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Jornada de um Ponto de Luz

Quando um telescópio localiza um astro distante, é como se recebesse uma mensagem do passado. A viagem da luz de um quasar, que durou a eternidade de 12 bilhões de anos, ajuda a entender por quê.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h37 - Publicado em 31 Maio 1990, 22h00
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  • Govert Schilling

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    Noite de primavera nas Ilhas Canárias, Oceano Atlântico. Neste arquipélago paradisíaco pertencente à Espanha, longe das luzes e da poluição das cidades, os europeus instalaram há quatro anos um conjunto de potentes telescópios destinados a observar distantes objetos celestes. Ali, no topo das montanhas, um astrônomo usa o maior dos instrumentos – o telescópio anglo-holandês William Herschel – para fotografar um distante quasar. Quando o espectrógrafo, aparelho que mede a intensidade da luz, é ajustado ao foco, o computador aponta o telescópio para o astro. Nesse momento, a luz do quasar passa pelo telescópio e imediatamente é registrada pelo detector eletrônico. Para quem está acostumado a observar o céu, nada de mais – apenas a rotina de outra noite de trabalho. Mas o que significa capturar a luz de um objeto celeste que, segundo se calcula, está nos confins do Universo conhecido? Que aconteceu com ela durante essa colossal viagem? Ao chegar às Canárias, uma região perto do equador deste terceiro planeta do sistema solar, a luz do quasar viajou inimagináveis 12 bilhões de anos-luz. Apesar do nome, essa unidade – ano-luz – mede comprimento, como se sabe. Ela toma como referência o tempo que a luz gasta para percorrer determinada distância. Em 1 segundo, um raio de luz percorre aproximadamente 300 mil quilômetros, o equivalente a sete voltas em torno da Terra; em R minutos. viaja do Sol até aqui. Em um ano, atravessa perto de 10 trilhões de quilômetros, multo mais do que o raio do sistema solar. Por isso, sabe-se que as débeis partículas de luz registradas pelo telescópio europeu das Canárias começaram a sua jornada num momento do passado quando a Terra nem sequer existia.

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    Corpos celestes parecidos com as estrelas, os quasares (do inglês quasistellar radio source, fonte de rádio quase estelar) são tidos como os mais distantes conhecidos. Acredita-se que sejam os núcleos explosivos de galáxias ainda jovens. Quanto mais distante estiver uma galaxia observada, mais criança ela será e muito provavelmente terá a imagem de um quasar (veja quadro). Voltando ao astrônomo das Canárias – ou melhor, ao instante em que foi dada a partida para que um conjunto de fótons, as partículas de energia que formam um raio de luz, iniciasse a viagem que seria documentada por seu telescópio. Desde aquele momento imemorial passaram-se, pois, 12 bilhões de anos. Mas, na viagem, esse tempo representou pouquíssima coisa.

    Transcorridos 10 mil anos da partida, os fótons ainda não tinham ultrapassado as fronteiras da galáxia onde o quasar havia nascido. Só então começou o seu passeio pelo frio e vasto espaço intergaláctico. Ali, espalhados como espuma de sabão, distribuem-se aglomerados e superaglomerados de bilhões de galáxias ai redor de grandes vazios. Em determinada época, uma ilha estava se formando no espaço. Era a nossa galáxia, a Via Láctea, um disco com dois braços em espiral, composto de gás, poeira e estrelas. Seis bilhões de anos depois, o raio de luz do quasar tinha percorrido apenas a metade da distância até o telescópio terrestre. Mas naquilo que hoje é o sistema solar não havia ainda nenhum sinal da Terra ou mesmo do Sol. Somente 1 bilhão de anos depois – ou seja, 7 bilhões de anos após ser emitida a luz do quasar – uma pequena nuvem de gás e poeira interestelar na Via Láctea foi aos poucos se contraindo, até formar o Sol e os nove planetas ao seu redor.

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    Naquela época, os fótons de luz passavam por um superaglomerado de galáxias. Quinhentos milhões de anos depois, à medida que eles viajavam pela escuridão do espaço, os primeiros organismos unicelulares começavam a se desenvolver na Terra. Era o início da evolução graças à qual apareceria, muito tempo depois, um animal mamífero inteligente e curioso. A medida que evoluíam os organismos multicelulares terrestres, o raio de luz continuava o seu caminho, percorrendo sem descanso 10 trilhões de quilômetros por ano. Ele já estava passando por estes lados do Universo: há 350 milhões de anos, estava na altura de Coma, uma das maiores concentrações de galáxias nas proximidades da Via Láctea. Cinquenta milhões de anos depois estava ainda mais perto do que o aglomerado de Perseus, uma fonte poderosa de emissão de raios X. Na Terra, naquela época, apareciam os primeiros anfíbios. Numerosos peixes habitavam os oceanos e as samambaias cobriam os continentes.

    Para o astrônomo do século XX, o planeta seria então irreconhecível. Não havia semelhança alguma entre os oceanos e os continentes atuais, de um lado, e a distribuição de terras e mares existente há alguns milhões de anos. Enquanto os fótons passavam pelo aglomerado de Virgem, há 200 milhões de anos, a Terra possuía apenas um imenso supercontinente, a Pangea, O clima era ameno, a água dos oceanos mais temperada e a paisagem compunha-se de plantas sem flores. A essa altura, a luz já percorrera 11.8 bilhões de anos – ou seja. 98.5 por cento da distância até a Terra. A viagem estava quase no fim mas ainda não havia nem sinal de mamíferos no planeta. Era então a era Mesozóica, quando reinavam os dinossauros.

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    O domínio desses grandes animais pode ter chegado ao fim justamente por causa de algo que, como os fótons de luz, veio do espaço. Há 65 milhões de anos, um asteróide ou um cometa teria se chocado com a Terra e provocado uma enorme cratera da qual até hoje não se tem o menor vestígio. Com o impacto, uma espessa nuvem de poeira teria se espalhado pela atmosfera, bloqueando a passagem da luz solar e provocando uma espécie de efeito estufa de grandes proporções. Se isso tudo aconteceu realmente, quebraram-se as cadeias alimentares e, em consequência, muitas espécies desapareceram. Sobraram outras, entre as quais os mamíferos, que estavam começando a se desenvolver. Enquanto essas formidáveis transformações ocorriam, o raio de luz vindo do quasar havia percorrido quase 99,5 por cento da distância e estava em pleno aglomerado de Virgem.

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    Mais adiante na viagem, alcançou o chamado Grupo Local, o aglomerado de galáxias onde se encontra a Via Láctea e suas vizinhas, a nebulosa de Andrômeda e as Nuvens de Magalhães. Enquanto passava a cerca de 2 milhões de anos-luz do sistema solar, isto é, já mais próximo do que Andrômeda, crescia na Terra a família de mamíferos. Já existiam grandes mamutes nas estepes geladas; antepassados do homem moderno, da espécie que viria a ser chamada Homo habilis, percorriam as extensas florestas tropicais. O sucessor dessa espécie, o Homo erectus, apareceu cerca de 500 milhões de anos depois, quando os fótons de luz passavam pelas Nuvens de Magalhães, galáxias tão próximas da Via Láctea que podem ser avistadas da Terra a olho nu. Alguns milhões de anos antes, haviam começado aqui as glaciações que remodelariam continentes e oceanos.

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    Ao passar a certa distância do centro da Via Láctea, o raio de fótons estava a meros 25 mil anos-luz do planeta. Para algo que já havia percorrido quase 12 bilhões de anos-luz, faltava uma insignificância para chegar ao seu destino – destino é força de expressão, porque a luz emitida pelo quasar não se dirige deliberadamente a parte alguma. Mesmo tão perto, o raio ainda teve que atravessar grupos de estrelas e nuvens de gás. Ao término do último período glacial, há 10 mil anos, o homem anatomicamente moderno já começava a mudar seu sistema de vida, promovendo aquela que é considerada a maior revolução na história da espécie. O cultivo de plantas e a criação de animais, antes considerados uma suplementação dos recursos obtidos mediante a coleta, a pesca e a caça, tornavam-se permanentes e organizados nas comunidades. O homem começava a olhar o céu ~\ espera da melhor hora para o plantio e dava tratos à imaginação para matar a charada do que seria a infinidade de pontinhos de luz que avistava. Tinha nascido a Astronomia.

    Muitas civilizações floresceram e desapareceram desde então. Guerras foram vencidas e perdidas, mas persistiram os problemas que as criaram. Descobriu-se a escrita e se fizeram os primeiros registros de observações astronômicas. Enquanto isso, o raio de luz se aproximava mais e mais. Há cerca de 2500 anos, com o apogeu da cultura grega, foram dados os primeiros passos na direção do que se convencionou chamar ciência moderna. Mil anos depois, o raio de luz ainda passava pela nebulosa de Orion, na Via Láctea. Mais um milhar de anos e estava nas Plêiades, grupo de sete estrelas visíveis a olho nu na constelação de Touro, a 400 anos-luz da Terra. Era chegado o momento de o cientista italiano Galileu Galilei (1564-1642) apontar um telescópio para o céu e provar que a Terra não era o centro do Universo.

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    Nos séculos seguintes. astrônomos ilustres como William Herschel, Charles Messier e Clyde Tombaugh descobriram planetas, nebulosas e aglomerados de estrelas. Os telescópios evoluíram: ficaram maiores e passaram a ter espelhos em vez de lentes, para focalizar melhor a luz dos astros mais distantes e fracos. Em 1948 a luz do quasar passou por Capella, uma das estrelas mais luminosas vistas no céu – 150 vezes mais brilhante que o próprio Sol. Naquele ano, o espelho de 5 metros do Monte Palomar, na Califórnia, então um dos maiores do mundo, começava a vasculhar o Cosmo. Em 1963, quando o astrônomo holandês Maarten Schimidt afirmava pela primeira vez que os quasares, recém -descobertos, emitiam ondas ondas de rádio amis intensas do que qualquer galáxia, o raio de luz passava pela estrada veja, uma das mais conhecidas do hemisfério sul. A viagem estava quase terminada

    Durante o verão de 1985, foram dados os retoques finais na construção do observatório europeu nas Canárias e a luz do quasar deixou para trás a estrela Alfa, da constelação do Centauro, a mais próxima do Sol. Durante os meses que os engenheiros passaram ajustando o equipamento em Las Palmas, a capital do arquipélago, o raio de luz do quasar engoliu mais 26 bilhões de quilômetros. Em 1987, o telescópio Herschel finalmente estava pronto para capturá-lo. Era madrugada quando o astrônomo começou a se preparar para a observação do quasar. Ao meio-dia, já tinha conferido todos os detalhes da busca. Mas a luz do quasar ainda estava viajando: no meio da tarde, ultrapassava uma nave, viajando além da órbita de Plutão. Era a Pioneer 10, uma sonda automática terrestre lançada em 1972. A Pioneer 10 rumava para fora do sistema solar à velocidade de 27 quilômetros por segundo. Cobrindo 300 mil quilômetros em 1 segundo, ou seja 11 mil vezes mais depressa, os fótons fizeram a mesma jornada da Pioneer 10 em algumas horas apenas.

    Assim, no início da noite, a luz cruzara a órbita de Plutão. Às 21h15 passou por Urano e às 22h30 por Saturno. Quarenta e cinco minutos depois, deixava Júpiter para trás. Naquele momento, o astrônomo ajustou o espectrógrafo ao foco do telescópio. Depois de tanto trabalho, acho que tinha direito a um cafezinho e deixou o observatório para uma pausa de 5 minutos. Nesse intervalo, a luz do quasar chegou a 96 milhões de quilômetros mais perto. Quando o astrônomo voltou à atividade, ele já havia passado pela lua e começava a alcançar o observatório. O homem moveu o instrumento e ajustou o foco: a luz entrou no telescópio. Passados 12 bilhões de anos, os sinais da existência do quasar eram registrados pelo astrônomo. Mais uma observação, desta vez de um astro distante, numa rotina familiar, talvez tenha pensado o astrônomo enquanto novamente ajustava o telescópio. Mas o que lhe parecia um trabalho trivial era o apogeu de uma viagem incomparável, entre milhões de aglomerados e superaglomerados de galáxias, vazios, nebulosas, estrelas duplas e solitárias. Sem se dar conta, o astrônomo tinha efetivamente recebido uma mensagem. Uma mensagem de energia inacreditável e de um lugar tão distante que nunca mais seria visto novamente do mesmo modo.

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    Um brilhante enigma

    Há muito que descobrir sobre os quasares – afinal eles começaram a ser observados há menos de trinta anos e de lá para cá a Astronomia evoluiu muito. Sabe-se que esses astros possuem uma extraordinária luminosidade e que se não fosse assim não poderiam ser vistos onde se encontram. Há quasares tão brilhantes quanto mil supernovas explodindo juntas. Apesar disso, quando observados pelos mais poderosos telescópios ópticos, não passam de pontinhos de luz com a aparência de estrelas. Restam os radiotelescópios, mais sensíveis e capazes de discriminar a estrutura e a natureza dos quasares mesmo a bilhões de anos luz da Terra. Durante duas semanas, no último mês de março, a astrofísica brasileira de origem argentina Zulema Abraham, da Universidade de São Paulo, esteve em Atibaia, perto da capital, onde funciona o único radioobservatório brasileiro, para observar o quasar 3C 273, na constelação de Virgem.

    A mesma observação foi feita em mais uma dezena de lugares do planeta. Os aparelhos, que estavam conectados eletronicamente entre si, funcionaram como se fossem um único, gigantesco radiotelescópio.
    Com os resultados obtidos, os cientistas pretendem montar uma imagem dos jatos de matéria que partem do núcleo do quasar e avançam milhões de quilômetros de distância. “Praticamente, a única explicação para essa extraordinária fonte de energia seria a existência de um buraco negro no núcleo do quasar”, acredita a astrofísica. Alguns astrônomos supõem que, à medida que os quasares se apagam, as galáxias nas quais se originaram amadurecem e herdam de seus núcleos o buraco negro, corpo em que a força gravitacional é tamanha que aprisiona até a luz. Segundo um desses astrônomos, o inglês Donald Lynden-Bell, da universidade de Cambridge, um dos mais respeitados estudiosos da estrutura do Cosmo, “os núcleos das galáxias são os cemitérios dos quasares que vemos brilhando na aurora do Universo”.

    M.S.J.F

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    Para saber mais

    Um pouco mais de azul, Hubert Reeves, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1986 – A evolução da Física, Albert Einstein e Leopold Infeld, Rio, 1983

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