Fabio Schivartche
Derek Jacobs é um garoto americano de classe média como outro qualquer. Estuda, incomoda os vizinhos tocando bateria, participa de competições de natação e gosta de histórias de ficção científica. Enfim, um garoto normal… não fosse por um detalhe pequenino, do tamanho de um grão de arroz: um chip implantado no braço esquerdo. A operação, realizada em maio deste ano num hospital da Flórida, durou menos de dois minutos, tempo para a anestesia local, a injeção e um curativo. Insistente, ele convenceu a mãe, Leslie, e o pai, Jeffrey, a também implantarem o VeriChip, um completo arquivo médico que pode até salvar uma vida. Imagine uma vítima de um acidente de carro que é levada, inconsciente, ao hospital mais próximo. Se estiver usando o chip e o hospital tiver o scanner adequado para lê-lo, a pessoa não correrá o risco de ser medicada com drogas que possam lhe causar alergias. Parte gente, parte máquina, os Jacobs se orgulham de ser a primeira família ciborgue em todo o mundo.
Para quem não se lembra ou não viveu os anos 70, Cyborg, O Homem de Seis Milhões de Dólares, era um seriado de TV que fazia o mundo sonhar com as novidades tecnológicas do astronauta Steve Austin – após um acidente de avião quase fatal, ele foi transformado num homem biônico. Uma operação deu-lhe um olho mecânico e novos membros, que lhe permitiam correr mais que nenhum outro ser humano e garantiam uma força descomunal.
Os ciborgues reais que surgiram desde então eram pessoas que tinham as partes mutiladas substituídas por próteses de movimentos limitados. Nada dos superpoderes do astronauta da TV. Pior que isso, nenhuma discrição. Os membros postiços se destacavam nas figuras de seus usuários, quando o ideal seria que ninguém os percebesse.
A invisibilidade desses componentes é justamente o objetivo dos novos projetos de partes biônicas. Você acha que o exemplo dos Jacobs é apenas um detalhe? Acha que a fusão de homem com máquina ainda vai demorar para se tornar realidade? Hum… Então, conheça o cientista britânico Kevin Warwick , que, com um chip implantado no braço, ligou seu sistema nervoso a um computador. Sua pesquisa, por mais incrível que pareça, tem por finalidade possibilitar que pessoas com ruptura de medula adquiram movimentos das mãos e até andem novamente, pela estimulação dos músculos por impulsos elétricos. Aos 48 anos, ele diz que isso é só o começo. “Ainda quero ver pessoas se comunicando só pelo pensamento”, afirma. Ciborgue por ciborgue, o projeto de Warwick custou 12,5% do que foi gasto na recauchutagem do fictício Steve Austin: 750 mil dólares.
No caso de Jeffrey Jacobs, o pai biônico, o chip guarda informações sobre seu problema na coluna e seu histórico de câncer. Fora do laboratório, ainda não há estabelecimentos médicos preparados para ler os chips dos Jacobs, mas 13 hospitais da região já se prontificaram verbalmente a comprar os scanners de mão. Até o fim desta década, será possível medir o pulso, a temperatura e a concentração de açúcar no sangue com essa minúscula cápsula de silicone. O VeriChip, desenvolvido pela empresa Applied Digital Solutions, já está sendo apontado como solução para outro problema: a violência urbana. Em março deste ano, a empresa assinou um acordo para a distribuição do dispositivo aqui mesmo no Brasil. O motivo: encontrar pessoas seqüestradas, rastreando-as por GPS pela freqüência de rádio emitida pelo aparelho. A empresa californiana MedicAlert qualificou o uso dos chips como “uma séria questão ética”, uma vez que existem outros métodos não-invasivos de identificação e proteção.
Como no caso do ciborgue ficcional, grande parte dessas invenções é criada por necessidades médicas imediatas – isto é, casos em que o dispositivo tecnológico pode, a curto prazo, melhorar e até salvar a vida de doentes terminais. Foi assim que Robert Tools, um americano de 59 anos, ganhou, em julho de 2001, o AbioCor – a primeira geração de coração artificial, feito de plástico e titânio e com uma bateria sem fio presa à cintura. Ele sofria de diabetes e de problemas cardíacos e teria, no máximo, um mês de vida, garantiram os médicos que sugeriram a operação. Tools topou – e viveu 151 dias. Morreu por causa de um sangramento intestinal não relacionado com o AbioCor. O Food and Drug Administration (FDA), órgão americano que aprova e regula a produção de medicamentos e equipamentos relacionados, deu sinal verde para mais dez implantes.
Maestro, música
Os implantes de audição para surdos – criados pelo professor Jay Rubinstein, da Universidade de Iowa –, podem parecer, aos olhos de leigos, com os aparelhos para surdez que muitos idosos usam hoje. Mas o dispositivo é uma maravilha da tecnologia. Ele transmite as ondas sonoras para a caixa craniana e as converte em um padrão que nosso cérebro possa compreender, estimulando os nervos auditivos. Testes começaram em junho de 2001 com 30 pacientes. Alguns, afirma Rubinstein, já foram capazes de diferenciar o som de uma guitarra do de um piano, tocando a mesma nota. O método funciona melhor se for adotado antes de o paciente completar cinco anos de vida, enquanto o cérebro não perdeu a capacidade de processar os sons. Nesses casos, é possível recuperar até 80% da audição.
As próteses neurais são ainda mais incríveis em deficientes visuais. Pacientes cegos há mais de 18 anos conseguiram guiar um carro numa pista com obstáculos, em testes feitos pelo Instituto Dobelle, um dos laboratórios que pesquisam a novidade. Os pacientes tiveram implantados pequenos eletrodos dentro do crânio, que recebem sinais de uma videocâmera presa nos óculos. O sistema estimula o córtex, a parte do cérebro responsável pela visão. Críticos dizem que toda essa parafernália não proporciona aos deficientes mais que uma experiência visual muito distante da de pessoas com visão normal, algo como luzes e formas mais ou menos delineadas. Os cientistas rebatem, dizendo que alguns pacientes chegaram até a ver cores. Outros, a ler cartas com letras bem grandes. A nova geração de aparelhos para cegos, no entanto, promete ser ainda mais eficaz, enviando impulsos elétricos para transmitir imagens digitalizadas diretamente na retina, como uma câmera digital envia imagens para a televisão na sala da sua casa. Mas, mesmo os entusiastas, concordam que não se devem criar falsas expectativas e prometer a cura para a cegueira, uma vez que as pesquisas estão só no começo.
Outro exemplo de sucesso inicial são os marcadores de ritmo cerebral, testados ao longo dos anos 90 em pacientes com mal de Parkinson e outros distúrbios que provocam tremores pelo corpo. Agora, os laboratórios estão desenvolvendo equipamentos que silenciam neurônios defeituosos, por meio do implante de eletrodos no cérebro, acionados por um gerador preso ao peito do paciente. Com uma grande vantagem: se não der certo, é só retirar o implante. Experiências feitas nos últimos três anos nos Estados Unidos deram novo ânimo para os implantes de próteses que ligam computadores ao sistema nervoso humano, em processo semelhante ao adotado pelo ciborgue britânico Kevin Warwick. O grupo do neurocirurgião Ross Davis, da Clínica de Engenharia Neural, no Estado de Maine, está tratando pacientes com problemas no sistema nervoso central. Alguns portadores de esclerose múltipla estão sendo capazes de controlar, com grande acuidade, as funções musculares.
Kit biônico
Além dos sistemas eletrônicos introduzidos no organismo, o homem biônico do futuro contará com uma série de mecanismos acoplados à própria pele, à vestimenta ou a acessórios como brincos e óculos. O computador, por exemplo, será uma extensão do corpo humano. Um dos projetos em andamento é o MIThril, desenvolvido no Massachusetts Institute of Technology (MIT) pela equipe do cientista Steven Schwartz. Trata-se de um avançado microprocessador, com modem para a comunicação do corpo com a internet, além de um sistema de GPS. A versão acabada do MIThril vai interagir com o usuário e projetar informações nas lentes de óculos, ou diretamente na retina, criando um ambiente de realidade aumentada (leia mais na reportagem “Somente para seus olhos.
No cenário proposto por Schwartz, ninguém mais vai precisar se preocupar com a própria agenda. Na volta ao trabalho, por exemplo, o computador poderá projetar um mapa com o melhor caminho, desviando dos congestionamentos. E uma mensagem piscará assim que você passar ao lado de um supermercado: “Compre cerveja para a festa do João, hoje às 21 horas”. E tudo isso sem que você tenha feito qualquer solicitação, uma vez que essa impressionante máquina aprenderá observando seus hábitos e tomando notas por conta própria, sem necessariamente ser alimentada pelo usuário com dados externos. “Ninguém terá de ficar pensando no que fazer com o computador ao chegar em casa, porque ele estará interligado a nós”, afirma Schwartz.
Ainda há muitas barreiras a serem vencidas no projeto. Está para nascer um computador esperto o suficiente para perceber nuanças de humor e tomar decisões que não tenham sido explicitadas. Suponhamos que você tenha um bate-bola marcado com os colegas para depois do expediente. No meio do caminho, começa a chover. Você, sem falar nada, decide tomar o rumo de casa, que, por coincidência, fica na mesma direção do campinho. Como ninguém deu nenhuma pista da desistência, o computador provavelmente continuará expondo táticas de jogo e as fichas dos cabeças-de-bagre do escritório.
Também não se chegou a uma conclusão sobre o meio de conduzir a energia elétrica. Testes iniciais do MIThril foram feitos com os circuitos eletrônicos ligados às roupas dos usuários. Nas projeções mais mirabolantes, a própria pele humana seria usada como condutor. Mas a equipe do MIT não conseguiu ainda vislumbrar um meio de fazer com que essa tecnologia seja ao mesmo tempo eficiente e confortável. Afinal, ela está sendo desenvolvida para descomplicar a vida das pessoas, não para restringir seus movimentos.
O uso do corpo humano como transmissor de energia é a base do novo projeto da Nippon Telegraph and Telephone Corp., a maior empresa japonesa de telecomunicações: trocar e-mails com um simples aperto de mãos, sem fios ou cabos. Quando coisas assim forem possíveis, talvez ninguém mais se preocupe com máquinas capazes de superar a inteligência humana. No fim das contas, as máquinas serão parte de nós mesmos.
O kit do homem-máquina
Implantes e acessórios que serão acoplados ao corpo do ciborgue
Olhos
Chip implantado no globo ocular vai substituir a retina em deficientes
Óculos
Vão funcionar como monitor de computador
Pele
Alternativa para a condução de energia em sistemas computacionais acoplados ao corpo
Ouvidos
Aparelhos superpotentes vão devolver a audição a surdos
Garganta
Sensores implantados no pescoço vão substituir as cordas vocais
Chip subdérmico
Revestido por uma cápsula plástica e dotado de antena, vai armazenar e transmitir dados pessoais – como o histórico médico –, além de localizar o portador por GPS
Músculos
Próteses alimentadas por bateria poderão ser implantadas em acidentados ou portadores de doenças degenerativas