim, a imprensa ter sido a campeã em citações, com seis votos (leia o comentário de Goodwin no quadro da página ao lado).
Logo começaram a pipocar algumas idéias diferentes, como o estribo, a música clássica ou a borracha de apagar. Um dos convidados, o jornalista Stephen Budianski, matou a charada: “Há uma distorção inerente em tudo isso, porque todos se esforçam por ser originais e surpreendentes, e assim evitam as respostas óbvias, mas provavelmente mais corretas, como o aço, o tipo móvel de Gutenberg ou o antibiótico, para citar apenas três das mais óbvias invenções que transformaram extremamente não apenas o modo como as pessoas vivem, mas como sentem a vida”.
É aí que a lista dos cientistas de Brockman fica realmente boa: as justificativas de algumas das maiores mentes do mundo para que invenções aparentemente estapafúrdias possam ser consideradas grandes descobertas.
“Minha preferidas são as de Freeman Dyson e Nicholas Humphrey”, afirmou Brockman à Super. “Por quê? Chame-as de atletismo intelectual. Ambas vão além do mesmo de sempre e dão saltos imaginativos em novos territórios, produzindo idéias deliciosas e inesperadas”, diz Brockman.
O físico Dyson escolheu o feno, enquanto o psicólogo Humphrey preferiu os óculos (confira na página 66 a justificativa desses dois e de outros oito intelectuais e cientistas que escolheram invenções curiosas).
Apesar da boa vontade do coordenador da lista, alguns convidados talvez tenham dado saltos imaginativos demais, como o pesquisador de asteróides, cometas e meteoros Duncan Steel. Para ele, a maior invenção é o calendário protestante inglês de 33 anos que nunca foi implementado. É que, afirma Steel, os ingleses não teriam colonizado a América do Norte no momento em que o fizeram se não fosse a necessidade provocada por esse calendário de estudarem a longitude além-mar. “E os Estados Unidos como são hoje não existiriam, e todos os acontecimentos científicos, tecnológicos e culturais do mundo nos últimos dois séculos seriam bastante diferentes”, finaliza, retumbante.
Além de tentarem ser cada um mais original que os outros, os cientistas mostraram outra faceta: não gostam de seguir ordens. O documentarista Karl Sabbagh, por exemplo, quebra as poucas regras da lista na maior cara-de-pau: “Como cheguei tarde, meu amigo Nicholas Humphrey faturou minha primeira idéia e, por isso, vou quebrar as regras escolhendo uma coisa inventada há mais de 2 mil anos. Na verdade também quebrarei as regras escolhendo duas invenções”. E lá vão a cadeira e a escada para o topo.
John Brockman não se importou com a rebeldia. “O charme deles é que nunca fazem o que eu peço. Quando se lida com gente assim, você cria parâmetros para garantir alguma disciplina, mas limitar algumas das maiores mentes de hoje não é algo que eu esteja tentando fazer.”
As maiores idéias
Brockman ficou tão satisfeito com o resultado de sua questão que não parou mais. A última pergunta que fez, que pode ser acompanhada em inglês no https://www.edge.org/q2005/q05_print.html, é a resposta de 120 colaboradores a “O que você acredita que seja verdade mesmo que não possa provar?”. Nesse caso, as respostas têm ficado bem mais próximas do mundo das idéias – e bem mais complexas também, versando sobre temas como a infinitude do Universo, a consciência humana ou linguagens secretas do cérebro.
Já o historiador inglês (filho de espanhol) Felipe Fernández-Armesto listou o que considera as 178 idéias mais importantes da humanidade no belo livro Idéias que Mudaram o Mundo. Segundo Fernández-Armesto, uma grande parte desses conceitos nasceu muito antes do que estamos acostumados a imaginar.
“De acordo com a tradição histórica, as idéias começam em geral com os gregos ou, na melhor das hipóteses, no Antigo Egito e Mesopotâmia. Na verdade, as idéias são pelo menos tão antigas quanto a humanidade. Algumas se originaram com nossos ancestrais hominídeos, algumas das melhores são da Idade da Pedra. O leitor terá lido mais ou menos um terço do meu livro antes de deparar com os gregos”, diz Fernández-Armesto, professor de história na Universidade de Londres.
Seu livro traz uma idéia a cada duas páginas e, além de centenas de fotos e ilustrações, dá dicas de leitura (quase sempre em inglês) sobre cada um dos temas. Outra facilidade são as conexões que o autor faz. Ao lermos, por exemplo, sobre a agricultura, há remissão para os conceitos de remodelação da natureza e de seleção natural.
Para a Super, Fernández-Armesto ranqueou as três melhores idéias de todos os tempos. “Se por melhores entendermos as mais influentes – aquelas que significaram mais para mais pessoas por mais tempo –, elas devem estar entre as mais antigas. Quanto mais tempo elas estiverem por aqui, mais mudaram o mundo. Uma é a idéia de símbolos, de que uma coisa pode ser representada por outra. Ela está na origem da complexidade da linguagem humana, da arte e da escrita. A idéia da ilusão, de que há mais no mundo do que é visível, está na origem da ciência e também na da religião. E a idéia de Deus, que tem sido talvez a mais poderosa força para o bem e para o mal em todo o mundo.
As esperadas
Ou “as invenções obviamente importantes”
QUAL? – Imprensa
QUEM? – Brian C. Goodwin, biólogo e cientista
POR QUÊ? – “Acelerou de forma sensacional a separação entre a cultura humana e a natureza. Com ela, pudemos acelerar o acúmulo sistemático de conhecimento para controlar a natureza.”
QUAL? – Tecnologia das comunicações
QUEM? – Tom Standage, jornalista de ciência da revista inglesa The Economist
POR QUÊ? – “Há 150 anos atrás, era impossível comunicarmo-nos em tempo real. Hoje vemos TV e usamos telefone e internet sem pensar. Por isso é fácil subestimar o significado das telecomunicações.”
QUAL? – Sistema de contagem indo-arábico
QUEM? – John D. Barrow, professor de ciências matemáticas da Universidade de Cambridge, Inglaterra
POR QUÊ? – “O sistema de contagem, com conteúdo da informação da posição (de modo que 111 significa 100 mais 10 mais 1), é hoje universal e está na base de toda ciência quantitativa, econômica e matemática.”
QUAL? – Encanamento e esgotos
QUEM? – Carl Zimmer, escritor e colaborador de revistas como Natural History e National Geographic
POR QUÊ? – “Tenho dificuldade para me lembrar de outra invenção que tenha detido tanta doença e morte. Sem o serviço de águas, as condições de amontoamento seriam insuportáveis. Basta ir a uma cidade pobre, sem água limpa, para ver isso.”
QUAL? – Internet
QUEM? – Roger C. Schank, diretor do Instituto de Ensino das Ciências da Northwestern University
POR QUÊ? – “É de longe a mais importante invenção. Com os cursos on line, as universidades ficarão obsoletas. Centros comerciais ainda não se foram, mas irão. Jornais? Morrerão. Não sei se seremos mais felizes, mas seremos mais bem informados.”
QUAL? – Caravela
QUEM? – Alun Anderson, editor da revista inglesa New Scientist
POR QUÊ? – “É o equivalente medieval da cápsula espacial Apollo. Com suas velas triangulares, podia velejar num ângulo oposto ao vento, em vez de ser soprada para a frente. Abriu caminho para a Era dos Descobrimentos e para o comércio internacional.”
QUAL? – Telescópio
QUEM? – Brian Greene, professor de física e matemática na Universidade Colúmbia
POR QUÊ? – “A invenção do telescópio e seu posterior aperfeiçoamento por Galileu revelaram de forma conclusiva que há muito mais coisas no Universo do que o que está à disposição de nossos sentidos.”
QUAL? – Relógio
QUEM? – W. Daniel Hillis, físico e cientista computacional
POR QUÊ? – “O relógio foi a corporificação da objetividade que abriu o caminho para o rigor da ciência objetiva. Transformou o tempo de uma experiência pessoal numa realidade independente de percepção.”
QUAL? – Arado
QUEM? – Colin Tudge, pesquisador do Centro de Filosofia da London School of Economics
POR QUÊ? – “Os humanos já praticavam alguma agricultura há 30 mil anos, mas só ao revolverem o solo produziram grandes colheitas. O arado possibilitou-nos quebrar a lei ecológica de que grandes animais são raros. Já somos 6 bilhões.”
QUAL? – Cesta
QUEM? – Jeremy Cherfas, biólogo e locutor da rádio BBC
POR QUÊ? – “Sem alguma coisa onde pôr o que se coleta, não se pode ter uma sociedade coletora com qualquer grau de complexidade, nem casa e lareira, nem divisão de trabalho, nem humanidade.”
As inesperadas
Ou “as invenções queprecisam de explicação”
QUAL? – Estribo
QUEM? – Peter Tallack, jornalista científico
POR QUÊ? – “Assim que seu uso se generalizou, os soldados montados podiam brandir a lança e os arqueiros atirar da sela. Exércitos de cavaleiros armados passaram a cruzar o globo, travando batalhas que iriam alterar o destino das nações.”
QUAL? – Aspirina
QUEM? – Marc D. Hauser, neurocientista cognitivo, professor de psicologia em Harvard, Estados Unidos
POR QUÊ? – “Inventada em 1853 na França, que pilulazinha útil para reduzir dores de cabeça, do corpo e febres! Entre os masai, as dores de cabeça são tratadas com um bolo de fezes de cabra na cabeça. Prefiro a aspirina.”
QUAL? – Borracha de apagar
QUEM? – Douglas Rushkoff, professor de cultura virtual na Universidade de Nova York
POR QUÊ? – “A maior invenção é a borracha, assim como outros instrumentos que nos permitem voltar e corrigir nossos erros. Sem essa capacidade, não teríamos modelos nem meios de desenvolver governo, cultura ou ética.”
QUAL? – Música clássica
QUEM? – Howard Gardner, professor de educação da Universidade de Harvard, Estados Unidos
POR QUÊ? – “As composições musicais representam um incrível feito cerebral. A maioria das invenções pode ser usada para o bem ou para o mal. A música proporcionou mais prazer a mais indivíduos que qualquer outro artefato humano.”
QUAL? – Destilação
QUEM? – Ron Cooper, pintor americano
POR QUÊ? – “Surpreende-me que ninguém tenha citado a invenção alquímica de transformação. Além de a alquimia ser a base da ciência e da indústria, a transformação de seres humanos causada pela ingestão de destilados me interessa muito.”
QUAL? – Óculos
QUEM? – Nicholas Humphrey, psicólogo teórico da London School of Economics
POR QUÊ? – “A mais importante invenção foram os óculos. Eles dobraram efetivamente a vida ativa de todos os que lêem ou fazem trabalhos de precisão. E impediram o mundo de ser governado por pessoas com menos de 40 anos.”
QUAL? – Feno
QUEM? – Freeman Dyson, professor de física no Instituto de Estudo Avançado de Princeton
POR QUÊ? – “No mundo clássico não havia feno. A civilização só existia em climas quentes, onde cavalos podiam pastar no inverno. Até que o feno foi ceifado e armazenado e a civilização atravessou os Alpes, originando Viena, Paris e Londres.”
QUAL? – Cadeiras e escadas
QUEM? – Karl Sabbagh, escritor e produtor de documentários científicos para a BBC
POR QUÊ? – “São um salto imaginativo, compreendendo o valor para a anatomia humana de uma plataforma idealizada no espaço. Uma conseqüência das escadas é a maior densidade de ocupação.”
QUAL? – Jogo de tabuleiro
QUEM? – John Henry Holland, professor de ciência computacional e psicologia na Universidade de Michigan
POR QUÊ? – “Ofereceu um guia metafórico para a política e para a guerra tanto no Oriente (go) quanto no Ocidente (xadrez). Nos últimos séculos, inspirou modelos matemáticos e simulações de tudo, da genética à interacão social.”
QUAL? – Espelho
QUEM? – Tor Norretranders, escritor
POR QUÊ? – “A mais influente invenção foi o espelho. Mostrou a cada um como ele parece a outras pessoas no planeta. Sua instalação na vida diária, no Renascimento, coincidiu com o advento de fenômenos como modos à mesa e estilos de roupa.”
Para saber mais
Na livraria:
As Maiores Invenções dos Últimos 2 Mil Anos – John Brockman (org.), Objetiva, 2001
Idéias que Mudaram o Mundo – Felipe Fernández-Armesto, Arx, 2004
Na internet:
https://www.edge.org – Site de reflexões sobre os limites da ciência e da arte