Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

O núcleo do futuro

Dez anos depois do desastre de Chernobyl, vários países fecharam os reatores. Mas há programas nucleares bem administrados e viáveis. Afinal, o que fazer com a energia atômica daqui por diante?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 31 dez 1996, 22h00

Fernando Valeika de Barros, de Paris

Entre Pripiat, na Ucrânia, e Paris, há 1 999 quilômetros e um abismo mental. O vulto da usina de Chernobyl domina o horizonte de Pripiat, onde não restou um habitante. Lá, energia nuclear é sinônimo de morte. Depois da explosão do reator número 4, na madrugada fatídica de 26 de abril de 1986, a radiação varreu tudo. A cidade foi abandonada e a roda do parque de diversões que seria inaugurada na festa de 1° de maio nunca girou. O acidente inutilizou uma área equivalente a um Portugal e meio, 140 000 quilômetros quadrados. Por centenas de anos.

A Europa despertou como se estivesse em um pesadelo. Itália, Alemanha, Suécia, Finlândia, Suíça, Holanda e Espanha deram marcha a ré nos programas nucleares e fecharam usinas. Para eles, o risco de um acidente igual era insuportável. Mas há usinas precárias nos antigos países socialistas que ainda ameaçam toda a vizinhança européia.

A solução, então, é fechar tudo? Se depender do Canadá, do Japão ou da França, onde reator nuclear é sinônimo de progresso, a resposta é não. Os franceses passam muito bem e 75% da energia no país vêm do átomo. Exportam usinas, reprocessam urânio, armazenam lixo radioativo e têm dois reatores de última geração. Tudo com aprovação das pesquisas de opinião pública. “Virar as costas para o átomo é burrice”, diz Jean Paul Chaussade, diretor de comunicação científica da Electricité de France (EDF). “O petróleo e o gás vão se esgotar em quarenta anos. Os combustíveis fósseis poluem mais e o impacto ambiental das hidroelétricas é muito maior. A alternativa atômica é cada vez mais barata e segura”. Hoje, entre Pripiat e Paris, o futuro balança. Virando a página, você vai saber por quê.

O sucesso da virada à francesa

Vigiado noite e dia, um imenso mapa da França com luzes coloridas pisca na sala de controle da EDF. Segundo a segundo, entram novas informações sobre o funcionamento de 56 usinas. Em cada uma delas, as salas de comando foram reformadas depois que uma falha humana provocou o vazamento de radioatividade da usina de Three Miles Island, nos Estados Unidos, em 1979. Os franceses investiram na simplificação dos controles.

Continua após a publicidade

No caso de funcionamento inadequado, a ordem é fechar tudo. Faz parte dessa política manter a população informada sem esconder nada, ao contrário do que fazem os países do leste europeu até hoje. Na verdade, a França é movida pelo átomo. Os reatores são instalados perto dos consumidores, diminuem os custos de transmissão e eliminam a dependência de recursos naturais. Sim, são perigosos. Mas geram menos lixo e menos poluição do que termoelétricas a carvão. Além disso, o quilowatt nuclear custa 2,5 vezes menos que o quilowatt do catavento e doze vezes menos do que o quilowatt solar.

A EDF reutiliza o urânio dos reatores e reprocessa o dos países que não dominam essa tecnologia. Também está na ponta com a operação de dois fast-breeders, o Phenix e o Super-Phenix, reatores de neutrons rápidos que, ao contrário dos comuns, reaproveitam boa parte do plutônio que utilizam. Com tudo isso, o preço da energia nuclear despencou (veja gráfico abaixo). E há muita oferta de urânio a preço baixo no mercado.

A França produziu 55 toneladas de lixo radioativo em 1996. Quase 1 quilo por cidadão. É muito? “Depende”, diz Chaussade. “Há seis anos produzíamos 100 toneladas por ano”. Há dois centros de armazenamento, em La Hague, no norte do país, e Aube, no centro-leste. O primeiro já está lotado. Aube deverá servir mais vinte anos.

O lixo é tratado segundo a radioatividade. Em cada quilo, 950 gramas têm fraca intensidade (esgota-se em 30 anos), 45 gramas têm média intensidade (o metal contaminado das cúpulas dos reatores é perigoso durante centenas de anos) e 5 gramas têm alta radioatividade (dura centenas de milhares de anos). Os de fraca intensidade são estocados em barris e mergulhados em concreto. Os de média e alta passam por um tratamento químico que separa aço, urânio e plutônio e, depois, são vitrificados em tubos revestidos de concreto ou betume. Então, são armazenados a 600 metros de profundidade.

O programa nuclear francês conquistou tanta autonomia que, durante anos, pôde ignorar protestos contra as explosões nucleares submarinas conduzidas pelos militares no Atol de Mururoa, no Oceano Pacífico. Foram 181 testes, em trinta anos. Só foram suspensos em janeiro de 1996, sob a pressão de uma das maiores vaias mundiais que a França já sofreu.

Continua após a publicidade

Uma opção para quem não tem outras saídas

O Japão não tem carvão, petróleo nem rios. Também não tem espaço suficiente para instalar grandes painéis fotovoltaicos e captar energia solar em larga escala. Por isso, há vinte anos a produção de quilowatt atômico vem aumentando. Em 1973, representava 0,6% de toda a eletricidade produzida no país. Em 1996, saltou para 30%. Trata-se, já, do terceiro maior parque nuclear do mundo: 51 reatores em operação. Sem maiores problemas. A opção é preciosa para os países com poucas opções energéticas, que teriam de importar carvão ou petróleo.

Os japoneses reprocessam urânio na usina de Tokai e também na Europa, em centrais da Inglaterra e da França. O tráfego de navios carregados de material radioativo é alvo de protestos constantes dos ecologistas do Greenpeace. Também fazem pesquisa de ponta com fast-breeders, operando com sucesso o reator de Monju. Mas não resolveram a questão do lixo. Por enquanto, guardam os dejetos em locais provisórios à espera de uma definição posterior do que fazer com eles.

O risco de um novo Chernobyl

Ignalina na Lituânia, Kozloduy na Bulgária, Medzamor na Armênia, Sosnovy Bor na Rússia. No leste europeu há várias usinas candidatas à catástrofe. A começar pela própria Chernobyl que, além do reator destruído, que virou um túmulo de concreto, mantém outros três em funcionamento. Só nos últimos dois anos, houve três incidentes em Chernobyl. E, como no tempo da guerra fria, as autoridades ucranianas demoraram meses para notificar a AIEA, a Agência Internacional de Energia Atômica.

Continua após a publicidade

“Com o desaparecimento da União Soviética”, diz Hans-Friedrich Meyer, da IAEA, “a situação no leste europeu, que já era ruim, ficou pior: a manutenção e o controle se deterioraram e os defeitos continuam lá.” Mas a maior complicacão é que os países do antigo bloco socialista dependem mesmo dessas geringonças. Ignalina, por exemplo, fornece 80% da eletricidade da Lituânia.

Em números exatos, o leste da Europa tem 58 problemas. Ou melhor, 58 reatores, de dois tipos: o VVER e o RBMK. No primeiro, faltam controles duplos. Se os controles principais pifam, não há reservas. Outra debilidade é a cúpula de aço, que é vulnerável à variação brusca da temperatura da água usada para refrigerá-la. No segundo, o calcanhar de Aquiles são os 33 quilômetros de 1700 tubos que carregam combustível dentro dele e são vulneráveis ao bombardeio con-tínuo da radiação de nêutrons. Mal controladas, suas soldas podem se romper. Além disso, diz Chaussade, da EDF, “a mistura entre vapor nuclear e água, no coração do reator, é malfeita e tende a multiplicar a potência das reações. O que se torna grave pela falta de uma instalação de confinamento que as contenha”.

Saldo controverso

Foi isso o que aconteceu em Chernobyl. Ao ser detectado o mal funcionamento, a máquina foi desligada, mas a anomalia fez com que, em dez segundos, a potência da central fosse multiplicada cem vezes, provocando a explosão. Em contato com o ar, o urânio pegou fogo. Toneladas de partículas – 140 exatamente – foram liberadas no ambiente. Uma nuvem sinistra de radioatividade atravessou a Europa.

Até hoje, o saldo é controverso. A Greenpeace fala em 60 000 mortos a longo prazo. O Instituto de Radiologia de Kiev admite 31 mortos e 50 000 contaminados. Um estudo da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico indica que a incidência de câncer na tiróide na área de Chernobyl aumentou mais de cem vezes. Por tudo isso, como diz Chassaude, “o ideal seria parar os VVER de primeira geração e todos os RBMK”.

Continua após a publicidade

Países como a Eslováquia melhoraram a segurança das centrais. Mas outros, como a Bulgária e a Ucrânia, por incrível que pareça, barganham para conseguir mais recursos financeiros – uma espécie de chantagem com o próprio risco. Em abril de 1996, a Ucrânia recebeu dos sete países mais desenvolvidos do mundo uma proposta de 2,3 bilhões de dólares para fechar os reatores ativos de Chernobyl. Alegou que teria de compensar a perda importando eletricidade e pediu 5 bilhões de dólares. Não houve negócio. Será difícil esquecer Chernobyl

Para saber mais

Nuclear Power Reactors in the World, IAEA, Viena, 1996.

Tchernobyl, Dix ans Déjà, AEN-OCDE, Paris, 1996.

Our Radioactive Legacy, Greenpeace, London, 1996.

Continua após a publicidade

O que é Política Nuclear, Ricardo Arnt, São Paulo, Brasiliense, 1983.

Agência Internacional de Energia Atômica (Viena) http//www.iaea.or.at

Estados Unidos

Têm 109 reatores funcionando. Desde o acidente de Three Miles Island, em 1979, a expansão nuclear foi congelada. Têm três depósitos lotados de lixo radioativo. A Califórnia rejeitou um projeto federal para estocar dejetos.

França

Têm 56 reatores gerando 75% da eletricidade nacional. Está na ponta no tratamento do lixo atômico. Lidera o ranking dos exportadores.

Canadá

Maior exportador de urânio do mundo. Desenvolveu uma tecnologia avançada de reatores. Tem 21 usinas produzindo 19% da eletricidade do país.

Grã-Bretanha

Tem 35 reatores gerando 25% de sua eletricidade. Reprocessa e armazena dejetos vitrificados. Tem grandes reservas de petróleo, gás e carvão.

Os do contra

A Itália fez um plebiscito e fechou seus quatro reatores. A Suécia quer fechar suas doze usinas até 2010. A Alemanha endureceu as regras de segurança e fechou todas os reatores da antiga Alemanha Oriental

Rússia

Tem as piores usinas do mundo. Os problemas de manutenção são crônicos. Há tráfico ilegal de urânio e de materiais radioativos.

Japão

Têm 51 reatores gerando 30% da eletricidade. Reprocessa combustível na França e na Inglaterra.

China

Têm três reatores. É o maior importador de tecnologia nuclear. Comprou um pacote de dez reatores franceses por 25 bilhões de dólares.

Há 442 reatores funcionando em 36 países

Nuclear, não obrigado

Sete países europeus fecharam reatores e cancelaram os programas nucleares.

Em novembro de 1987, sob impacto da explosão de Chernobyl, os italianos foram às urnas para um plebiscito. Votaram não à energia nuclear. Meses depois, foi fechada a usina de Latina. As obras dos reatores de Caorso, Trino e Montalto di Castro também foram paralisadas. O último acabou virando uma termoelétrica a gás natural.

Os italianos não foram os únicos. Depois de Chernobyl, Alemanha, Suíça, Suécia, Finlândia, Bélgica, Holanda e Espanha decidiram pelo mesmo não. Boa parte da opinião pública da europa ocidental não está disposta a correr o risco.

Antipatia industrial

Na Suécia, o parlamento votou uma lei prometendo fechar as doze usinas do país até 2010. Mas deputados e ecologistas enfrentam a oposição poderosa de sindicalistas e empresários. O argumento é que parar reatores e buscar alternativas energéticas custa de 20% a 30% a mais do que mantê-los funcionando. Para economizar o equivalente, teriam que ser cortados empregos. Daí a antipatia da indústria pelas causas ecológicas.

Na Alemanha, a solução foi híbrida. Apesar de não haver decisão oficial proibindo novas instalações – e de vinte reatores continuarem operando –, nenhum outro foi construído desde Chernobyl. Os alemães endureceram as regras de segurança e fecharam todas as nove usinas da antiga Alemanha Oriental. Em compensação, ficaram mais dependentes do carvão, que exige um alto subsídio do governo. O emprego de milhares de mineiros é mantido, mas a poluição gerada anula a vantagem ecológica do abandono do átomo.

O vaga-lume atômico

O programa nuclear brasileiro sobrevive graças a um paradoxo: gastou demais para ser desativado.

Em novembro de 1976, o Brasil assinou um acordo na Alemanha com a empresa KWU, do grupo Siemens, para a construção de oito reatores nucleares. Em vinte anos, nenhum ficou pronto. A usina Angra 2, em Angra dos Reis (RJ), consumiu 5,8 bilhões de dólares e requer mais 1,2 bilhão para ser concluída. As obras foram retomadas em março passado e deverão acabar, diz-se, em 1999. No total, serão 7 bilhões de dólares por um reator de 1 300 megawatts que pode ser adquirido pronto, hoje, por 1,5 bilhão de dólares. Na praia de Itaorna, ao lado de Angra 2, jaz, quase sempre desligado, o reator de Angra 1, anterior ao acordo com a Alemanha. É um PWR-Westinghouse, uma espécie de Fusca 1967, comprado nos Estados Unidos naquele ano. Seu apelido é vaga-lume. Quando está ligado, gera 650 megawatts. Mas como o nome indica, vive piscando. Mais apagado que aceso. Tem um dos mais baixos índices de eficiência do mundo.

Coleção de erros

O programa nuclear brasileiro coleciona atrasos, multas, juros e erros como as fundações mal calculadas de Itaorna – que, afinal, quer dizer “pedra mole” em Tupi. “Angra 2 é um desses casos além do ponto de não-retorno”, diz o ex-ministro do Meio Ambiente, José Goldemberg. “Desistir significa assumir um prejuízo maior do que o necessário para concluir”. Essa também é a opinião de Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): “Apesar do desperdício monstruoso de dinheiro, concluir Angra 2 tem alguma racionalidade.”

Mas, se serve para Angra 2, o raciocíno não serve para Angra 3 que a Eletrobrás também pretende construir em Itaorna, sob o argumento de que 40% dos equipamentos já foram comprados. “Eles que vendam tudo para o Irã ou a Índia”, aconselha Goldemberg. “Angra 3 é um absurdo”, concorda Pinguelli. “Não tem justificativa energética. São os alemães que estão pressionando o Brasil para comprar a mercadoria.”

Nesses vinte anos de más experiências, a maior conquista foi feita pelo Centro Experimental de Aramar, da Marinha, em Iperó (SP), que desenvolveu um método próprio de enriquecimento de urânio em ultracentrífugas. Com isso, garantiu o abastecimento dos reatores e livrou o país do método alemão de enriquecimento por jet nozzle, que, na verdade, nunca funcionou. Em 1990, o Brasil dispunha de 10 562 profissionais na área nuclear. Hoje tem 8 275. “Reina desânimo e desmotivação”, diz o professor de Energia Nuclear José Carlos Borges, da UFRJ. Questões tecnológicas importantes, como a do lixo radioativo, permanecem abertas. Até o direito básico da população de Angra à segurança está mal resolvido – ou pelo menos mal explicado. Para os críticos, o Plano de Evacuação da cidade em caso de acidente é uma ficção. Tem tudo para dar errado.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.