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A pílula do esquecimento

Pense nas piores lembranças da sua vida. E se existisse uma substância capaz de apagá-las? Ela existe. Você tomaria?

Por Vanessa Vieira e Bruno Garattoni
Atualizado em 3 mar 2021, 17h03 - Publicado em 19 nov 2012, 22h00

Reportagem originalmente publicada pela Super em 2012

Eram 23h30 de uma noite de domingo quando o telefone tocou na casa de Cláudia*. Ela acordou sobressaltada e o marido foi atender. A notícia era que o sobrinho, de apenas 17 anos, havia se jogado pela janela do 13º andar. Ao lado do aparelho, Cláudia* escutava os gritos da irmã, que acabara de perder o filho. Em meia hora, ela e o marido chegaram ao local do suicídio. Numa confusão de sirenes e luzes, os bombeiros e a polícia trabalhavam em volta do corpo do rapaz – que ainda estava no chão. Três anos se passaram, mas a cena ainda perturba Cláudia. “Até hoje, se estou dormindo e o telefone toca, acordo querendo chorar”, diz ela. Ruídos de sirene ainda provocam tremores e taquicardia. Conseguir pegar no sono nos domingos à noite também virou uma tortura. Ela só adormece quando o cansaço se torna mais forte do que as lembranças. “Se pudesse, eu apagaria da memória aquela noite”, diz.

Talvez você nunca tenha passado por uma situação tão forte. Mas certamente guarda na cabeça algum momento, ou mais de um, que preferiria eliminar – mas que sempre acaba relembrando sem querer. Todo mundo coleciona algumas lembranças ruins ao longo da vida. Isso é inevitável. Mas, no que depender de pesquisadores de várias partes do mundo, vai deixar de ser. Eles estão trabalhando num projeto incrivelmente ambicioso: a criação de uma droga que apague memórias ruins.

Isso sempre foi considerado impossível pela ciência. Mas o cenário começou a mudar no final da década de 1990, graças ao neurocientista egípcio naturalizado americano Karim Nader. Como os demais cientistas da época, Nader sabia que as nossas memórias são apenas relações de afinidade entre os neurônios. Quando você memoriza alguma coisa – o endereço da rua onde mora, por exemplo -, o seu cérebro forma conexões entre os neurônios envolvidos com aquela informação. Eles ficam mais sensíveis uns aos outros. Por isso, mais tarde, quando você tenta se lembrar do endereço, a mesmíssima rede de neurônios é ativada – e recupera a informação. É assim que a memória funciona.

Mas Nader percebeu que havia uma coisa a mais. Para que essa ‘amizade’ entre grupos de neurônios se formasse, o cérebro precisava sintetizar determinadas proteínas. Ele teve a ideia de bloquear a ação dessas proteínas para ver o que acontecia. Primeiro, passou várias semanas ensinando um grupo de ratinhos a associar um determinado som com um pequeno e doloroso choque elétrico. Sempre que o som era tocado, os camundongos levavam um choque (vida de cobaia não é fácil). Com o tempo, eles aprenderam a lição – e ficavam com medo assim que ouviam o som. Até que Nader injetou neles uma droga que inibia a síntese das proteínas da memória. O resultado foi dramático, e deixou o cientista boquiaberto. Os ratinhos pararam de reagir com medo quando o som era tocado. “A memória de medo tinha partido. Os ratos tinham esquecido tudo”, diz Nader. O esquecimento era permanente, ou seja, persistiu mesmo depois que a substância já havia sido eliminada do corpo dos animais.

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Essa experiência mostrou, pela primeira vez, que era possível apagar memórias. Isso acontece porque, a cada vez que tentamos acessar uma lembrança, ela passa por um período de instabilidade, num processo chamado de reconsolidação. Ele tem três etapas. Primeira: a informação sai do banco de dados do cérebro. Segunda: ela chega à sua consciência e é acessada. Terceira: a informação é gravada novamente no banco de dados. Nader descobriu que, se você bloquear uma determinada proteína, a terceira etapa simplesmente não acontece – e a memória não é regravada. Ela some para sempre.

Nader foi além. Ele queria saber se era possível apagar apenas uma memória específica, ou se o processo acabava deletando outras lembranças de forma involuntária. Então fez mais um experimento. Primeiro, fez os ratinhos memorizarem uma sequência de sons que precediam o choque. Depois, tocou apenas um som daquela sequência antes de injetar a droga apagadora de memórias. Resultado? Os ratinhos esqueceram apenas aquele som – todos os demais continuaram gravados na memória, associados ao choque. Ou seja: não só é possível apagar memórias, é possível fazer isso com precisão de frações de segundo.

Nader não sabia direito em qual proteína cerebral deveria mirar, e fez testes com várias. Até que o neurologista Todd Sacktor, da Universidade Columbia, encontrou o alvo. É a proteína PKMzeta, que está envolvida com a passagem de sinais elétricos entre os neurônios. Se você bloquear a PKMzeta enquanto o indivíduo está se lembrando de alguma coisa, você destruirá aquela memória. Sacktor provou isso numa experiência em que ratos recebiam uma injeção de lítio – que provoca náuseas – sempre que comiam algo doce. A intenção era fazer com que as cobaias associassem o sabor com o enjoo.

A estratégia funcionou, e logo os animais passaram a rejeitar comida doce. Mas, com uma simples injeção de um inibidor de PKMzeta, eles esqueceram aquilo e voltaram a gostar de doces. Os cientistas dizem que é preciso fazer mais testes para entender qual é o real efeito disso no cérebro – e saber quais são os possíveis efeitos colaterais, se existirem. Se usada de forma descontrolada, a técnica poderia levar à destruição de memórias saudáveis. “Os efeitos da inibição da PKMzeta parecem ser mais potentes. O desafio está em regular essa potência. Nós estamos trabalhando nisso”, afirma Sacktor.

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Mexer na PKMzeta é dar um tiro de canhão. O ideal seria encontrar proteínas ainda mais específicas, que permitissem apagar só as emoções associadas a uma memória ruim – sem destruir a memória em si. Isso permitiria que uma pessoa pudesse se libertar do sofrimento associado a uma memória, sem necessariamente esquecer que aquilo aconteceu. Isso é importante porque preserva o aprendizado que conquistamos ao viver situações ruins. Alguém que sofreu um acidente de carro, por exemplo, ainda se lembraria do acidente – e, por isso, dirigiria com responsabilidade. Só a angústia e o trauma ligados ao acidente seriam deletados.

“As pessoas poderiam se lembrar, sem ser sufocadas por aquela memória traumática, podendo seguir adiante com suas vidas”, acredita Karim Nader, hoje professor da McGill University, no Canadá. O método: você iria a um consultório médico e, sob a supervisão de um terapeuta, relembraria um fato desagradável. Ao mesmo tempo, receberia a injeção de uma droga inibidora de proteínas. E, como que por mágica, aquela memória que sempre incomodou tanto deixaria de ser um trauma.

Isso já parece incrível, mas existe uma corrente de pesquisadores trabalhando em algo ainda mais impressionante (e assustador também). Em vez de apagar as memórias, que tal modificá-las?

BRILHO ETERNO
Cientistas da McGill University e da Harvard Medical School descobriram que o propranolol, um remédio usado para tratar pressão alta, tem um efeito colateral estranho: é capaz de alterar memórias armazenadas no cérebro. Isso acontece porque ele inibe a atividade de um neurotransmissor, a norepinefrina. Os cientistas fizeram testes com pessoas que tinham passado por alguma situação traumática. Elas receberam uma dose de propranolol e foram convidadas a relembrar o fato. As reações mais intensas de medo e emoção desapareceram, e esse efeito se manteve mesmo depois que os voluntários não estavam mais sob efeito do remédio. Segundo os cientistas, isso acontece porque ele interfere na reconsolidação da memória, que é alterada e perde sua carga emocional negativa antes de ser regravada pelo cérebro.

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Num documentário sobre o estudo produzido pela McGill University, uma paciente chamada Louise conta que finalmente conseguiu superar um trauma de infância graças ao propranolol. Estuprada por um médico quando tinha apenas 12 anos, ela sofreu durante toda a vida as sequelas psicológicas disso. “Eu não conseguia nem trocar de roupa na frente do meu marido”, relata. Graças ao tratamento, Louise diz que as memórias recorrentes e pesadelos desapareceram, bem como o medo de tirar a roupa.

No Brasil, também há pesquisas em torno de formas de promover o enfraquecimento de memórias traumáticas por meio do uso de drogas específicas. Uma delas, realizada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), investiga a ação do topiramato, um remédio atualmente usado para tratar convulsões. O topiramato seria capaz de inibir a produção de um neurotransmissor, o glutamato, que age no hipocampo – a região do cérebro que coordena o processo de formação de memórias. Em situações de estresse, o nível de glutamato ali aumenta. Isso poderia explicar, por exemplo, os pensamentos repetitivos que podem acompanhar uma experiência traumática. “Nossa hipótese é que, ao reduzir a liberação do glutamato, podemos inibir a reverberação de uma memória traumática”, explica Marcelo Feijó, professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. No estudo, mais de 82% dos pacientes tratados com a substância apresentaram melhora dos sintomas de estresse pós-traumático.

O estresse pós-traumático é caracterizado por sintomas como ansiedade e depressão e está relacionado à lembrança de algum evento traumático envolvendo ameaça à vida ou à integridade, como assaltos, sequestros, estupros ou acidentes graves. O problema afeta 6% da população mundial, 420 milhões de pessoas. Um medicamento que fosse eficaz contra ele poderia melhorar a vida de muita gente.

As substâncias capazes de apagar memórias ruins também poderiam ser usadas para tratar dor crônica. Por razões que a ciência ainda não compreende completamente, em alguns casos, mesmo depois que um ferimento físico já foi curado, alguns nervos continuam transmitindo sinais de dor na região, como se o corpo tivesse memorizado aquela dor. A técnica também poderia ser usada como um tratamento para a dependência química. Isso porque o vício em drogas está relacionado à memória – à associação entre o uso da droga e o efeito que ela proporciona. Se a pessoa se esquecer do prazer que sente ao consumir a droga, fica mais fácil largar o vício. Num estudo realizado com ratos viciados em morfina, a inibição da proteína PKMzeta ajudou a curar a dependência dos roedores.

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Em suma: mexer com as memórias pode trazer consequências muito boas. Mas também pode ser extremamente ruim. O Conselho de Bioética da Casa Branca já se manifestou sobre o assunto, apontando várias situações em que o apagamento ou a alteração de memórias pode ser uma coisa ruim, antiética ou imoral. Um bandido poderia recorrer à técnica para se livrar da culpa por ter praticado um crime, por exemplo. Governos poderiam preparar seus soldados para matar – ou para voltar a matar – sem conflitos emocionais. “Corremos o risco de falsificar nossa percepção e entendimento do mundo. Nos arriscamos a fazer com que atos vergonhosos sejam considerados menos vergonhosos, ou menos terríveis, do que realmente são”, diz o relatório.

Para a psiquiatra, psicanalista e bioeticista carioca Marlene Braz, a possibilidade de mudar ou apagar memórias poderia ter consequências até sobre o sistema jurídico. “Haveria uma tensão entre o direito individual de uma pessoa – que decidiu esquecer – e o direito da coletividade, já que, na prática, isso significaria subtrair evidências de um processo, já que não poderíamos contar com o testemunho daquela pessoa”, diz ela. Délio Kipper, professor de Bioética do curso de Medicina da PUC do Rio Grande do Sul, ainda aponta outros conflitos nessa área. “A modificação de memórias poderia induzir a mudanças nos testemunhos. É um caminho muito perigoso”, diz.

Até quem teria todos os motivos para alterar a própria memória vê essa possibilidade com desconfiança. Como a empresária paulistana Paula*, de 31 anos. Numa manhã de sábado, em 2005, ela saiu do quarto e viu manchas de sangue pela casa. Em desespero, tentou abrir a porta do quarto do pai, que sofria de depressão. “Eu batia na porta do quarto e ele não abria”, recorda. A empresária chamou a polícia e, quando a porta foi aberta, se deparou com uma cena que vai ficar gravada para sempre na sua mente. “Ele havia cortado os pulsos e se enforcado”, lembra. Sete anos depois, Cíntia admite que ainda não lida bem com as lembranças desse episódio. Mas diz que, mesmo assim, jamais tomaria um remédio para esquecer esse momento da sua história. “Minhas memórias estão dentro de mim para serem trabalhadas. Prefiro enfrentá-las a apagar essa parte da minha vida”.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

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Para saber mais: Reconsolidation as a Link Between Cognitive and Neuroscientific Memory Research Traditions. Oliver Hardt, Einar Örn Einarsson e Karim Nader, 2010.

 

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