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Na era das cerâmicas

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h35 - Publicado em 31 out 1988, 22h00

O motor do automóvel roncava baixinho, apesar da velocidade de quase 200 quilômetros por hora. Com as janelas fechadas, apenas a música do disco laser preenchia o silêncio da viagem. De repente, uma curva inesperada, o ruído de uma freada, o carro arremete para fora da rodovia. Depois de bater numa árvore, fica preso numa cerca de arame. O pára-choque e a carroçaria absorvem o impacto. Quando chega o socorro, as tesouras dos bombeiros cortam os arames como se fossem barbantes. O motorista vive: o cinto de segurança impediu que o rosto fosse atingido. Mas a perna está quebrada. No hospital, uma prótese é colocada no lugar do osso — logo ela estará biologicamente integrada ao organismo.

Os principais personagens dessa história são as coisas. O motor do carro acidentado é quase todo feito de cerâmica e plástico. O pára-choque também é de plástico. A carroçaria, de tela de carbono. As tesouras dos bombeiros são de cerâmica. A prótese, enfim, é de grafite — e o importante é que todos esses materiais não apenas existem como já estão sendo utilizados em escala crescente. Pastilhas de cerâmicas, por exemplo, protegem o nariz dos ônibus espaciais americanos, como o Discovery. Há quatro anos, um motor de competição, quase inteiramente construído de plástico, vem sendo testado nos Estados Unidos. Mesmo no Brasil, quase 10 por cento do peso dos últimos modelos dos automóveis de passeio corresponde a componentes de plástico. No avião bimotor Brasília, fabricado pela Embraer, fibras de carbono, de vidro e de Kevlar substituam os metais em diversos pontos da fuselagem. Para se ter uma idéia das vantagens que esses novos materiais proporcionam, só com as cadeiras de fibra há uma economia de 70 quilos — e cada 10 quilos poupados no peso de uma aeronave representam quase 2 quilômetros a mais em autonomia de vôo. Nos Estados Unidos, na Europa e no Japão já se encontram a venda facas e tesouras de cerâmica dos mais antigos materiais fabricados pelo homem, mas comumente associado a artefatos banais como vasos, potes e louças.

Essas facas são uma pequena amostra do que podem as cerâmicas: são leves, inoxidáveis, resistentes e jamais perdem o fio. Tecnicamente, uma cerâmica, é um aglomerado de microcristais, entremeados de óxidos metálicos e dos sais carbetos e nitretos. Por sua vez, a grafite da ponta do lápis, depois de receber um tratamento especial, transforma-se num duríssimo composto, o carbono-carbono, usado na indústria aeronáutica, assim como na Medicina. Não há exagero em afirmar que isso representa um salto tecnológico de extraordinário alcance.

Depois da Idade da Pedra, do Bronze, do Ferro e, já no mundo contemporâneo, dos Plásticos, o homem mergulha na criação de novos materiais que prometem revolucionar desde os objetos mais comuns do cotidiano até os sofisticados equipamentos usados nas indústrias de alta precisão: são quase tão duros quanto o diamante, mais resistentes que o aço, mais leves que o alumínio e tão práticos quanto a madeira. As cerâmicas: podem ainda ser supercondutoras, transportando eletricidade sem perdas. Quando o homem descobriu como utilizar os metais, teve à sua disposição um material de notáveis qualidades, pois são resistentes, bons condutores de calor e eletricidade e ainda facilmente usináveis, ou seja, podem ser moldados, trabalhados e lixados.

No entanto, quase todos os metais são extremamente pesados e pouco resistentes à corrosão. Para os engenheiros, possuem ainda uma superposição desnecessária de qualidades — uma panela, por exemplo, além de impermeável e boa condutora de calor, não precisa ter todos os muitos atributos que caracterizam os metais, sem falar nos defeitos que os fazem perder pontos para as cerâmicas. Nestas, a estrutura proporciona uma estabilidade química que se manifesta como invulnerabilidade à degradação ambiental, resistindo até mesmo à água do mar, assim como à dissolução por solventes, ácidos ou álcalis (soda e potassa). Como os óxidos metálicos fazem parte da composição das cerâmicas, é impossível que se oxidem ainda mais (seja por combustão ou outra reação química. Na verdade, uma cerâmica já foi “queimada”, “oxidada”, ou “corrida” de tal forma que não pode mais sofrer outras degradações. É, portanto, extremamente estável. Se é grande a resistência química das cerâmicas, não fica para trás a força da atração física entre seus átomos — o que lhes confere um alto ponto de fusão, rigidez e dureza, ou seja, só se derretem a altíssimas temperaturas, não cedem e são difíceis de riscar. No entanto, é tão forte essa atração molecular que, quando uma cerâmica é golpeada, ela racha. Num metal, as camadas deslizam, acomodando- se numa pequena depressão quando ele é golpeado. A rígida estrutura das cerâmicas, não permite a mesma acomodação e elas se partem. Evidentemente, para que se pudesse criar os mais variados objetos de cerâmica, esse inconveniente teve de ser superado.

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Os pesquisadores descobriram que minúsculos poros e impurezas aumentam a fragilidade do material. Usando métodos refinados na preparação da massa e fornos de alta precisão, foi possível conseguir uma cerâmica menos frágil. Quando, por exemplo, uma faca de metal parece riscar um prato de porcelana ao cortar um bife, na verdade é ela que perde o fio, deixando um rastro de pó de metal. Portanto, não foi o prato que se riscou. Isso se explica pelo fato de ser a porcelana mais dura que o metal. Uma tesoura de cerâmica é capaz de cortar uma tela metálica sem ficar marcada, e um relógio de cerâmica terá o aspecto de novo durante a vida toda. “Apenas ferramentas de diamante são capazes de aparar peças de cerâmica explica o professor Anselmo Ortega Boschi, do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo. Ali, por sinal, estão alguns dos mais importantes centros brasileiros de pesquisa no campo de novos materiais.Enquanto está na forma pastosa, a argila é facilmente moldável, mas depois de colocada na fôrma e de ir ao forno, não mais. Os moldes, portanto, têm de ser milimetricamente exatos, para a peça sair perfeita. Como há milhares de anos, é ainda dos fornos que saem as cerâmicas, Depois de queimadas, são capazes de resistir a temperaturas acima de mil graus centígrados. Usadas nos motores de automóveis, poderão trazer grande economia, pois, trabalhando a temperaturas mais elevadas, eliminam a necessidade de sistemas de refrigeração. Por outro lado, como proporcionam uma queima mais completa do combustível, diminuem a quantidade de poluentes eliminados na atmosfera.

Nos Estados Unidos, um caminhão de 4 toneladas e meia foi equipado com um motor diesel revestido internamente de cerâmica. Depois de 10 mil quilômetros de testes, os resultados foram surpreendentes — era de 30 a 50 por cento mais econômico que os motores comuns. Além disso, o revestimento de cerâmica dispensava o radiador e outras 360 peças do sistema de refrigeração, ou seja, 190 quilos a menos. Esse motor, fabricado para o Exército americano, deve começar a ser produzido no ano que vem.

Foi também procurando um material mais leve que os metais e resistente ao calor que o engenheiro americano Matthew Holtzberg fabricou em 1984 um motor de apenas 84 quilos, 100 a menos que os convencionais. Ele usou um plástico especial chamado Torlon. Seu motor equipou um carro de corrida Lola T- 616 GT, conseguindo uma altíssima potência a 9 400 rotações por minuto (rpm), enquanto nos motores metálicos essa potência só é possível a partir de 14 000 rpm, com maior desgaste de peças e maior consumo de combustível.

Os plásticos são derivados de petróleo, cujas moléculas formam polímeros, ou seja, longas cadeias repetidas das moléculas à base de carbono, como contas num colar. Mudando os átomos de lugar, dentro dessas cadeias, os cientistas conseguem alterar as propriedades dos plásticos, adequando-os aos mais diversos usos. Desse modo foram criados plásticos especiais, como o Torlon e o Kevlar, este último um material cuja resistência à tração é superior à do aço, sendo usado na aeronáutica e em capacetes e coletes à prova de balas. Plásticos como o Kevlar existem apenas sob a forma de fios fortíssimos. Quando trançados numa malha, criam uma espécie de tecido semelhante ao utilizado nos cintos de segurança dos automóveis. Esse tecido, embebido em resina, é cortado segundo o molde da peça a ser fabricada; depois de empilhado, até atingir a espessura desejada, segue para a autoclave.

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Ali, submetido a temperaturas que variam de 120 a 180 graus centígrados, sob pressão, o tecido mistura-se à resina, formando uma placa delgada de altíssima resistência. Esse material chama-se compósito e tem causado uma revolução à parte na construção de aviões, por ser leve e moldável, substituindo com vantagem os metais — que, por sua vez, haviam substituído a madeira usada nos tempos heróicos da aviação.

Com os compósitos pode-se criar uma peça única, inteiriça, como o flap de quase 9 metros de comprimento que a Embraer está fabricando para o novo jato americano MD-11 da McDonnel Douglas. “Se ele fosse de metal”, explica com gestos largos o engenheiro Ney Pasqualini Bevacqua, chefe de fabricação de materiais compostos da Embraer, em São José dos Campos (SP), “teria não apenas um maior número de partes como também rebites, para unir essas partes, criando pontos de fragilidade estrutural.”

Na imensa sala onde são fabricadas as peças de materiais compostos na Embraer, todos os cuidados foram tomados para evitar que alguma impureza se deposite entre as mantas de fibra — o ar é absolutamente filtrado, assim como a pressão no interior da sala é maior que a pressão atmosférica do exterior, evitando a entrada de poeira através de uma telha quebrada, por exemplo: o uso constante de luvas é obrigatório para os técnicos que manipulam o material, pois também a oleosidade da pele pode criar um ponto de fragilidade na peça pronta.

No avião Brasília, 2 200 partes são feitas de materiais compostos. Uma cadeira de passageiro, cuja estrutura é toda de metal, pesa cerca de 8 quilos. As novas peças, feitas de compósitos, pesam pouco mais de 5 quilos. Mas não basta pesar menos. Uma cadeira, por exemplo, deve ser capaz de agüentar choques de até 9g, ou seja, nove vezes a aceleração da gravidade. E as novas cadeiras passaram no teste.

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Leves, duros e resistentes, os compósitos, depois de prontos, criaram um novo problema — como cortar uma chapa de Kevlar se todos os tipos de serra perdiam o fio antes de chegar ao final do corte. Uma solução engenhosa acabou sendo encontrada: um finíssimo jato de água (de 0,1 a 0,3 milímetro de diâmetro) sai do bico de safira da máquina de corte com uma pressão de 40 a 50 mil libras por polegada quadrada (psi). Para se ter uma idéia do que isso representa, o pneu de um automóvel de passeio é calibrado para uma pressão que não chega a 30 psi. Quando se quer um material que resista à tração e tenha boa rigidez, a fibra de carbono é a escolhida. Como se trata de material de fácil modelagem, os compósitos dão aos projetistas maior liberdade na criação das estruturas. Até o final da década, os materiais compostos serão quase 65 por cento do peso total das aeronaves.

Os novos materiais trouxeram também grandes avanços à Engenharia Biomédica na criação de próteses, como artérias e ossos artificiais. A prótese de grafite, por exemplo, foi desenvolvida na França, na década de 70. Mas não se trata da grafite comum — há muito tempo se sabe que o diamante e a grafite são, na verdade, duas formas de cristais de carbono. É possível criar diamantes sintéticos submetendo a grafite a altíssimas pressões e temperaturas. Técnicos japoneses desenvolveram um sistema que consiste numa espécie de canhão de ar comprimido com um cano muito comprido e fechado na ponta.

A bala, cheia de grafite, é disparada e, como não tem por onde sair, o impacto no final do cano é suficiente para criar pequenos diamantes. Já a quebradiça grafite pode também ser transformada num material mais resistente, depois de receber uma injeção de carbono líquido ou gasoso, em câmaras de alta pressão, à temperatura de mil graus centígrados. O novo material, batizado de carbono-carbono, é leve como o alumínio e mais resistente que o eco ao impacto, ao atrito e ao calor. Ele pode ser usado tanto nos discos de freio do supersônico Concorde como em próteses cirúrgicas — enfim, em todos os tipos de peças que exigem resistência, durabilidade e leveza excepcionais.

O impacto do emprego desses novos materiais de mil e uma utilidades nas sociedades industriais não pode ser subestimado. O homem moderno vive imerso num mundo de objetos manufaturados, todos eles produtos da tecnologia de transformação de matérias-primas existentes na natureza. O consumo dessas matérias-primas nos países desenvolvidos alcança números formidáveis. Calcula-se, por exemplo, que nos Estados Unidos a quantidade de produtos usados num ano, requer a extração e o processamento de quase 10 toneladas de minérios por habitante, sem contar os combustíveis e o material reaproveitado. O uso intensivo dos novos materiais tornará os países menos dependentes da posse de jazidas minerais. A argila — matéria-prima das cerâmicas — existe em vastas quantidades no mundo inteiro. Os novos materiais, assim, serão de quem dominar a tecnologia de sua produção.

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Primeiros passos

O aspecto dos laboratórios pode não impressionar, assim como o que ali se produz — pequenas barras de aproximadamente 4 centímetros de comprimento por 1 de largura. Mas elas representam o que se faz de mais avançado no país em pesquisas de novos materiais. No Departamento de Engenharia de Materiais (DeMa) da Universidade Federal de São Carlos, no interior paulista, nove professores lutam com a crônica falta de verbas para dominar a tecnologia das cerâmicas avançadas. No Brasil existem apenas vinte profissionais com grau de doutor nesta área — e todos estudaram no estrangeiro.

Apesar das limitações, o entusiasmo é grande nessa equipe que chama a atenção pela idade de seus membros — na faixa dos 30 anos. “Estamos ainda aprendendo a trabalhar com a cerâmica de alumina e a de zircônia, enquanto os japoneses já estão vendendo tesouras e facas de zircônia”, reconhece o professor Anselmo Baschi, 35 anos, subchefe do DeMa. As pequenas barras de cerâmica criadas no laboratório da Universidade são submetidas a rigorosos testes, para avaliar suas propriedades. As fórmulas são depois repassadas às indústrias nacionais.

A Metal Leve, indústria paulista de autopeças, por exemplo, está desenvolvendo um cabeçote de pistão experimental revestido de cerâmica de alumina; a Keramus Cerâmicas Especializadas, de São Carlos, criada por ex-professores e alunos, vende peças das chamadas Cerâmicas técnicas, um estágio anterior ao das Cerâmicas avançadas. Explica o químico João Castral, gerente de desenvolvimento e controle de qualidade da Keramus: “Em se tratando de Cerâmicas as menores imperfeições têm que ser detectadas, pois o material não pode trincar ou rachar, como é o caso das peças do freio para o metrô”.

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Para saber mais:

Petróleo verde

(SUPER número 12, ano 5)

Laboratório de um país do futuro

(SUPER número 11, ano 6)

A última cartada de Einstein

(SUPER número 12, ano 9)

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