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Os trunfos e problemas da Starlink, a internet via satélite de Elon Musk

A ideia de oferecer banda larga via satélite para qualquer lugar do planeta parecia um plano futurista. Virou realidade. E hoje dois terços dos satélites operacionais na órbita da Terra pertencem à rede de Musk. Entenda o avanço, e os perigos, que isso representa.

Por Bruno Vaiano
Atualizado em 18 set 2023, 10h25 - Publicado em 15 set 2023, 06h01

Texto: Bruno Vaiano | Edição: Alexandre Versignassi
Design: Luana Pillmann | Ilustração: Raul Aguiar

Dizem que foguete não dá ré. E é verdade. Ao longo do século 20, eles foram veículos descartáveis, que faziam viagens só de ida. Os mais comuns consistiam em três partes: primeiro estágio, segundo estágio e a nave espacial em si (a cápsula onde ficam os tripulantes ou a carga).

O primeiro estágio, com motores maiores e mais combustível, faz a força bruta de tirar a engenhoca do chão e levá-la a mais ou menos 100 km de altitude. É como um carro engatando a primeira marcha em uma subida íngreme. Após transpor a resistência inicial da gravidade, esse primeiro estágio – que perfaz até metade do comprimento do foguete – se desacopla e cai de volta na Terra. Vira lixo.

Então os motores menores do segundo estágio entram em ação e põem o conjunto de vez no espaço, para depois se soltarem (dá-lhe mais lixo) e deixarem a pequena cápsula seguir sozinha – por inércia, já apontada na trajetória certa para o destino final.

Sai caro jogar esse equipamento todo fora após uma única queima. E o custo proibitivo é mais um dos vários motivos pelos quais a exploração (em geral, científica ou militar) do vácuo começou como uma exclusividade dos governos americano e soviético no início da Guerra Fria. Com o passar das décadas, porém, os foguetes foram se tornando relativamente acessíveis à iniciativa privada.

Nota-se pelos números. Vamos aos dados: desde 1957, quando a URSS pôs o Sputnik em órbita, a humanidade lançou exatos 15.946 objetos para o espaço. Entre 1965 e 2015, o número de artefatos postos na órbita da Terra permaneceu estável entre 100 e 150 por ano.

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Menos de 10% desses equipamentos são veículos destinados à Lua, a Marte e a outros pontos do Sistema Solar. A maioria desses foguetes decolou para lançar satélites artificiais, que fazem de tudo: GPS, imagens aéreas do Google Maps e, claro, dar acesso a internet em áreas remotas – onde não há conexão via cabo ou fibra óptica. No começo de 2023, 5.280 dos 6.718 satélites operacionais eram privados, e essa proporção tende a aumentar.

Infográfico ilustrado com representações da Sputnik 1, o Telescópio Espacial Hubble e a Estação Espacial Internacional, junto a um gráfico com dados do número de satélites lançados por ano desde a Sputnik 1.
(Raul Aguiar/Arte/Superinteressante)

Esses 6.718 objetos operacionais representam só 67% do total que existe em órbita. Atualmente, o Escritório das Nações Unidas para Assuntos do Espaço Sideral (UNOOSA) lista 11.330 (por falta de uma palavra melhor) coisas na órbita da Terra. Muitas são carcaças de satélites desativados, várias delas abandonadas no que se chama de “órbitas-cemitério”, os ferros-velhos do espaço.

Infográfico ilustrado com dados sobre a quantidade de satélites em órbita, seus usos operacionais e como são operados por empresas privadas com fins lucrativos.

O foguete deu ré

Os números ficaram empacados em 100 ou 150 lançamentos anuais até 2015, quando a SpaceX de Elon Musk pousou o primeiro estágio de um foguete Falcon 9 – e pôde reaproveitá–lo para lançamentos subsequentes. Foi uma revolução. Pela primeira vez, um foguete pousou, pronto para outra.

Desde então, a empresa fez 247 lançamentos de Falcon 9, 181 deles com foguetes que já tinham voado. 81% dos primeiros estágios (201, em números absolutos) aterrissaram sem percalços. Ir ao espaço ficou mais barato do que nunca. E a média anual de satélites lançados pela humanidade aumentou no mínimo dez vezes nos últimos quatro anos, de 150 para algo como 1.500. O recorde foi 2022, com 2.474.

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Boa parte da responsabilidade por esse número é do próprio Musk. 71% desses 2.474 satélites de 2022 – 1.775, ao todo – pertencem à rede de internet via satélite Starlink. Um Falcon 9 decola aproximadamente a cada 15 dias com até 60 deles a bordo. Eles começaram a ser lançados em 2019; dados de julho indicam que já há 4.519 em órbita, e 4.487 estão operacionais. O plano final são 12 mil até 2027: 7.500 satélites a 350 km de altitude; 1.600 a 550 km de altitude; 2.800 a 1.150 km de altitude.

Infográfico ilustrado com dados sobre quantos satélites da Starlink estarão em órbita até 2027, de acordo com altitudes (1.150 km, 550 km e 350 km).
(Raul Aguiar/Arte/Superinteressante)

Quando todos eles estiverem no céu – cada um com 260 kg e 2,8 m de comprimento –, será possível acessar banda larga de qualquer lugar do mundo, sem cabos ou fibra óptica, usando uma antena do tamanho de uma pizza e pagando mensalidades não muito maiores que as de um plano de internet comum. Uma revolução considerando que 3,3 bilhões de pessoas (43% da população mundial) não têm acesso à rede.  

A constelação metálica de Elon Musk representa muita coisa para muitas áreas do conhecimento. O enxame de Starlinks se tornou o inimigo número um dos astrônomos, está gerando um congestionamento celeste que piora as (já grandes) dores de cabeça dos operadores de satélites, tem implicações legais que desafiam especialistas em direito, mudou o rumo da guerra na Ucrânia e é, talvez, o maior avanço da história em termos de democratização do acesso à internet. Vamos entender tudo isso.

Ilustração de pessoas vendo os
(Raul Aguiar/Superinteressante)

Bem na foto

Em 2019, quando o primeiro lote de satélites Starlink subiu, astrônomos começaram a dar entrevistas prevendo que as navezinhas em órbita baixa atrapalhariam a observação do espaço em uma escala inédita. Milhares de satélites depois, o problema virou rotina. A chance de uma foto do telescópio espacial Hubble aparecer com um risco branco (um satélite passando na frente e refletindo luz do Sol na direção da lente) aumentou de 3,7% em 2002 para 5,9% em 2021.

Ao todo, 2,7% das fotos do Hubble tiradas com 11 minutos de exposição já são arruinadas por gadgets orbitais como os de Musk. Como a luz de astros distantes é muito tênue, o obturador da câmera precisa passar um tempão aberto para captar luz – o que multiplica as chances de algo se mover na frente.

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Qualquer solução para esse problema precisa rolar na base da conversa, já que não há uma regulamentação internacional para lidar com a superpopulação de satélites privados. Essa é uma briga inédita.

“O problema persiste e tende a se agravar”, diz Hélio Jaques, presidente da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB) e professor no Observatório do Valongo, no Rio de Janeiro. “Os acordos internacionais que balizam a exploração espacial estão defasados (…) foram firmados entre países, pois a exploração era realizada pelos governos. Não está claro para mim se as empresas privadas estão vinculadas a esses acordos. Por isso mesmo, não há um tribunal que julgue o caso. A ONU trata de países, não de empresas.”

O problema da poluição vai além do óbvio. É que nem todo telescópio é como o Hubble, que faz fotos usando a mesma luz que nossos olhos podem ver. As ondas eletromagnéticas que nós enxergamos ocupam só uma janela estreita no amplo espectro de ondas que existem. As que são ligeiramente maiores que a cor vermelha se chamam radiação infravermelha e sua pele as detecta como calor, enquanto as mais curtas que a cor violeta são a radiação ultravioleta (UV), que queima sua pele na praia. Também existem ondas de rádio, TV e wi-fi, bem como as micro-ondas que esquentam comida.

Tudo isso é luz, ainda que invisível, e os astros emitem a gama toda. Por isso construímos telescópios capazes de observar em infravermelho, ultravioleta e rádio, e então traduzimos os dados que eles geram em imagens.

Os satélites Starlink também interferem com observações em infravermelho, porque esquentam ao absorver luz do Sol, e em rádio – porque o próprio sinal de internet que eles transmitem é rádio, e atrapalha os sinais parecidos que chegam de fenômenos naturais espaço afora. O problema vai piorar cada vez mais conforme a demanda por internet ocupar regiões do espectro que antes estavam reservadas à ciência.

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Pense no espectro eletromagnético como uma estrada com várias faixas. Em cada faixa, trafegam ondas de um certo comprimento. E cada comprimento é reservado a uma necessidade: astronomia, internet, TV…

Quando faixas demais estão carregadas por uma certa demanda, é preciso invadir outras que já estão ocupadas. E aí os telescópios não conseguem mais separar quais ondas são um torrent de filme pirata e quais são radiação emitida por um buraco negro supermassivo a 11 bilhões de anos-luz daqui.

Para resolver a questão específica dos comprimentos de onda visíveis, a SpaceX prometeu revestir os satélites com o material menos reflexivo possível. O problema é a parte do “possível”. Não dá para pintar o dito-cujo de preto fosco – ele superaquece e para de funcionar.

“Lá em cima, o ambiente é muito hostil. Você vai de -80 ºC para 200 ºC em uma órbita”, diz Ronan Chagas, engenheiro de Sistemas Espaciais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Às vezes, o material precisa refletir, para o satélite não absorver toda a energia emitida pelo Sol.” Para piorar, boa parte da superfície de um Starlink consiste no painel solar que gera a energia elétrica usada para mantê-lo funcionando. E aí, não tem jeito: todo painel solar reflete luz.

A dor de cabeça dos astrônomos é só a cereja no bolo dos problemas de trânsito na órbita da Terra. Conforme o número de objetos ao nosso redor aumenta, cresce também o risco de colisões entre eles. Por isso, os operadores trabalham com margens de erro baixíssimas.

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De acordo com Ronan, uma probabilidade de acidente superior a 1% já é considerada alta e justifica acionar brevemente os propulsores de um satélite para desviá-lo. As manobras são combinadas entre os responsáveis pelos aparelhos, o que tornao controle de tráfego espacial uma conversa internacional permanente.

A margem de erro é baixa porque as consequências são catastróficas. O limite inferior de detecção de um objeto no espaço é de 10 cm. Isso basta para acompanhar a trajetória de aparelhos inteiros, mas não de destroços.

Se ocorrer uma colisão, pedacinhos de satélite indetectáveis ficarão à solta e começarão a atingir outros satélites; numa reação em cadeia com potencial para transformar em realidade o filme Gravidade (aquele em que Sandra Bullock e George Clooney são astronautas tentando sobreviver a um engavetamento cósmico). Sempre que possível, então, o ideal é descartar satélites jogando-os de volta na Terra: o atrito com a atmosfera pulveriza o aparelho, evitando a poluição cósmica.

Ilustração de uma pessoa trabalhando com internet, viabilizada por meio de uma antena móvel da Starlink acoplada no teto do seu carro.
(Raul Aguiar/Superinteressante)

Internet off-road

Pedro Paulo Pena é coordenador de Educação de Jovens e Adultos (EJA) – aulas com os conteúdos da 1ª à 9ª série para pessoas com mais de 15 anos que não fizeram o Ensino Fundamental.

Ele trabalha na Secretaria de Educação do município de Jacareacanga, sudoeste do Pará. Trata-se de um pedaço da Amazônia maior que a Bélgica com apenas 41 mil habitantes; 10 mil deles, indígenas. O deslocamento entre a zona urbana e uma grande aldeia da etnia Munduruku chamada Waro Apompo, às margens do Rio Cururu, usa 200 litros de gasolina e demora até 8 horas.

“A aldeia não tem energia elétrica. Eles usam um gerador, ligado todos os dias das 6h da tarde às 10h da noite”, diz Pena. Em junho deste ano, os indígenas procuraram a Secretaria pedindo ajuda para obter uma antena Starlink, já que só é possível comprá-la pela internet, com cartão de crédito. “A internet que o governo oferece por meio do programa Educação Conectada não é boa, trava.”

Pena é parte de um grupo de Facebook com 2,6 mil usuários e entusiastas brasileiros da Starlink – quase todos felizes com o acesso à internet, ainda que, em alguns casos isolados, obstáculos geográficos como morros ou montanhas perto de casa impeçam a conexão.

A tendência é que, com cada vez mais satélites no céu, obstáculos locais façam menos diferença, já que as antenas terão mais oportunidades de interagir com a rede lá em cima. Por enquanto, o CNPJ que a Starlink abriu no Brasil é simbólico: serviu para o corre-corre burocrático de autorizar a implantação do serviço por aqui, mas não fornece suporte técnico.

A Anatel liberou a Starlink no Brasil em janeiro de 2022. O kit com antena, cabo, roteador etc. custa R$ 2 mil (dependendo da promoção, menos), mais frete e impostos de importação, que podem ultrapassar os R$ 1 mil. O preço do pacote mais barato estava em R$ 184 na data da conclusão deste texto. As mensalidades variam conforme a necessidade: há planos residenciais e comerciais, bem como planos móveis, mais caros, para quem pretende andar com a antena em carros, ônibus ou aviões.

Renan Araujo e Geisy Batista, por exemplo, pagam mais caro: R$ 280. Eles formam um casal de nômades digitais, então precisam de um pacote que permita acessar a rede a partir do carro (a dupla viaja o Brasil há seis meses enquanto mantém empregos CLT, e publica a jornada no Instagram @turinaestrada).

“Fiz uma adaptação para usar a Starlink em movimento, com placa solar, bateria auxiliar e controladores de carga”, explica Renan, que montou um motorhome do zero para a viagem. “A ideia é estacionar, abrir nosso telhado e trabalhar. Mas usamos bastante a Starlink em movimento, também. Cancelamos nosso plano de celular e ficamos só com ela.”

Bacana. Mas esse copo tem um lado meio vazio. Permitir acesso à banda larga em qualquer lugar do mundo concentra uma quantidade impensável de poder nas mãos de Musk.

“Se amanhã ele apertar um botão errado ou, simplesmente, bloquear a conexão de um país inteiro, muita coisa vai parar. Afinal, à medida que ele for barateando a tecnologia, as pessoas vão migrar para ela”, diz a advogada Elisângela Menezes, especialista em Direito Digital.

É claro que isso vale para qualquer empresa que domina uma fatia do mercado de telecomunicações. Mas a internet não é tão regulamentada quanto TV ou a telefonia (que são concessões, ou seja: o governo autoriza uma empresa privada a fornecer um serviço de interesse público).

O exemplo extremo da submissão de um país a Musk não vem daqui, mas da Ucrânia. Apenas dois dias após o começo da guerra, em fevereiro de 2022, o empresário liberou acesso à rede em território ucraniano e começou a doar antenas para que civis e militares se conectassem.

Três meses depois, em maio, 150 mil ucranianos já dependiam dele para acessar a internet. Os militares logo começaram a usar a Starlink para operar drones de reconhecimento e ataque. É verdade que os EUA e outros países aliados, desde o início, financiaram 30% das mensalidades e 85% das antenas – ou seja, a medida não foi caridade completa por parte da SpaceX. Mas todos os envolvidos, inevitavelmente, estavam na mão de Musk. E aí, não deu outra.

Em fevereiro de 2023, a SpaceX se deu conta de que o uso pelos militares havia se tornado insustentável politicamente e o restringiu. Além disso, requisitou que o governo americano passasse a pagar integralmente as mensalidades ucranianas que ainda estavam saindo de graça.

Musk tuitou: “A SpaceX não está pedindo um ressarcimento por gastos passados, mas não podemos financiar o sistema atual indefinidamente e mandar milhares de outras antenas que usam até cem vezes mais dados que uma casa comum. Não é razoável”.

Não há motivo para achar que ele tenha feito isso por má vontade ou simpatia aos russos. É óbvio que operar um sistema desse tamanho de graça dá prejuízo. Mas esse é um caso raro em que um Estado se viu imobilizado por uma empresa privada, e não o contrário. Tudo isso pede uma regulamentação mais sólida, e internacional.

Porque Musk tem poderes que, ao longo de todo o século 20, estiveram nas mãos de governos. De foguetes que pousam a internet de banda larga universal, a SpaceX está na vanguarda da exploração do espaço – a fronteira que nossa civilização ainda não transpôs.

As ações de Musk, hoje, são tão influentes quanto eram as decisões de exploradores portugueses e espanhóis nas Grandes Navegações, quando o Atlântico tinha o lugar do céu como limite inexplorado da humanidade. Eles criaram o mundo como o conhecemos. Daqui a cinco séculos, Musk talvez seja estudado como Colombo ou Cabral são hoje – pelo que ele fizer de bom e de ruim. A aniquilação dos povos nativos americanos mostra que a catástrofe é um desfecho comum. Mas ela não precisa ser inevitável. 

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