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Milagre ou truque?

Não perca. Assista ao vivo, no dia 12 de junho, ao maior espetáculo científico desde o pouso do homem na Lua. (Ou não)

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 9 nov 2014, 22h00

Leandro Beguocci e Denis Russo Burgierman

Além de apresentações que vão da capoeira à dança gaúcha, e de um encontro de Jennifer Lopez, Claudia Leitte e do rapper Pitbull, a cerimônia de abertura da Copa do Brasil, no dia 12 de junho, promete incluir uma revolução científica. Segundo o médico, pesquisador e palmeirense Miguel Nicolelis, o Itaquerão será sede do maior espetáculo da história da ciência humana desde que Neil Armstrong firmou sua bota branca no solo poeirento do Mar da Tranquilidade, na Lua, em 20 de julho de 1969.

Acontecerá em algum momento da cerimônia, não se sabe se no começo ou no final. Um paraplégico relativamente jovem entrará em campo numa cadeira de rodas e, como se estivesse atendendo a um comando bíblico (Mateus 9:1-8, Marcos 2:1-12, Lucas 5:17-26), levantará e andará.

Mas não vai ficar só na repetição do milagre de Cristo – a demonstração tem que ir além disso. O dito paciente irá caminhar e chutar uma bola de futebol Brazuca.

Ainda não está claro se o espetáculo neuro-futebolístico será o marco inicial de uma nova era da humanidade ou se é apenas um golpe publicitário barato (na verdade, não tão barato assim). Mas certamente será um momento simbólico, que será lembrado por muitos e muitos anos, por um motivo ou por outro. A história desse milagre (ou não-milagre) começou cinco anos atrás, em 2009, quando Nicolelis teve uma ideia.

De volta a 2009

Eram tempos de otimismo no Brasil. Naquele ano, a revista inglesa The Economist estampou na capa um Cristo Redentor decolando como um foguete. O presidente americano Barack Obama, quando se encontrava com Lula, saudava-o dizendo “that is my man”, com inveja de seus índices de popularidade só comparáveis aos de certos reis de contos de fadas.

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De carona na prosperidade, bilionários brasileiros que vendiam matéria-prima para abastecer o crescimento chinês, até então intocado pela crise global, iam subindo nas listas dos mais ricos do mundo. Eike Batista naquele ano subiu de 142º para 61º lugar, empurrado apenas por apresentações de PowerPoint, e avisou que queria mesmo era ser o primeiro.

Para completar a alegria, dois anos antes, em 2007, o Brasil havia ganho o direito de organizar a Copa de 2014, o que encheria o País de obras e, portanto, de mais prosperidade.

As coisas iam bem para Nicolelis também. Reconhecido no mundo todo por suas pesquisas nos Estados Unidos em busca de interfaces entre o cérebro humano e as máquinas, ele vivia sendo lembrado em listas do tipo “os 20 cientistas que vão mudar o mundo”. A SUPER mesmo cravou em 2006 que “este palmeirense vai ganhar o Nobel” (nossa reportagem acompanhou-o ao Parque Antártica e observou-o gritar “Pooooorcoooooo” do primeiro ao último minuto da goleada de 4×2 sobre o Paraná Clube).

No mesmo ano da reportagem da SUPER, Nicolelis havia convencido a fundação que cuidava da fortuna do falecido banqueiro Edmond Safra a fazer aquela que foi possivelmente a maior doação privada para uma instituição científica na história do Brasil, de dezenas de milhões de dólares. Nascia o Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra, encravado na pobreza do Rio Grande do Norte. O plano era ao mesmo tempo gerar pesquisa de primeira grandeza, para inserir o instituto na constelação dos mais importantes do mundo, e inspirar crianças Brasil afora a escolher o caminho da ciência.

Para completar a lista incrível de feitos, em 2008, Nicolelis havia deixado o mundo de queixo caído com uma demonstração científica extraordinária.

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Seu grupo de pesquisa na Universidade Duke, na Carolina do Norte, havia implantado eletrodos em centenas de neurônios de macacos, e em seguida ensinou-os a jogarem videogame, controlando um robô no Japão com os sinais elétricos emitidos por neurônios nos Estados Unidos. Não, não é um roteiro da Marvel: Nicolelis e sua turma fizeram macacos controlarem robôs com a força da mente.

Em 2009, ocorreu a ele uma exibição científica ainda mais espetacular, capaz de impressionar o mundo inteiro. E aí, no ano seguinte, ele fez essa ideia chegar a um outro brasileiro que também estava tendo um ano bom: Lula.

O milagre

Quando a espinha dorsal se rompe, os sinais elétricos do cérebro para controlar todas as partes do corpo não conseguem chegar ao seu destino. É uma das lesões mais devastadoras que alguém pode sofrer – num instante uma pessoa hábil e forte pode se tornar incapaz de quase qualquer movimento. Aconteceu com Christopher Reeve, o Super-Homem do cinema.

A medicina humana produziu incontáveis feitos no último século, da penicilina ao Viagra, mas o milagre de recuperar uma espinha rompida ninguém operou. Neurônios não se regeneram, diz o dogma. Mas 2009, com o Cristo decolando como foguete na capa da Economist, era um bom ano para planejar milagres. O de Nicolelis foi batizado de Walk Again Project, ou, no Brasil, Projeto Andar de Novo.

A ideia do palestrino emplacou logo com o corintiano Lula, e foi selada num encontro entre o cientista e o presidente da Fifa, Sepp Blatter. O plano era escolher alguém entre 20 e 40 anos, pesando cerca de 70 quilos, homem ou mulher, cuja lesão de espinha não fosse nem muito nova nem muito velha, para entrar em campo no dia da abertura da Copa, vestido num robô. Aliás, não exatamente um robô: é um “exoesqueleto”, uma máquina que faz o trabalho do esqueleto, de sustentação e locomoção, só que do lado de fora do corpo. A pessoa com exoesqueleto, usando apenas o poder da mente, iria caminhar até a bola e chutá-la, presumivelmente para as redes.

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O governo brasileiro contribuiu com R$ 33 milhões para o Andar de Novo, o suficiente para colocá-lo bem perto do topo da lista dos maiores empreendimentos científicos da história do Brasil.

O simbolismo é colossal. Nicolelis pretende usar o momento em que boa parte da humanidade estará conectada para mostrar ao mundo todo, ao vivo, o triunfo da ciência sobre a doença e a morte.

O físico americano Michio Kaku, autor de vários best-sellers sobre ciência, acha que a importância do chute do Itaquerão pode ir ainda além disso. Em seu livro The Future of the Mind, lançado em 2014, Nicolelis é descrito como um dos pioneiros de uma nova era da ciência, na qual o cérebro humano será conectado aos computadores, transformando os impulsos químicos dos neurônios em sinais elétricos digitalizados, capazes de tudo neste mundo digital no qual vivemos. A revolução que aconteceu com músicas, fotos e textos nos últimos anos poderá acontecer com ideias, pensamentos e memórias.

Orquestra

Para fazer seu experimento famoso de 2008, Nicolelis teve que abrir o crânio de símios e realizar uma cirurgia cerebral, conectando pequenas peças de metal a grupos que iam de 100 a 500 neurônios. Na época, isso foi saudado como uma revolução científica, porque eletrodos dentro do cérebro registram uma informação muito mais precisa do que meros aparelhos de eletroencefalograma (EEG) presos com ventosas na careca raspada.

Imagine uma grande orquestra, cheia de cordas e metais e madeiras, com centenas de instrumentos, cada um deles executando uma partitura diferente. A música emerge da união de todas essas informações. O cérebro humano é assim, só que muito mais complexo – tem bilhões de instrumentos.

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Antes de Nicolelis, gravava-se a música dessa imensa orquestra com meia dúzia de microfones, instalados do lado de fora do auditório que é o crânio – é o que o EEG permite fazer. O resultado é um registro tosco, no qual um som se mistura a outro, e várias sutilezas desaparecem abafadas pela tuba.

O que a pesquisa de 2008 fez foi abrir a possibilidade de instalar um microfone ao lado de cada instrumento da orquestra, aumentando imensamente a resolução da música digitalizada. Claro que ninguém estava propondo que houvesse um eletrodo para cada um dos nossos 86 bilhões de neurônios, mas a aposta é que, com alguns milhares, seria possível montar um repertório grande o suficiente de músicas diferentes. Esses sinais, digitalizados, fariam o exoesqueleto se mover.

Nicolelis prometia ser capaz de medir os impulsos emitidos por até 30 mil neurônios diferentes do cérebro humano. “Seria o suficiente para que o robô chute a bola como um jogador”, disse uma vez à revista Wired. “Um jogador brasileiro, não inglês”, complementou, caçoando da falta de resolução da habilidade futebolística britânica.

Sua espetada não era só nos boleiros ingleses, mas também nos cientistas europeus, que desenvolviam interfaces cérebro-máquina movidas por EEG, com resolução muito mais baixa. A demonstração no Itaquerão estava prevista para acontecer com uma tecnologia muito superior, usando eletrodos conectados a milhares de neurônios, que produziriam sinais cheios de complexidade para mover o exoesqueleto.

Do céu ao inferno

Mas muita água correu por baixo da ponte desde que o Andar de Novo foi iniciado. No Brasil, a euforia econômica murchou com a contaminação da China pela crise global e uma política econômica que produziu mais inflação que crescimento. O dinheiro de megainvestidores minguou no País, deixando com calças na mão mercadores de ilusões como Eike Batista. Ele quebrou ruidosamente em 2013, e virou símbolo na imprensa internacional de um Brasil que promete e não entrega. A Economist, que havia retratado o Cristo decolando em 2009, fez uma releitura da capa quatro anos depois mostrando o foguete-Cristo desgovernado sobre a Guanabara. Manifestações contra tudo tomaram o País, e depois houve manifestações contra as manifestações.

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Foram anos difíceis para Nicolelis também. Em 2011, a cúpula inteira do Instituto Internacional de Neurociências Lily e Edmond Safra se demitiu. Com exceção do próprio Nicolelis e do chileno Romulo Fuentes, todos os outros oito membros da equipe científica, recrutados entre os jovens neurocientistas mais promissores do mundo, vários deles participantes da pesquisa histórica de 2008, fizeram as malas e se voluntariaram para montar um departamento de pesquisa do cérebro de nível mundial na UFRN. É o Instituto do Cérebro, concorrente do Instituto Safra, de quem tirou vários projetos. Há portanto hoje no Rio Grande do Norte dois institutos de pesquisas de ponta em neurociências, inimigos mortais um do outro.

O escândalo é tratado com discrição nos meios acadêmicos – cientista normalmente não gosta de bafafá, só de cochicho, inclusive porque depende de doações e de indicações de seus pares para fazer pesquisa. Mas o que se conta é que a razão da ruptura foi, segundo os rebelados, o autoritarismo descontrolado de Nicolelis, que virou um megalomaníaco (“os jedis derrotaram Darth Vader”, um deles teria dito). Já Nicolelis desfaz de seus ex-pupilos e considera-os indisciplinados e despreparados para o empreendedorismo científico de alto nível.

Para piorar, os problemas do Brasil alimentaram os de Nicolelis. O Projeto Andar de Novo foi um entre milhares que sofreram com o fim do dinheiro fácil no Brasil. Aqueles R$ 33 milhões governamentais só vieram a ser liberados em 2011, e o projeto atrasou tanto quanto tudo o que tem a ver com a Copa. Em 2013, a revista Wired visitou o laboratório de Nicolelis nos Estados Unidos e comentou, jocosa: “a um ano e meio da Copa, Nicolelis continua trabalhando exclusivamente com macacos.”

Macacos

Já falamos aqui de Nicolelis, Lula, Blatter, Eike, Darth Vader, Neil Armstrong, do Super-Homem, de Jesus Cristo e da Cláudia Leitte. Mas, até agora, nem uma mísera linha sobre os macacos que tiveram eletrodos implantados no cérebro, os tais que jogaram videogame com os poderes da mente.
Eles morreram.

Constatou-se que a cirurgia para implantar os eletrodos machuca lentamente os neurônios e prejudica sua capacidade de transmissão. O sinal neural transmitido vai ficando cada vez mais fraco, até sumir. Os macaquinhos são, então, encaminhados para a eutanásia e suas células são estudadas.

Obviamente, seguir o mesmo procedimento com a estrela da festa de abertura da Copa do Mundo não é uma possibilidade. Para complicar ainda mais, fazer com humanos o que Nicolelis havia demonstrado em macacos revelou-se bem mais complicado do que parecia. Nosso cérebro é muito mais apertado que o deles, por causa da abundância de neurônios.

Com o prazo no pescoço e dificuldades tanto técnicas quanto éticas, Nicolelis foi obrigado a mudar de estratégia. No início de 2014, anunciou que abriu mão de medir os impulsos elétricos de neurônios individuais e que apelaria ao velho e bom EEG para a demonstração da Copa.

Enfim, ele resolveu gravar a orquestra com microfones do lado de fora do auditório. Três anos depois de caçoar do futebol inglês e da ciência europeia numa mesma frase, Nicolelis se conformava com uma tecnologia de resolução mais baixa do que o futebol chinês.

O milagreiro

Não é fácil falar com Miguel Nicolelis ultimamente.Não que ele se esconda. Aliás, muito pelo contrário. O neurocientista palestrino está sempre disponível para uma polêmica, se precisarem dele. Dia desses foi visto no Twitter em aberto bate-boca contra o roqueiro Roger Rocha Moreira, o autor de versos imortais como “tem gringo pensando / que nóis é indigente”. Enquanto o neurocientista de Duke fazia pilhéria da contribuição cultural do adversário, o vocalista do Ultraje a Rigor acusava-o de pilantragem com dinheiro público.

Nicolelis costuma usar o Twitter para comentar os jogos de seu time do coração, minuto a minuto. A torcida vibra quando ele dá uma de suas tiradas, como quando sugeriu conectar o cérebro do maior ídolo da história do Palmeiras, Ademir da Guia, a jogadores menos cotados do presente.

Quando nós da SUPER enviamos e-mails a Nicolelis, ele algumas vezes responde de imediato. Mas sempre avisa que sua fala é “em off”, ou seja, que não estamos autorizados a publicar o que ele diz (sem descumprir o combinado, só posso adiantar que ele se declara mais confiante no Projeto Andar de Novo do que na capacidade do rival Corinthians de terminar o estádio a tempo).

Sua assessoria de imprensa nos avisa constrangida que está tentando evitar incomodá-lo, porque ele está sob muita pressão. O exoesqueleto, produzido por um parceiro de pesquisas na Alemanha, chegou a São Paulo só em fevereiro deste ano, quatro meses antes da bola rolar. Nicolelis e equipe estão testando o equipamento com oito pacientes, e os vídeos que ele posta na página do projeto no Facebook ainda ficam devendo aos efeitos especiais do Robocop (a versão antiga).

Bolhas no pé

Na conferência TED de 2014, realizada em Vancouver, Canadá, em abril, a palestra mais aplaudida foi a fala incrível do cientista Hugh Herr, um alpinista e biofísico que perdeu duas pernas congeladas numa montanha e, em troca, ganhou um emprego. Virou diretor do laboratório de biomecatrônica do MIT, em Cambridge, Estados Unidos, responsável por desenvolver novas tecnologias em próteses e atender pacientes que precisam delas. Herr subiu ao palco usando duas próteses tão futuristas quanto funcionais, com as quais se movimentava com naturalidade.

Na palestra, ele se disse desapontado com o quanto boa parte das chamadas “interfaces homem-máquina” ainda são toscas. “Interfaces homem-máquina” são peças de conexão entre nossos corpos e nossa tecnologia. “Acho incrível que, ainda hoje, os sapatos que usamos nos provoquem bolhas”, diz ele. Trata-se de um problema de interface: o tênis, que é um objeto tecnológico, machuca o calcanhar, que é uma parte biológica. Se isso acontece no pé, imagine no lado de dentro da cabeça, onde a complexidade celular é quase infinita.

Herr dedica-se a resolver esses problemas. Descobriu, por exemplo, que, para evitar bolhas, basta encaixar próteses duras em partes moles do corpo e partes moles nas duras (o problema do sapato é descumprir essa regra ao se apoiar rigidamente no duro calcanhar). Seu laboratório produz loucamente e já equipou mais quase mil deficientes, a maioria veteranos das diversas guerras americanas.

No TED, Herr emocionou o público mostrando próteses fantásticas que permitem, por exemplo, que uma dançarina que teve uma perna arrancada pela bomba na maratona de Boston, ano passado, voltasse a dançar apenas 200 dias depois da explosão. A prótese é uma maravilha tecnológica. De um lado, ela recebe impulsos nervosos através da pele do cotoco da perna da moça, e se move. De outro, ela envia sinais que fazem com que a moça sinta o chão como se tivesse a perna. O resultado é espetacular. A dançarina pode não ser ainda tão boa quanto antes da explosão, mas já se move de maneira fluida, humana, não como um robô.

O milagre de Herr não exigiu cirurgia cerebral. Seus pacientes e ele próprio têm a espinha intacta, e portanto há sinal elétrico chegando à pele e não é preciso ir capturá-lo no cérebro. Mas sua demonstração, chamando a bailarina ao palco do TED para exibir seus movimentos ao vivo, evocou um vislumbre do futuro ainda mais impressionante do que os macacos jogando videogame de seis anos antes. (Nicolelis foi confirmado para palestrar no TED Global, que em ano de Copa foi transferido para a praia de Copacabana, no Rio, em outubro.)

Copa X Nobel

No imaginário popular, o Nobel é como uma Copa do Mundo de gênios: uma competição entre os melhores, na qual um vence. Na verdade, não é bem assim.

Veja o caso do imenso empreendimento colaborativo e global que é a pesquisa científica em “interfaces homem-máquina” (e, mais especificamente, as “interfaces cérebro-máquina”). No mundo inteiro, em centenas de universidades e centros de pesquisa, financiados por bilhões de dólares de dinheiro público e doações privadas, milhares de pesquisadores de dezenas de áreas diferentes dedicam seus dias de trabalho a pequenos avanços no conhecimento sobre cada aspecto envolvido: robótica, neurociência, biofísica, computação, aerodinâmica.

O potencial dessas pesquisas é fabuloso: elas vão mudar a vida de muita gente no mundo de um modo inacreditável. Conectar homens a máquinas abre possibilidades maravilhosas. Cegos voltarão a ver, surdos ouvirão, membros serão devolvidos a amputados. A vida de milhões de pessoas vai se transformar, algumas da água para o vinho.

Possivelmente chegará o momento em que a Academia de Ciências da Suécia irá olhar para trás e verá que o campo das interfaces homem-máquina já merecerá um Nobel de Medicina. Nesse momento, os sóbrios membros da academia discutirão a história desse campo e tentarão decidir quais foram as duas ou três pessoas do mundo que foram mais decisivas na construção dessa pirâmide, desde o início. Nunca aconteceu de escolherem um brasileiro.

Enfim, ganhar um Nobel não se parece em nada com vencer uma Copa. Mas tem uma coisa em comum: não se ganha de véspera.

Interface

Interface é a superfície de contato entre dois corpos. Quer dizer conexão, emenda. Resolver a interface homem-máquina significa criar caminhos para que a informação de um chegue ao outro, e de volta.

Mesmo com a escolha pelo EEG, Nicolelis promete para o Itaquerão uma demonstração impressionante de interface. A pessoa que entrará em campo não apenas será capaz de levantar-se e mover as pernas até dar um chute, como irá sentir a pressão do gramado nas solas dos pés.

Nicolelis promete que o exoesqueleto será comandado pela mente da pessoa que o estiver usando, mas a multidão de rivais que ele tem pelo mundo torce o nariz. Uns apostam que a pessoa não fará mais do que comandar com a mente o início de uma exibição pré-programada. “É preciso ter expectativas realistas. Nós avançamos muito, mas estamos muito longe de devolver os movimentos a uma pessoa paralisada”, disse John Donoghue, pesquisador da Universidade Brown. “Quando o espetáculo terminar, as pessoas que o professor Nicolelis ensinou a usar os exoesqueletos vão voltar às cadeiras de rodas. Elas não vão recuperar os movimentos”, disse.

Serão pequenos passos para uma pessoa, mas ainda assim talvez um passo considerável para a humanidade. Ou ao menos um pequeno passo numa direção bem promissora. A descoberta de uma conexão melhor entre gente e máquina promete para o futuro uma imensa revolução, e não só para a medicina. Ainda mais na era digital, em que tudo aquilo que pode ser digitalizado pode também ser distribuído, arquivado e compartilhado. Em seu livro, Michio Kaku fala sobre poderes telepáticos (na realidade e-mails operados com a mente), gravação de sonhos e edição de memórias.

Uma interface permitirá a uma pessoa transformar-se em uma máquina e operá-la com a naturalidade de quem comanda o próprio corpo. Uma pessoa pode ser um tatu gigante de 200 metros e garras de aço, pronto para escavar um túnel. Ou um imenso navio de carga com braços mais fortes que guindastes, carregando containers de um lado para o outro como quem rearranja almofadas.

Você pode ser o camisa 10 da Seleção, num estádio lotado, com chute potente e impulsão felina, num videogame de carne e osso. Ou um soldado invencível, numa guerra de verdade.

Dia 12

No dia 12 de junho de 2014, uma quinta-feira de feriado verde-amarelo, o Brasil acordará ansioso com a estreia contra a Croácia. Enquanto o trânsito estiver enlouquecido, nas duas horas que antecederão a entrada da Seleção no gramado do Itaquerão, ocorrerá a cerimônia de abertura da Copa do Mundo de 2014.

Os heróis do mundo serão Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo. Os assuntos do dia serão esquemas e atuações. A manchete do dia seguinte será sobre o jogo.

Mas Nicolelis, o exoesqueleto e o paralítico em seu comando serão assunto.

Se a exibição acabará em milagre ou em espuma, é cedo para saber. Dizem que, em ciência, às vezes leva 30 anos para distinguir os gênios dos equivocados.

Talvez seja só uma distração de marketing, um saco de promessas vazias a necessitados, que formarão filas inúteis nas portas dos hospitais públicos. Talvez o espetáculo adie ainda mais a discussão sobre a inviabilidade de um país sem sistema de educação, onde só se faz ciência com despachante. Uma decepção a mais numa Copa cujo maior legado parece ser a desconfiança global eterna quanto à capacidade brasileira de cumprir prazos.

Ou talvez seja o início de algo concreto, real. Nicolelis costuma dizer que o que acontecerá no Itaquerão será um começo, não um fim. Ele garante que o dinheiro do governo não será todo torrado numa exibição fugaz, mas deixará um projeto de pé, atendendo pessoas com lesão séria na espinha e criando soluções neurotecnológicas personalizadas. (Nicolelis não respondeu quando perguntado como pretendia gastar os R$ 33 milhões.)
Quarenta e cinco anos atrás, quando Neil Armstrong carimbou sua pegada na Lua, Nicolelis era um menino de oito anos em São Paulo. Ele já contou que aquele momento mudou a trajetória de sua vida. Agora é a vez de ele tentar impactar as vidas de milhões de meninos e meninas reunidos em frente à TV ao redor do mundo todo. Que tipo de impacto será esse?

Como vai funcionar o exoesqueleto

A máquina projetada pela equipe de Miguel Nicolelis e fabricada num instituto de pesquisa da Suíça pesa cerca de 70 quilos, mais ou menos o mesmo peso da pessoa que a estiver vestindo. A bateria dura duas horas.

1. Cérebro

Aqui mora parte da polêmica sobre o projeto. Em vez de eletrodos inseridos cirurgicamente crânio adentro, Nicolelis optou por uma toca que lê padrões por eletroencefalograma.

2. Outro cérebro

Os sinais digitais são então enviados a um computador, nas costas do paciente, que os comparam a sinais identificados previamente, durante os testes. É o computador que envia a ordem para os membros mecânicos se moverem.

3. Membros

As ordens digitais então acionam os membros. A demonstração será impressionante se os membros forem capaz de reproduzir cada pequeno sinal milimétrico, em vez de executar sequências prontas, tipo “dê um passo”.

4. E de volta
Sob os pés, há Sensores que sentem a pressão do chão. Como o paciente não tem sensibilidade nas pernas, os sinais são enviados aos braços, que comunicam ao cérebro. Por limites tecnológicos, sinais de ida e de volta se alternam – não funcionam simultaneamente.

 

 

Sucesso ou fracasso?

Como saber se a exibição na abertura da Copa será bem-sucedida ou não? Julgue você mesmo, pela TV

Fluidez

Preste atenção na fluidez e na velocidade dos movimentos. Próteses movidas pela mente que são muito lentas e travadas não são novidades – a demonstração de Nicolelis só poderá ser considerada um sucesso se o movimento for minimamente natural.

Repertório

Lembra os videogames antigos, tipo Atari? Aqueles joysticks só enviavam nove tipos de sinal – oito direções e o botão de tiro. Por isso os jogos eram tão toscos. Repare se o exoesqueleto tem um repertório grande de movimentos ou se cada passo é exatamente igual ao outro, como os do Atari.

Controle

Repare se tudo é controlado ou se há espaço para imprevistos. A bola estará presa, para não rolar nem 1 centímetro? Ou será descuidadamente colocada no chão? Um exoesqueleto bom de verdade sabe lidar com pequenos imprevistos, em vez de fazer apenas movimentos pré-programados.

Continuidade
Mas talvez o mais importante para avaliar o espetáculo sejam as dicas de que o projeto vai continuar. Se o show for anunciado como a inauguração de um centro que atenderá ao público, sucesso. Se ele raspar o tacho dos milhões de dinheiro público sem deixar legado algum, fracasso.

 

Próximos milagres

Não acaba aqui. As pesquisas sobre o funcionamento da mente prometem vários feitos milagrosos para os próximos anos. Abaixo, alguns deles:

Leitura da mente

Com EEG ou eletrodos implantados no cérebro, grupos de pesquisa ao redor do mundo estão fazendo avanços na decodificação dos sinais. Até chegar o dia em que o sujeito da pesquisa pensará numa imagem e ela aparecerá na tela.

Telepatia

Telepatia é um passo além da leitura da mente. Além de ler os impulsos do cérebro, os computadores precisam ser capazes de enviá-los digitalmente a outro cérebro, que precisa ser capaz de compreender o sinal. Um whatsapp mental que só será possível com amplas áreas do cérebro varridas por eletrodos.

Educação instantânea

 

Cientistas da Darpa, órgão ligado ao departamento de defesa dos EUA, estão trabalhando em projetos para implantar conhecimentos direto no cérebro, tipo Matrix.

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