Relâmpago: Revista em casa a partir de 9,90

Internet via satélite: a maior arma geopolítica já inventada

A rede Starlink poderá levar internet sem censura a todos os pontos do planeta. Ou se tornar um instrumento poderoso para manipular o conteúdo online. Entenda por quê.

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
14 abr 2022, 12h59
F

“Falei com o @elonmusk. Sou grato a ele por apoiar a Ucrânia com palavras e atos. Na próxima semana vamos receber outro lote de sistemas Starlink para cidades destruídas”, tuitou o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, logo após a chegada do primeiro carregamento de antenas e receptores desse serviço – que foi criado pela SpaceX, uma das empresas de Musk, e permite acessar a internet via satélite.

Ele doou os terminais para ficar bem com a Ucrânia (o país produz foguetes cuja tecnologia a SpaceX talvez possa aproveitar, e Zelensky disse que discutiu “possíveis projetos espaciais” com Musk para “depois da guerra”). Mas essa não é a única, e talvez nem a principal, razão.

Como se conecta diretamente a uma rede de satélites em órbita (atualmente são 1.800, mas a SpaceX já obteve permissão para lançar 12 mil), o sistema Starlink é muito difícil – e, ao mesmo tempo, bem simples – de controlar. Esse aparente paradoxo o torna uma arma geopolítica sem igual na história do mundo e das guerras. Porque elas são ganhas com tiros e bombas, mas também com uma ferramenta mais insidiosa: a propaganda ideológica.

Era assim em 1895, quando mal existia luz elétrica – e o general francês Louis Hubert Lyautey propôs conquistar “corações e mentes” da população da Indochina para impedir uma tentativa de insurreição. Era assim em 1950, quando os EUA criaram a Radio Free Europe, uma estação na Alemanha Ocidental que transmitia mensagens capitalistas para o bloco comunista. E é assim hoje. A tecnologia muda, mas o princípio se mantém. Se você conseguir convencer as pessoas, elas ficarão ao seu lado – e darão as costas aos seus inimigos.

É por essa razão que a China nunca permitiu o acesso a certos sites, como YouTube, Instagram e Twitter. O governo viu que não teria controle sobre eles (pois pertencem a empresas americanas) e simplesmente os baniu. Também é por isso que nações como Arábia Saudita, Turquia, Índia e Irã bloqueiam aplicativos e sites. Segundo a organização americana Freedom House, 67% dos usuários da internet vivem em países com algum tipo de censura online.

Continua após a publicidade

Até a Guerra da Ucrânia, isso costumava ser associado a países fechados e/ou autoritários, não às democracias ocidentais. Mas uma semana após a invasão do país, a União Europeia anunciou o banimento do Russia Today (RT) e do Sputnik, dois veículos russos (com sites e canais de TV e do YouTube em inglês, francês, alemão e espanhol).

O motivo alegado foi “a manipulação sistemática de informações pelo Kremlin”. Nos últimos meses, a Rússia endureceu o controle sobre a mídia local – o parlamento aprovou uma lei que permite prender ou multar jornalistas e veículos de imprensa. Já o RT e o Sputnik são mantidos financeiramente pelo Estado, e apresentam as notícias do ponto de vista do Kremlin. 

Mas a censura foi uma medida inédita no Ocidente, que nunca havia banido a imprensa de um país. O YouTube deletou todos os vídeos do RT – e a DirecTV rescindiu o contrato do canal a cabo RT America, que acabou. A Rússia respondeu bloqueando o Facebook e o Instagram.

Três dias depois, Elon Musk escreveu um tuíte revelador: “Alguns governos, não o da Ucrânia, disseram para a Starlink bloquear fontes de notícias russas. Nós não iremos fazer isso, a não ser sob a mira de uma arma. Desculpem por ser um absolutista da liberdade de expressão.” A Starlink pretende levar internet sem censura a todos os pontos do planeta. Ao fazer isso, ela pode transformar as comunicações no mundo – e acabar com o controle estatal sobre a informação. Por dois motivos.

Continua após a publicidade

O primeiro é que, ao contrário de outros sistemas de internet via satélite (que existem há décadas, são lentos e se destinam apenas a uso rural), o Starlink usa satélites menores, posicionados numa órbita mais baixa. Isso torna o sistema mais barato e rápido. A mensalidade custa US$ 99 (caro para o Brasil, mas dentro da realidade dos EUA), e a velocidade fica entre 100 e 200 Mbps.

Já é algo bem razoável. E a conexão tende a melhorar, e o preço cair, conforme a rede de satélites e o número de assinantes crescerem. Ou seja: a Starlink é a primeira internet via satélite com potencial para virar produto de massa, competindo com a internet cabeada.

O segundo motivo está na própria natureza da Starlink. Hoje a internet é formada por uma malha de cabos, que chegam aos países por meio de “nós”, os chamados backbones. Quando um governo quer censurar (ou grampear) a internet do seu país, ele simplesmente vai até esses pontos – e instala computadores que filtram o tráfego. Mas com a rede via satélite, não dá para fazer isso, pois os dados vêm direto “do céu”.

O governo pode tentar embaralhar o sinal, emitindo interferência de propósito (como é feito, em zonas de guerra, para inibir o funcionamento do GPS), mas isso só cobre pequenas áreas – seria muito difícil, ou impossível, bloquear uma cidade ou um país inteiro.

Continua após a publicidade

Um ditador pode banir a venda de receptores Starlink em seu país, mas (como acontece com muitos produtos proibidos) as pessoas poderiam consegui-los por contrabando. As antenas não chamam muito a atenção, são parecidas com as miniparabólicas de TV por assinatura – e também podem, como sugerido pelo próprio Elon Musk no caso da Ucrânia, ser camufladas. Em suma: tecnologicamente, a internet via satélite é difícil de controlar. E tudo o que Musk não quer é controle estatal – seja do Estado que for.

Ao mesmo tempo, ela é juridicamente vulnerável. Porque concentra toda a eventual pressão sobre um único alvo: a própria Starlink. As leis americanas pós- 11 de Setembro tornaram relativamente fácil que o governo dos EUA obtenha mandados judiciais, inclusive sob sigilo, para grampear o tráfego da internet. E o caso dos canais russos mostrou que situações de tensão geopolítica podem acabar levando ao bloqueio de conteúdo.   

A Starlink pode receber ordens judiciais ou sofrer pressões da Casa Branca. Por isso, a exemplo do que aconteceu com os sistemas de posicionamento, em que a Europa, a Rússia e a China criaram alternativas ao GPS (as redes Galileo, Glonass e BeiDou), outros países querem montar suas próprias redes de internet: a China planeja colocar em órbita a GalaxySpace, com 1.000 satélites, e o Reino Unido tem a OneWeb, que terá 648 – e é financiada pelo governo inglês.

A rede chinesa ainda não começou a ser montada. A inglesa já, mas bateu num obstáculo: a agência espacial russa, que havia sido contratada para lançar os satélites, diz que não vai mais fazer isso – como resposta às sanções econômicas que o país vem sofrendo. Nem mesmo os satélites de internet, que orbitam a 1.100 km de altitude, estão imunes à política na Terra.

Compartilhe essa matéria via:
Publicidade


Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 5,99/mês
DIA DAS MÃES

Revista em Casa + Digital Completo

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
A partir de 10,99/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a R$ 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.