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Testamos o Vision Pro

O aparelho de realidade virtual da Apple é o primeiro capaz de gerar imagens perfeitas. Trata-se de um salto tecnológico, protegido por mais de 5 mil patentes. Mas ele tem pela frente um dilema, que até hoje ninguém conseguiu resolver. Saiba qual – e veja como é a experiência de usar o headset.

Por Bruno Garattoni, de Cupertino (Califórnia)
Atualizado em 22 jul 2023, 13h21 - Publicado em 20 jul 2023, 15h10

OO prédio da Apple é um pouco maior do que o Pentágono: sua circunferência externa, com 1,6 km, comportaria todo o centro militar dos EUA. Mas nem parece.

Enquanto o Pentágono é uma presença dominante em Washington DC (a cidade tem até um bairro chamado Pentagon City), o quartel-general da Apple é surpreendentemente pouco visível para quem anda por Cupertino, a 1h30 de carro de São Francisco.

Porque ele, que se chama Apple Park, é cercado por verde: são ao todo mais de 9.000 árvores e plantas, de 309 espécies nativas. Do lado de fora, você só enxerga pedaços do teto e um aviso dizendo que ali é proibido voar com drones.

Mas estamos do lado de dentro. É meu segundo dia no Apple Park, e chegou a hora de experimentar o Vision Pro – aquele headset de realidade virtual, do qual você deve ter ouvido falar, que vai custar US$ 3.500 e será lançado nos EUA ano que vem.

O clima aqui é bem diferente da véspera, quando o CEO Tim Cook revelou o produto a uma multidão de funcionários, jornalistas e programadores.

A apresentação foi no anel interno da sede, aonde você chega depois de passar por fileiras de escritórios, atravessar o refeitório com capacidade para 4.000 pessoas, e cruzar dois grandes portais de vidro, com incríveis 16 metros de altura – eles pesam 180 toneladas cada, e foram fabricados pela empresa alemã Seele. Nos corredores, um aviso curioso: “Cuidado ao abrir as portas externas: vida selvagem presente”, e o desenho de uma família de patinhos.

Hoje os visitantes já foram embora e está tudo tranquilo, com funcionários trabalhando e circulando (não todos; a imprensa dos EUA tem noticiado que os empregados da Apple relutam a voltar ao trabalho presencial).

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Restaram alguns poucos jornalistas, convidados para testar o Vision Pro. Com certo atraso, um funcionário aparece dirigindo um carrinho de golfe.

Embarco, atravesso o parque e começo a subir uma leve colina, deixando o prédio central para trás. Passo por quadras de basquete e um enorme gramado. Chego a uma construção retangular, erguida para as demonstrações do Vision Pro. Daqui para a frente, não é permitido fotografar nem filmar.

Foto de uma mulher usando o Vision Pro.
O headset tem uma tela externa, que exibe os olhos do usuário. Mas a Apple não quis mostrá-la no teste. (Apple/Divulgação)

Se você já viu algum vídeo das apresentações de produtos da Apple, talvez tenha reparado no seguinte: a aparência dos funcionários, que não têm um fio de cabelo fora do lugar.

Suas roupas, gestos, pronúncia, tudo parece minuciosamente ajustado – tanto quanto o design dos produtos. Aqui no local da demo também é assim, só que elevado à décima potência: as pessoas falam baixinho e devagar, com os olhos brilhando e uma vibe propositalmente zen – só faltava vestirem batas brancas.

Na hora me lembro do “campo de distorção da realidade”: expressão criada em 1981 pelo engenheiro Bud Tribble, um dos pais do Macintosh, para definir de forma bem humorada a enorme capacidade de persuasão de Steve Jobs.

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Me entregam um iPhone para que eu escaneie meu rosto e orelhas. Essas informações serão usadas para medir a distância entre meus olhos, e ajustar automaticamente a posição das lentes do Vision Pro (o que em outros headsets precisa ser feito manualmente, girando um botão), e também para algo bem impressionante – mais sobre isso daqui a pouco.

Depois do escaneamento, que leva poucos segundos, entro numa salinha para falar com a optometrista de plantão. Ela me pergunta se tenho miopia ou astigmatismo. Não. Mas, para quem tem, o Vision Pro será vendido com lentes personalizadas, que “grudam” magneticamente no headset e serão fabricadas pela empresa alemã Zeiss.

Volto ao ambiente principal, onde há dois Vision Pro expostos – e ninguém mexendo neles. A parede do fundo, com uns 20 metros de largura e o símbolo da Apple no meio, é feita de um material bem estranho, entre o metal e o cimento queimado. O que será?

Assim que penso nisso, alguém me chama; e numa das laterais, que pareciam placas inteiriças de madeira, vejo uma fresta se abrir.
Do outro lado, está o gadget mais sofisticado de todos os tempos – cujo desenvolvimento, segundo a Apple, rendeu mais de 5 mil patentes.

 

Imagem do Vision Pro, com um botão de “Clique aqui” que redireciona para o infográfico completo sobre o hardware dele.
(Arte/Superinteressante)
I

Imagine a sala de uma casa, só que desenhada pela Apple. Tem sofá, plantas, quadros, objetos de decoração, foi montada para parecer casual e realista – mas também dá para perceber que foi projetada com exatidão, com iluminação calculada e posições precisas.

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O Vision Pro está na mesinha de centro. Enquanto uma funcionária me apresenta o aparelho, e antes que me autorize a pegá-lo, fico pensando se a Apple teria conseguido fazer um milagre de engenharia e criar o primeiro headset de RV que não seja nada pesado. Um minuto depois, descubro.

O Vision Pro é bem menor do que aparenta nas fotos, e muito mais compacto do que qualquer outro capacete de realidade virtual – tanto que nem seria adequado chamá-lo de “capacete”.

Mas não é exatamente leve. Para mantê-lo preso e estável, tenho que apertar a rodinha de ajuste, o que coloca certa pressão na testa. Ele também tem uma tira superior, que passa pela parte de cima da cabeça (e não aparece nas imagens divulgadas pela Apple).

Então não, o Vision Pro não é milagrosamente confortável. Mas é muito melhor do que os headsets tradicionais – inclusive porque a parte que fica apoiada na testa não é de borracha, como neles, mas de tecido.

Essa peça veda bem a luz ambiente: assim que coloco o Vision Pro, tudo fica completamente escuro. Aperto o botão da direita para ligá-lo e a sala novamente “se acende”: agora, nas telinhas do headset. Aí, algo extraordinário acontece.

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Quando são ligados pela primeira vez, os produtos da Apple exibem a mesma mensagem: hello, em letras manuscritas. O Vision Pro também – só que essa palavra é um objeto, com aproximadamente 1,5 metro de largura. A palavra vai se formando, como se escrita por uma mão invisível, e fica flutuando na sala.

E ela, eis a parte incrível, realmente parece um objeto real: reflete perfeitamente a luz do ambiente, que revela seu volume e textura (um plástico liso) e projeta sua sombra no chão.

O objeto é estável, sólido, “analógico” – não parece algo gerado por computador. É tão realista que causa certa dissonância cognitiva: numa fração de segundo, meu cérebro me pergunta como um objeto de plástico duro e opaco, que parece pesado, pode flutuar no ar.

A palavra some e inicio o processo de calibração do Vision Pro, movendo os olhos e estendendo as mãos à frente do corpo. É rápido. Assim que ele termina, aparecem os ícones dos apps – e começo a explorá-los.

Vejo algumas fotos, exibidas numa tela virtual cujo tamanho e posição posso ajustar com as mãos. Abro uma imagem panorâmica, de um bosque, que se expande até preencher todo o meu campo de visão.

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Acesso dois “vídeos espaciais”, que foram gravados com o próprio Vision Pro, em 3D. Eles têm uma limitação de tamanho, e só ocupam o centro do campo de visão (o Vision Pro escurece automaticamente o entorno para destacá-los).

Os dois vídeos – uma cena de jovens acampando e uma festinha infantil –  revelam uma imperfeição curiosa. Movimentos rápidos, como as chamas da fogueira e as mãos das crianças, têm flicker: vibram um pouco, como se o vídeo não conseguisse acompanhar sua velocidade. Mas o efeito é discreto – e o resultado geral impressiona.

Foto de um homem utilizando o Vision Pro. É possível ver as telas abertas e o teclado virtual.
Você pode ter várias janelas virtuais abertas, e arrastá-las para qualquer ponto do ambiente; também dá, se você quiser, para usar teclado (real ou virtual) e mouse. (Apple/Divulgação)

Começo a explorar as funções de trabalho. Para selecionar alguma coisa, simplesmente olho para ela; para clicar, toco o polegar e o indicador. Posso aumentar ou diminuir as janelas, ou colocá-las em qualquer ponto da sala, com gestos das mãos [veja no infográfico abaixo].

Todos os elementos, não importa onde estejam, sempre têm foco perfeito. Isso pode parecer um detalhe banal, mas é uma proeza tecnológica: os outros headsets de realidade virtual só conseguem dar foco total bem no meio do campo de visão (tudo em volta fica meio borrado). 

Abro o navegador Safari, que flutua na minha frente. A imagem é impecável. Mesmo mexendo a cabeça e a tela virtual, os contornos das letrinhas dos textos continuam perfeitos, sem nenhum “serrilhamento” (aliasing): um efeito que é causado pela falta de resolução, e afeta todos os headsets comuns. É que eles têm 7 a 8 megapixels – muito aquém dos 23 megapixels do Vision Pro. 

Clico no app Mensagens e, enquanto leio algumas, recebo uma chamada de vídeo. Aparece a cabeça de uma moça, renderizada em 3D de um jeito estranho: parece um personagem de videogame, só que um pouco mais real.

Deve ser uma demo gravada, penso. Mas ela começa a conversar comigo: é uma pessoa da Apple, que está ligando de outro Vision Pro. Sua cabeça aparece em 3D porque foi escaneada, e recriada em tempo real, pelo aparelho. Simulamos uma chamada de trabalho, em que a funcionária me mostra a maquete 3D de um apartamento.

O Vision Pro roda sozinho, mas também pode ser conectado sem fios a um Mac (com mouse e teclado, se você quiser).

Imagem da tela inicial do Vision Pro, com um botão de “Clique aqui” que redireciona para o infográfico completo sobre o software dele.
(Arte/Superinteressante)

Faço uma sessão de meditação. O Vision Pro escurece a imagem da sala e no meio dela aparece um objeto colorido, que vai crescendo conforme respiro, até se desfazer em pétalas coloridas.

É legal, mas menos impressionante que a palavra hello (talvez porque ele seja desenhado “no escuro”, e não interaja com a luz da sala). Vejo um clipe de Avatar 2 em uma tela 3D, que flutua na minha frente. Com um clique, a sala desaparece e agora estou vendo o filme num cinema virtual, num telão com 30 m de largura.

O tamanho, a distância e o ângulo da tela são convincentes – o Vision Pro só não desenha as cadeiras e as pessoas da plateia.    

Os sons do filme vêm de todas as direções, e consigo discernir com clareza cada uma. Mas como o Vision Pro gera sons que parecem estar atrás de mim, por exemplo, se os alto-falantes dele [veja no infográfico acima] ficam na frente das orelhas?

Na natureza, quando algum som chega até você, as ondas sonoras reverberam nas estruturas das suas orelhas antes de entrar no ouvido.

Dependendo do ângulo de que cada onda veio, ela descreve uma trajetória diferente na “concha” das orelhas. Com isso, sua frequência sonora sofre uma alteração precisa – que o cérebro reconhece, e usa para determinar de qual direção aquele som veio.

Um mecanismo genial, resultado de milhões de anos de evolução – e que o Vision Pro explora com inteligência. Ele gera ondas sonoras “pré-reverberadas”, que enganam o cérebro. Por isso precisei escanear minhas orelhas – é para que o headset saiba como as ondas sonoras refletem dentro delas, e consiga simular isso.

O resultado é convincente, porque o Vision Pro também leva em conta o formato e os objetos da sala. Ele analisa o ambiente, usando suas câmeras e o sensor LiDAR [veja no infográfico], e simula as reflexões que sons “reais” teriam ao se propagar pelo recinto.

Imagem da visão do Vision Pro.
Se alguém vem falar com você durante um conteúdo imersivo, a imagem se abre automaticamente para mostrar a pessoa. (Apple/Divulgação)

Abro um clipe com cenas de realidade virtual gravadas em primeira pessoa: estou escalando uma montanha, assistindo a uma cerimônia religiosa, vendo um jogo de basquete à beira da quadra.

As cenas, gravadas com câmeras profissionais, impressionam: numa delas, que se passa em um estúdio, a cantora Alicia Keys parece estar sentada a apenas 20 cm de mim.

Fecho o app de vídeos, e a sala reaparece. Abro o último aplicativo, com o ícone de um dinossauro. A parede da sala se transforma numa tela, perfeita, e nela aparece um dino. Após alguns segundos, o bicho sai da tela e dá dois passos para dentro da sala.

Levanto e vou até ele: que bate na altura do meu ombro e é perfeitamente sólido e real, de todos os ângulos. Volto para o sofá, e o dinossauro vai embora.

Surge uma borboleta, que voa lenta e delicadamente pelo recinto. Estendo o braço, e ela pousa nas costas da minha mão. Não sinto seu toque, pois ela não existe; fora isso, é uma borboleta de verdade. Fim da demo.

Usar o Vision Pro é uma experiência transformadora. O equivalente moderno ao que a plateia dos irmãos Lumière deve ter sentido ao ver a primeira projeção de cinema, na Paris de 1895.

Mas, além de um dinossauro, o headset também tem um “elefante na sala” – um porém. E não é só seu preço. É o conteúdo.

Imagem da visão da Apple Store no Vision Pro.
O Vision Pro terá acesso aos serviços Apple TV+ e Apple Arcade, e sua própria área na App Store. (Apple/Divulgação)

A Apple anunciou uma parceria com a Disney, que irá fazer produções para o Vision Pro (quais, ainda não se sabe). Ele vai precisar de bastante conteúdo para que as pessoas se disponham a comprá-lo. Só os filmes dos serviços Apple TV+ e Disney+, e os games do Apple Arcade (títulos  2D, mais simples), talvez não sejam suficientes.

A Apple está apostando nos desenvolvedores de aplicativos, uma parceria que deu muito certo no iOS (a App Store movimenta US$ 1,1 trilhão por ano, o equivalente à metade do PIB brasileiro).

Mas fazer conteúdo de realidade virtual é bem mais difícil e caro do que criar apps de celular. Além disso, nos primeiros anos, a criação de apps e “experiências” para o Vision Pro deverá dar prejuízo, porque pouca gente terá o headset. Mas, se ninguém topar fazer, não haverá conteúdo – e a base de usuários não crescerá.

Trata-se de um ciclo que se realimenta há tempos no mundo da realidade virtual, impedindo a popularização dessa tecnologia; um problema que a indústria nunca conseguiu superar.

Meio século atrás, o escritor inglês Arthur Clarke (autor de 2001) cunhou uma frase lendária: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”. O Vision Pro tem momentos assim. Mas seus truques virtuais não eliminam um fato concreto: até a magia mais encantadora precisa de mágicos para executá-la.

 

***

Imagem do óculos da Meta.
Protótipo de headset com plano focal variável, que está sendo desenvolvido pela Meta. (Meta/Divulgação)

A resposta da Meta

Atual líder do mercado de realidade virtual prepara headset experimental, com lentes que imitam uma característica do olho humano

A empresa de Mark Zuckerberg correu para apresentar seu novo headset, o Quest 3, na antevéspera do anúncio da Apple. Mas o produto, cuja data de lançamento ainda não foi divulgada, não é um rival para o Vision Pro – sua resolução, 9 megapixels, é muito menor (e o preço, US$ 499, também).

Só que além da linha Quest, que lidera o mercado de capacetes de realidade virtual nos EUA, a empresa também está desenvolvendo modelos muito mais avançados. Um deles, que ainda está na fase de protótipo (veja foto acima), promete “resolução retinal”: seria capaz de exibir gráficos totalmente realistas, como o Vision Pro. E ir além.

O headset, que deverá ser mostrado na feira de computação Siggraph 2023, marcada para agosto em Los Angeles, poderá ser o primeiro com lentes de “plano focal variável”, que ajustam o foco dos objetos virtuais de acordo com a distância em que eles estão.

Isso reproduz o funcionamento normal da visão humana (que desfoca naturalmente os elementos mais distantes), e promete um grau de imersão ainda maior.

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