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Um raio X da Fórmula E

O primo sustentável da Fórmula 1 nasceu com a promessa de se tornar uma plataforma para o desenvolvimento de carros elétricos. Passou por problemas e, agora, lança sua terceira geração de carros. Entenda como funciona a categoria – que teve, pela primeira vez, uma corrida no Brasil.

Por Rafael Battaglia
Atualizado em 14 mar 2024, 12h01 - Publicado em 17 fev 2023, 10h23

Texto: Rafael Battaglia | Edição: Bruno Garattoni | Design: Natalia Sayuri Lara

A noite de 28 de janeiro estava iluminada em Diriyah, na Arábia Saudita. Não por estrelas: um exército de drones tomou conta do céu. Em perfeita sincronia, os robozinhos formaram diversas imagens: uma borboleta, um carro, um piloto com capacete. O show aéreo deu as boas-vindas ao público de 20 mil pessoas que foi às ruas para acompanhar a terceira corrida da temporada de 2023 da Fórmula E. Pois é: no país que mais exporta petróleo no mundo, a atração da vez eram carros elétricos.

Mesmo quem não é fã de automobilismo provavelmente já ouviu uma coisa ou outra sobre a Fórmula E, o primeiro campeonato de automobilismo 100% elétrico, criado em 2014. Atualmente, 22 pilotos de 11 equipes competem em 16 corridas pelo título da categoria. Os times precisam seguir um conjunto de regras (ou seja: uma fórmula) na construção dos carros, para garantir o equilíbrio do torneio. Na Fórmula E, cada equipe pode desenvolver o seu próprio motor e software, mas todos usam os mesmos chassi, pneus e bateria.

Em sua 9ª temporada, a Fórmula E trouxe novidades relevantes. É a primeira com uma corrida aqui no Brasil: o E-Prix de São Paulo, em 25 de março. O campeonato marca também a transição da segunda para a terceira geração do carro: ele é mais leve, potente e com maior capacidade para recuperar energia durante as provas.

Desde o início, a Fórmula E se propôs a ser uma competição que aliasse o entretenimento das corridas com o desenvolvimento tecnológico. Depois de quase uma década de existência, qual o balanço? A audiência tem sido satisfatória? As montadoras realmente aproveitam o torneio para aprimorar os seus carros elétricos de rua? É o que veremos a seguir.

Do começo

Alejandro Agag sempre foi um cara bem relacionado. Filho de banqueiro, estudou economia e entrou ainda jovem na política. Aos 25 anos, já era assistente do então primeiro-ministro da Espanha, José María López. Aos 28, tornou-se o mais jovem espanhol a ocupar um assento no Parlamento Europeu – mas abandonou o cargo ao se casar com a filha de López.

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Fora da política, Alejandro apostou no automobilismo. Junto a um amigo, o advogado Alberto Longo, conseguiu os direitos de transmissão de TV da Fórmula 1 na Espanha, em 2002. Na época, o interesse por lá era pequeno: apenas 180 mil espectadores. Mas a dupla deu sorte: o bicampeonato do espanhol Fernando Alonso, em 2005 e 2006, fez a audiência saltar para oito milhões de pessoas.

Nos anos seguintes, a dupla adquiriu e comandou equipes nas extintas GP2 e GP3 (as atuais Fórmula 2 e Fórmula 3, “categorias de base” da Fórmula 1). Mas, na virada da década, houve um problema. “Muitos patrocinadores estavam deixando esses campeonatos, porque não queriam mais se associar com um esporte nada sustentável”, diz Longo. Mas o que poderia se tornar uma dor de cabeça acabou virando oportunidade.

Em 2011, durante um jantar em Paris, o francês Jean Todt, então presidente da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), compartilhou com Alejandro a ideia para um campeonato de carros elétricos. Naquela época, a conversa sobre esse tipo de veículo tomava fôlego. As vendas ainda eram irrisórias (0,01% do mercado mundial), mas vários países já criavam políticas de incentivo à produção e consumo de automóveis híbridos ou elétricos. O italiano Antonio Tajani, que foi comissário de transportes da União Europeia, também estava nesse jantar.

Os três, então, esboçaram a semente do que se tornaria a Fórmula E. A FIA abriu uma licitação para a nova categoria e, em 2012, Agag conseguiu oficialmente os direitos para comandá-la. Um dos primeiros envolvidos na Fórmula E foi o piloto brasileiro Lucas Di Grassi. Ele havia corrido pela Addax, equipe de Alejandro na GP2, em 2008 – e ajudou o espanhol a vencer o campeonato de construtores daquele ano. Mas a sua entrada na F-E não foi apenas pelo networking: ele também acreditava na causa.

“O primeiro elétrico que dirigi foi um Tesla em 2010, durante uma feira em Las Vegas”, lembra Lucas. Ele ajudou a trazer patrocinadores e equipes (Virgin e Audi, pela qual correu até 2021), e até hoje participa da F-E, na equipe Mahindra.

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A corrida inaugural aconteceu em 2014, em Pequim, com vitória de Di Grassi. Tudo parecia certo – até que, pouco antes da quinta corrida da temporada, em Miami, o dinheiro acabou. Com medo de a aposta virar prejuízo, os investidores não queriam colocar mais grana na F-E. Em um desentendimento com um deles, Agag acabou temporariamente demitido.

Alejandro só voltou ao jogo após negociar a entrada da Liberty Global, multinacional de telecomunicações controlada pelo bilionário John Malone, ao time de acionistas. Junto a outra empresa, a Discovery Communications, ela comprou um terço da F-E por US$ 55 milhões – o que viabilizou a continuação do torneio. Mais tarde, em 2016, a americana Liberty Media (outra empresa de Malone) compraria a Fórmula 1 por US$ 4,4 bilhões – e se tornaria a principal responsável, junto com a Netflix e sua série documental Drive to Survive, pela retomada de popularidade da categoria nos últimos anos.

Acelerando

Após a crise inicial, a Fórmula E entrou em curva ascendente. Logo nas primeiras temporadas conseguiu atrair montadoras como a francesa Renault, a indiana Mahindra e a britânica Jaguar – que não participava de um campeonato automobilístico desde 2004, quando saiu da F-1. Sua entrada na F-E mirou o futuro: a partir de 2025, a empresa pretende produzir apenas carros elétricos.

A Fórmula E também conseguiu grandes metrópoles para sediar sua corridas: Nova York, Paris, Berlim, Londres. Quase sempre, em circuitos de rua. A filosofia do torneio é de que isso serve como palco para conquistar novos públicos. Mas também é fato que os carros pareceriam lentos nos circuitos tradicionais da F-1, de pistas largas. Nas ruas de Mônaco, único traçado que as categorias dividem com o mesmo layout, a pole da F-1 em 2022 rolou com o tempo de 1:11:376. A da F-E, de 1:29.839, eternos 18 segundos de diferença.

O auge da competição foi em 2019. Naquele ano, BMW e Nissan entraram no campeonato, que contou pela primeira vez com o “Modo de Ataque”, que existe até hoje. É uma ferramenta à la Mario Kart: se o piloto passar sobre um determinado pedaço da pista, fora do traçado ideal, é recompensado com um boost temporário de potência (que aumenta de 300 para 350 quilowatts, ou 476 cavalos).

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2019 foi também o primeiro ano com o carro da segunda geração, o Gen2, que promoveu uma mudança significativa: antes, por conta das limitações da bateria, os pilotos precisavam trocar de carro no meio das provas. Com o Gen2, a capacidade da bateria aumentou 150%, o que eliminou a necessidade de um segundo veículo.

A evolução atraiu a Mercedes e a Porsche, que entraram no ano seguinte. A audiência acumulada de 2019 bateu recorde: 411 milhões de pessoas. De quebra, foi o ano do lançamento de And We Go Green, documentário sobre a Fórmula E produzido por Leonardo DiCaprio (disponível no YouTube).

(Vale o adendo: “And we go green” significa “E nós ficamos verdes”, em tradução livre. A frase é o bordão dos locutores oficiais da Fórmula E em todas as largadas. Em inglês, “go green” também significa agir ativamente em prol do meio ambiente e da sustentabilidade.)

Foto da temporada de estreia do Gen2 da Fórmula E.
A temporada de estreia do Gen2 (foto), em 2019, foi a de maior sucesso da F-E: o público total foi de 411 milhões. No ano seguinte, a pandemia fez a audiência despencar para 239 milhões. (LAT Images/Reprodução)

Freada brusca

Tudo ia de vento em popa. Mas aí veio a pandemia. Sem poder correr em circuitos de rua (afinal, as cidades estavam sob lockdown), a Fórmula E precisou organizar seis corridas em nove dias; todas elas, numa pista em Berlim feita em um antigo aeroporto. O esforço permitiu que a temporada fosse finalizada, mas a repetição minou o espetáculo: a audiência ficou em 239 milhões de pessoas, uma queda de 58%.

Em 2021, a audiência subiu, para 316 milhões de espectadores. Mas o calendário ainda estava bagunçado por causa da Covid-19: corridas originalmente previstas, como as de Seul, Santiago e Marraquexe, foram canceladas. E, em 2022, de uma só vez, Audi, Mercedes e BMW anunciaram que deixariam a categoria.

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Cada uma alegou motivos diferentes. A Mercedes redirecionou o seu orçamento da F-E para o desenvolvimento da sua frota de carros elétricos. Já a Audi optou por focar no Rally Dakar, no qual compete com o RS Q e-tron, o primeiro elétrico da competição. A BMW disse que já havia esgotado as oportunidades de desenvolvimento de tecnologia dentro da categoria. Outras três montadoras entraram na F-E ano passado: a italiana Maserati, a espanhola Cupra e a britânica McLaren. Mas a saída das alemãs foi um baque.

Di Grassi acredita que a pandemia pode ter influenciado. “Há dois jeitos de se gerar valor no automobilismo: com marketing (as corridas são plataformas para as marcas) e com pesquisa e desenvolvimento”, diz. Para ele, a queda na audiência teria feito com que as montadoras reavaliassem o investimento no torneio.

Tabela comparando as gerações da fórmula E.
(Caroline Aranha/Superinteressante)

Troca de conhecimento

Na Fórmula E, cada time pode gastar, no máximo, US$ 13,9 milhões por temporada. Não é muito se comparado à Fórmula 1, onde o limite é de US$ 135 mi. Não entram na conta o salário dos pilotos e dos executivos de alto escalão das equipes.

O teto orçamentário da F-1 foi criado em 2021, para evitar uma escalada insustentável dos gastos – não fosse por ele, Mercedes, Ferrari e Red Bull gastariam mais de US$ 400 mi por ano. Cada uma.

Na Fórmula E, todas as equipes são obrigadas a usar baterias idênticas, fabricadas pela Williams Advanced Engineering (uma divisão da equipe de F-1). É assim para equilibrar as corridas, e também para conter as despesas. Com US$ 13 milhões não daria nem para começar a desenvolver novas tecnologias de bateria – a Tesla, maior fabricante de carros elétricos do planeta, gasta US$ 2,5 bi em pesquisa por ano.

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Mas é justamente pela grana limitada que soluções para tornar os carros mais eficientes podem surgir. Cada equipe desenvolve seu próprio “trem de força”: o conjunto de motor elétrico, câmbio e sistema de regeneração de energia (que recupera eletricidade, transformando o motor em um gerador, quando o piloto freia).

Os freios regenerativos não foram criados na Fórmula E, diga-se – estão presentes em carros híbridos e elétricos de rua. Mas a ideia aqui é testar limites. O Gen3, por exemplo, possui dois motores – um deles, o dianteiro, serve exclusivamente para regenerar energia. E, graças a esse combo, ele é o primeiro carro de corrida sem nenhum tipo de freio mecânico traseiro (veja o infográfico abaixo). Com o Gen3, a expectativa é de que até 40% da eletricidade gasta pelo carro venha de regeneração. É por isso também que a F-E prefere circuitos de rua. Eles têm curvas fechadas e constantes – e quanto mais freadas, mais mais momentos de recarga.

Infográfico mostrando os detalhes do Gen3, carro da Fórmula E.
(Foto: Sergio Sette | Infográfico: Caroline Aranha/Montagem sobre reprodução)

Além da evolução dos carros da F-E, as equipes tiram proveito do campeonato para testar suas próprias tecnologias. A Nissan, por exemplo, usa o mesmo software responsável pela eficiência da bateria do Leaf, o popular modelo elétrico da marca. “Essa experiência nos ajuda a entender os limites do código e a como maximizar o gerenciamento de energia”, disse à revista Time Michael Carcamo, diretor global de automobilismo da montadora.

No caso da Jaguar, parte da criação do SUV elétrico I-Pace (como os sistemas de torque e controle de temperatura) foi inspirada na experiência da Fórmula E. Na Mercedes, alguns engenheiros do time ajudaram a desenvolver o sedã VISION EQXX. E na BMW, parte da equipe envolveu-se posteriormente na 5ª geração de motores elétricos da empresa.

E agora?

Em 2022, a audiência total da Fórmula E foi de 381 milhões de pessoas – uma média de 23 milhões por corrida. Foi um aumento de 30% em relação ao ano anterior, mas ainda não atingiu os valores pré-pandemia (e está longe de alcançar a Fórmula 1, que atrai 1,5 bilhão de espectadores por ano). A temporada 2023 começou dia 14 de janeiro, no México. A próxima etapa é na África do Sul – e depois vem a do Brasil, onde são esperados 25 mil espectadores.

É improvável que a F-E se torne tão popular quanto a Fórmula 1. Mas ela tem alguns fatores que podem garantir um crescimento saudável. O primeiro é a exclusividade: até 2039, nenhuma outra categoria de fórmula pode ser 100% elétrica.

A segunda é a competitividade. O público gosta de corridas decididas nas últimas voltas – algo que a F-1 proporciona raramente, mas que é praxe na F-E. Seja por conta da relativa uniformidade dos carros, seja por conta dos desafios que eles trazem aos pilotos.

“O carro de Fórmula E é, sem dúvida, o mais difícil que eu já dirigi”, diz Sérgio Sette Câmara, brasileiro que entrou em 2020 na categoria. O pneu deste ano, por exemplo, é bem mais duro que o anterior, oferece pouca aderência na pista, e isso propicia um drama a mais – ainda que à custa do desempenho dos carros.

E há, por fim, o desenvolvimento tecnológico. A categoria já está aperfeiçoando o Gen3. Para o meio da temporada, está prevista a introdução de um pit stop de “reabastecimento”, no qual parte da bateria dos carros será carregada em 30 segundos – um piscar de olhos no mundo dos veículos elétricos. Para o futuro Gen4, o objetivo é ultrapassar os 350 km/h em retas longas – velocidade final equivalente à de um F-1.

Carros elétricos não são mais o futuro. São o presente. A participação deles no mercado de carros novos saltou daqueles 0,01% em 2011 para 15% hoje. É questão de tempo para que os motores à combustão se tornem tão obsoletos quanto cavalos. E, se há espaço para uma categoria que ajude a acelerar essa virada, a ideia segue bem-vinda.

Linha do tempo

Dois brasileiros já venceram um campeonato de Fórmula E. Veja esses e outros destaques da história da categoria.

  •  2014 (13 de setembro)

Em Pequim, rola a primeira corrida da Fórmula E, com vitória do brasileiro Lucas Di Grassi.

  • 2015 (10 de março)

Por US$ 55 milhões, a Liberty Global e a Discovery Communications adquirem um terço da Fórmula E.

  • 2015 (28 de junho)

O brasileiro Nelson Piquet Jr. se torna o primeiro campeão da Fórmula E, correndo pela equipe chinesa NEXTEV (atual Nio 333).

  • 2017 (30 de julho)

Correndo pela Audi, Lucas Di Grassi é campeão da terceira temporada da Fórmula E.

  • 2018 (15 de dezembro)

Estreia do Gen2, cuja capacidade de bateria permitiu aos pilotos usarem apenas um carro por corrida (com o Gen1, eles tinham de passar para um segundo veículo no meio da prova).

  • 2019 (14 de julho)

O francês Jean-Éric Vergne se torna o primeiro bicampeão da F-E.

  • 2020 (5 de agosto)

A pandemia atrapalha o calendário da F-E, que precisa organizar seis corridas em nove dias, todas em Berlim, para fechar o campeonato.

  • 2023 (14 de janeiro)

A 9ª temporada marca a estreia do Gen3 e, pela primeira vez, uma corrida no Brasil.

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