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Os primeiros 1.000 dias do bebê

O primeiro milhar de dias da existência do bebê pode ser determinante para o seu futuro – tanto em termos de saúde quanto de inteligência. Entenda.

Por Amarilis Lage
Atualizado em 4 out 2019, 14h22 - Publicado em 11 out 2016, 20h30

Qual é a sua memória mais antiga? Dificilmente alguém se lembra de algo anterior a seus 3 anos – o brinquedo favorito, como se alimentava, se vivia em um ambiente afetuoso ou de abandono. A “amnésia infantil” borra os primeiros capítulos de nossa história. Mesmo assim, as características dessa fase ditam muito do que virá – desde o risco de desenvolver doenças ao QI.

A ciência tem muito dizer sobre esse período do início da vida de alguém. Vários pesquisadores vêm se dedicando ao estudo dos dias iniciais após o nascimento, desde que o médico inglês David Barker apresentou, em 1990, a hipótese de que o surgimento de doenças coronarianas, hipertensão e diabetes na idade adulta pode ter origem em problemas vividos desde a gestação.

É o conceito dos “mil dias”, que vão da concepção ao aniversário de 2 anos. Entenda por que essa fase é tão especial.

Gravidez — 1º trimestre

O cuidado com o desenvolvimento do bebê começa antes da concepção. A orientação é para que mulheres interessadas em engravidar consumam ácido fólico, vitamina do complexo B. A substância previne más-formações no tubo neural do feto, afirma Sandra de Oliveira Campos, professora de infectologia pediátrica da Unifesp. Além disso, pode evitar doenças cardíacas e fissuras labiopalatinas.

Desde 2002, as farinhas de trigo e de milho do Brasil levam ácido fólico por determinação da Anvisa. Nos EUA, a fortificação foi adotada em 1998 e estima-se que tenha reduzido em 35% o número de bebês com problemas no cérebro e na espinha.

Além disso, o estado de saúde da mãe influencia o desenvolvimento do feto, diz Campos. “Alterações na pressão arterial afetam o fluxo de sangue e de nutrientes para o bebê, que pode nascer com baixo peso. Também é bom acompanhar se a mãe está com anemia ou sobrepeso.”

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Gravidez — 2º trimestre

O stress durante a gravidez pode ser transmitido para o bebê? A pesquisadora Rachel Yehuda, do hospital Mount Sinai, defende que sim. Ela observou esse processo em mulheres que estavam grávidas quando as Torres Gêmeas foram atacadas, em 11 de setembro de 2001.

Yehuda avaliou 38 gestantes que estavam perto do World Trade Center no momento do ataque (algumas delas sofreram transtorno pós-traumático). Um ano depois, examinou os bebês. A conclusão foi que os filhos das mulheres traumatizadas apresentavam alteração no nível de cortisol (hormônio envolvido na resposta ao stress) e reagiam com mais aflição a novos estímulos. Essa relação foi mais acentuada entre as mulheres que, na época do ataque, estavam no segundo ou terceiro trimestre da gestação.

Yehuda encontrou resultados parecidos em adultos cujos pais eram sobreviventes do Holocausto – segundo ela, essas pessoas eram mais vulneráveis a sofrer stress pós-traumático também. Esse tipo de estudo pertence a uma área ainda nova, chamada epigenética, cuja meta é entender como o ambiente afeta a atividade dos genes, causando alterações que podem ser transmitidas às gerações seguintes.

Gravidez — 3º trimestre

Alguns órgãos amadurecem, como os pulmões, e o bebê ganha gordura para viver fora do útero. Se nascer com menos de 37 semanas, é prematuro. Essa condição, além de demandar suporte extra logo após o parto, pode significar também uma maior vulnerabilidade a problemas como asma, miopia e resistência a insulina.

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Estudo da Universidade Johns Hopkins divulgado no Journal of the American Medical Association mostrou que a prematuridade é um fator de risco para o desenvolvimento de síndrome metabólica e do diabetes tipo 2 ao longo da vida.

Parto

“O primeiro contato do bebê com o mundo é no canal do parto, com bactérias e lactobacilos, que, ao entrar em contato com a pele dele, se multiplicam e promovem a flora intestinal, formando um meio de defesa em relação ao ambiente. Antes disso, o bebê vive num ambiente estéril. Quando a criança não nasce por parto normal, perde essa oportunidade [de desenvolver gradativamente esse microbioma]”, afirma o médico José Gabel, da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Isso se reflete no sistema imunológico. Estudos mostram que, enquanto o intestino de bebês nascidos via parto normal é colonizado por lactobacilos, o de bebês nascidos via cesárea apresenta um mix de bactérias patogênicas presentes na pele e no ambiente hospitalar.

Microbiotas distintas levam a respostas imunológicas distintas, e alguns pesquisadores relacionam a cesárea a alergias, asma e doenças autoimunes. Uma pesquisa conduzida pela Escola de Medicina de Hannover, na Alemanha, com 2 mil crianças, mostrou que as nascidas via cesárea tinham 80% mais risco de desenvolver doença celíaca (intolerância permanente ao glúten).

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Recém-nascido

O leite materno é tão complexo que os cientistas ainda não o compreendem por inteiro. Um estudo da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com 3.493 crianças mostrou que a amamentação influencia até a fase adulta. “Comparamos fatores como renda familiar, cor, escolaridade dos pais, peso ao nascer e sexo. Aí descobrimos uma relação causal entre amamentação, QI, escolaridade e renda”, diz o epidemiologista Cesar Victora, líder do estudo.

Comparados aos que mamaram menos de um mês, quem mamou mais de um ano tinha 4 pontos a mais de QI, quase um ano a mais de escolaridade e renda 36% maior. Uma hipótese é a de que a amamentação reforce o vínculo entre mãe e filho. Estudos, porém, mostram que tomar leite materno na mamadeira também é benéfico. Outros palpites são de que o leite contenha ácidos graxos poliinsaturados de cadeia longa, essenciais para a “arquitetura” do cérebro e de que certos nutrientes moldam a forma como os genes se expressam.

5 semanas

(Clube do Bordado/Foto: Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

É com essa idade que o bebê passa por seu primeiro salto de desenvolvimento – fase em que o ganho de habilidades é mais acentuado.

Neste primeiro salto, os sentidos se tornam mais apurados do que logo após o nascimento, e isso muda a forma como o bebê percebe sons, cheiros e estímulos visuais que o cercam, afirma Frans Plooij, no livro As Semanas Mágicas.

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Embora representem um ganho, os saltos também viram o mundo de ponta-cabeça para o bebê, e é comum que ele chore mais, tenha maior necessidade de sucção e durma menos nesse período – o que requer atenção extra dos pais, que também podem estimular os filhos para que compreendam e dominem seus novos poderes aos poucos.

O próximo salto ocorre aos dois meses, quando o bebê começa a identificar padrões. O terceiro, com três meses, se refere à percepção das transições (como a variação de luz quando nuvens cobrem o sol). Serão dez saltos de desenvolvimento até ele completar um ano e meio.

6 meses

É hora da papinha. Fase de começar a incutir na criança hábitos de alimentação saudável. Segundo o IBGE, um em cada três brasileiros com menos de 2 anos já provou refrigerante – contraindicado para a idade.

“O ideal é evitar excessos de açúcar, sal e gorduras insaturadas, que submetem a criança a uma carga calórica desnecessária e alteram o paladar”, afirma Gabel, da SBP. “Com isso, pode haver dificuldades para que a criança aceite alimentos naturais. E ainda não se sabe o que os adoçantes, edulcorantes e conservantes das papinhas pré-fabricadas podem acarretar para as crianças.”

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Segundo Cesar Victora, da UFPEL, vale lembrar que, ao longo dos primeiros mil dias, os ossos estão se alongando e o cérebro vive uma fase de intensa multiplicação celular. “Nesse período, a criança vai crescer de 60% a 70% do tamanho que terá na vida adulta”, afirma. Daí a necessidade de proteína de alta qualidade e micronutrientes como zinco, cálcio, selênio e magnésio.

12 meses

(Clube do Bordado/Foto: Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Levar o bebê para brincar na pracinha é importante. Pesquisadores da UFPEL constataram que esse tipo de estímulo faz diferença na aquisição de habilidades motoras e cognitivas – com efeito a longo prazo.

O médico Aluisio Barros, líder do estudo, e sua equipe acompanharam 3.869 crianças, entrevistando-as aos 3, 12 e 24 meses. A cada encontro, perguntavam se na semana anterior a criança tinha ido a um parquinho, visitado parentes e amigos, assistido à TV, ouvido uma história lida por um adulto e se ela tinha um livro. Cada item valia um ponto. Crianças com menos de 1 ponto tinham 8,3 vezes mais risco de ter baixo desempenho nos testes de desenvolvimento infantil.

“O que esses dados indicam é o tanto de atenção que as crianças recebem dos pais”, afirma Barros. Ele destaca que as crianças com maior pontuação nos dois primeiros anos mantiveram a vantagem ao crescer. Aos 6 anos, por exemplo, tinham QI mais elevado. “Estimular a criança aos 4 e aos 6 anos tem efeito. Mas não tanto quanto antes dos 2 anos”, diz Barros, que planeja avaliá-las até os 15 anos.

18 meses

(Clube do Bordado/Foto: Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Quando chegam à escola, por volta dos 6 anos, já é notável a diferença entre crianças de diferentes classes sociais no que se refere à linguagem. E esse desnível pode ser identificado mais cedo, quando elas têm 18 meses.

Professora de psicologia em Stanford, Anne Fernald elaborou um teste que permitia avaliar a velocidade com que bebês entendiam e obedeciam orientações simples, como, diante de dois desenhos, olhar para o que tinha um cachorro.

O estudo constatou que crianças pobres de 2 anos tinham a mesma habilidade linguística de um bebê rico de um ano e meio. Por trás dessa lacuna, havia outra: os pais pobres falavam menos com os filhos.

Fernald também descobriu que, quando alguém fala diretamente, o bebê aprende novas palavras mais rápido do que ao ouvir pessoas conversando ou assistir à TV.

Os resultados levarão à criação de um programa para orientar mães pobres a melhorar a comunicação com os filhos. Espera-se que isso os ajude na performance deles na escola, já que o desenvolvimento da linguagem em bebês parece estar associado ao sucesso acadêmico deles aos 8 anos.

2 anos

Há uma crença de que a depressão materna surge no nascimento e desaparece ao longo dos meses. Mas não é assim em locais sem suporte para diagnóstico e tratamento, afirma a médica Alicia Matijasevich, da USP. Ela descobriu que, nessas regiões, quando o bebê tinha 3 meses, o problema atingia 11% das mulheres; subia para 15% com 1 ano e 16% com 2 anos.

“A depressão ocorre também pela dificuldade socioeconômica”, diz Alicia. No estudo, as mães mais deprimidas tinham renda mais baixa. Outros fatores de risco foram baixa escolaridade, muitos filhos, gravidez não planejada e ausência de companheiro.

Aos 6 anos, as crianças foram avaliadas. Filhos de mães deprimidas tiveram dez vezes mais transtornos psiquiátricos. “A mãe deprimida não cria vínculo, amamenta menos, é mais indiferente à criança. Ela até olha menos para o rosto do filho – um tipo de interação importante”, afirma a pesquisadora. “Se diagnosticada e tratada a depressão da mãe, evita-se a repercussão na criança.”

Estela Renner, diretora do filme O Começo da Vida, observou que muitas mães vivem um isolamento pós-parto. “É como se todos estivessem fazendo a máquina girar e elas não. A mãe precisa sacar que faz algo muito importante”, diz. “Espero que o filme levante a questão de que criar um filho é ‘O’ trabalho. É formar a humanidade.”

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