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Instinto assassino: você também tem

Será que a violência vem instalada de fábrica no cérebro humano? Ou nós aprendemos a matar? Entenda os dois lados dessa interminável polêmica da psicologia.

Por Heitor Camargo
Atualizado em 8 ago 2018, 11h26 - Publicado em 31 dez 2005, 22h00

Você já teve vontade de matar alguém? Imaginou em detalhes como ia fazer isso? Chegou a pesar os prós e contras e, obviamente, percebeu que não fazia sentido (afinal, além de contrariar seus princípios morais, o risco de ser pego e o custo seriam muito grandes)? Bem, se você respondeu sim a essas perguntas, saiba que não está sozinho.

Segundo o maior estudo já realizado sobre fantasias homicidas, 91% dos homens e 84% das mulheres admitiram já ter pensado (em minúcias) como se livrar de outra pessoa. Sim, você leu bem. A esmagadora maioria dos 5 mil entrevistados (entre os quais 375 assassinos) confessaram esse fato, o que levou o coordenador da pesquisa, David Buss, chefe do Departamento de Psicologia Evolutiva da Universidade do Texas, a concluir que a capacidade de tirar a vida é uma característica comum a todos os seres humanos – resultado da seleção natural. Além das conversas ao vivo, a equipe ainda fez uma inédita análise de 429729 relatórios do FBI, a polícia federal americana, e transformou os resultados no livro The Murderer Next Door (“O Assassino Mora ao Lado”).

As conclusões são estarrecedoras e surpreendentes. Afinal, ninguém (exceto alguns psicopatas) admite que o homicídio seja uma prática socialmente aceita. Ao contrário, é um crime abominável. Para Buss, porém, a predisposição para cometê-lo “em determinadas circunstâncias” está nos nossos genes. “A capacidade de matar ajudou nossos ancestrais a sobreviver e a se reproduzir melhor. Como seus descendentes, carregamos essas adaptações e motivações que levaram ao sucesso deles”, afirmou o cientista à SUPER.

Segundo ele, o assassinato tem sido uma solução eficaz para lidar com diversos problemas na história evolutiva da humanidade. “Quais são essas vantagens? Em primeiro lugar, o indivíduo que mata continua vivo para transmitir seus genes às gerações seguintes. O que é morto, não. Além disso, os descendentes da vítima – se existirem – ficam mais desprotegidos e, se também não morrerem precocemente, saem de um ponto de partida desvantajoso na corrida pela reprodução e sobrevivência.”

Passado e presente

De acordo com Buss, historicamente o assassinato representou uma vantagem evolutiva. A violência ajudou os homens a conquistar status e recursos (comida, terra, ferramentas etc.) fundamentais para atrair e manter parceiras. Ou seja: na maioria dos casos, o motivo que levava alguém a matar estava ligado direta ou indiretamente à reprodução.

“Homicídios relacionados à reputação têm tudo a ver com questões genéticas”, diz o pesquisador. Para ele, o homem elimina a concorrência ao mesmo tempo que resgata seu status, se tornando um parceiro mais atraente e, assim, aumentando as chances de passar seus genes para frente. Isso também explicaria por que homens matam muito mais do que mulheres – numa proporção que chega a 9 para 1 em algumas sociedades.

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Hoje, muito dessa competição por status se dá no mercado de trabalho, no mundo dos negócios, nos esportes etc. E é óbvio que o assassinato raramente conduz alguém ao topo na civilização moderna, como o próprio Buss reconhece. “Mas a humanidade não evoluiu numa sociedade com código penal. Nossa mente foi forjada na fornalha de um ambiente evolutivo no qual a agressão às vezes era muito compensatória.”

Ou seja, atualmente algumas pessoas matam “por inércia”, mesmo que isso não tenha mais compensações, inclusive do ponto de vista da seleção natural. O cientista acredita, porém, que em situações-limite – circunstâncias análogas às que no passado levaram o homem a se beneficiar da violência –, determinados circuitos cerebrais (os responsáveis pelo tal instinto assassino) podem ser ativados.

Isso quer dizer, então, que matar é aceitável ou desculpável, uma vez que é uma ação prevista em nossos genes? Como aceitar que a ciência trate com naturalidade uma atitude que nega o bem mais fundamental da nossa existência, a vida? Críticos da psicologia evolutiva costumam afirmar que ela dá uma importância exagerada à busca dos homens por parceiras para reprodução. E que isso reforça estereótipos sexuais, além de superestimar características inatas. Se você quiser acreditar nessa lógica, argumentam esses estudiosos, quase todos os comportamentos têm a mesma origem: o desejo sexual. Por isso, há quem coloque em dúvida inclusive as bases científicas da teoria levantada por Buss.

“Há muita especulação envolvida quando psicólogos evolutivos formulam hipóteses sobre os supostos anos formativos do cérebro humano”, escreveu recentemente Amanda Schaffer, colunista de ciência da revista online Slate. Também o filósofo da ciência David Buller, da Universidade do Norte de Illinois, questiona a maneira pela qual Buss e seus colegas apresentam a cadeia de transmissão genética de padrões de comportamento – argumentando que nosso cérebro não é uma máquina de repetição de padrões, mas um organismo muito mais flexível e adaptável às condições presentes e às variações do ambiente e da comunidade.

(Marccophoto/iStock)

Sobre homens e macacos

Algumas das idéias expostas por David Buss em seu livro não são novas e têm relação com teses bem mais antigas, que tentam achar explicações para a violência no mundo animal. Durante muito tempo acreditou-se que o homem era o único ser vivo capaz de matar deliberadamente um semelhante. O caráter pacífico de nossos parentes mais próximos, como os chimpanzés, era usado como argumento para justificar a tese de que o assassinato era um desvio de comportamento humano.

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Essa crença, porém, começou a ser questionada no início da década de 1970, quando a equipe da britânica Jane Goodall testemunhou por duas vezes chimpanzés invadindo a área de um grupo vizinho, na Tanzânia, para perseguir e matar com “requintes de crueldade”, como descreveriam os repórteres policiais.

Também nos anos 70, Dian Fossey encontrou um filhote de gorila morto por um adulto macho em Uganda. “O exame do cadáver revelou 10 ferimentos de gravidade variável produzidos por mordidas. Uma delas tinha fraturado o fêmur do bebê e outra tinha perfurado seus intestinos”, contou Fossey no livro que inspirou o filme Nas Montanhas dos Gorilas.

Mais tarde, ela descobriu que, ao invés de ser um fato isolado, o infanticídio era regra na espécie. A agressividade entre primatas foi estudada pelo britânico Richard Wrangham, autor de O Macho Demoníaco – As Origens da Agressividade Humana, em que afirma que, do ponto de vista evolutivo, a violência extrema – e em especial o assassinato – foi uma estratégia que favoreceu tanto os chimpanzés quanto os humanos na cadeia evolutiva.

Nos dois casos descritos pela equipe de Goodall, os chimpanzés eliminaram os machos vizinhos, acasalaram com as fêmeas e aumentaram seu território e o acesso a importantes fontes de alimento – mas, ironicamente, acabaram assassinados mais tarde por outros indivíduos ainda mais fortes. No caso dos gorilas, depois do infanticídio as mães de filhotes mortos terminaram unindo-se ao agressor.

Wrangham prefere ser mais cauteloso ao traçar paralelos com o comportamento humano. Para ele, nos dias atuais, os assassinatos que podem estar diretamente ligados à nossa herança evolutiva são os cometidos por grupos, como gangues ou exércitos. Nesse ponto, o pesquisador admite que há de fato muitas semelhanças entre homens e chimpanzés. “Tanto uns quanto outros sentem que há uma justificativa para matar membros de comunidades vizinhas ou rivais”, disse por telefone à SUPER, de seu escritório na Universidade Harvard, nos EUA.

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Pobreza e desigualdades

Mas onde se encaixam as questões sociais ligadas a aumento ou redução das taxas de homicídios, como pobreza e desigualdade, à cultura da violência em algumas sociedades, o fácil acesso a armas de fogo e até a impunidade? É inegável a relação entres esses fatores e o número de assassinatos.

Basta olhar também para o mapa da violência nas grandes cidades para perceber a concentração de crimes com morte nas áreas de maior desigualdade social. David Buss não nega a ligação entre indicadores sociais ruins e o aumento do número de homicídios, mas garante que ela corrobora sua tese: pobreza e desigualdade aumentariam o número de homens dispostos a atos extremos para conseguir recursos e status – e, assim, atrair mulheres.

Mas, se todos estamos programados para matar, por que só uma ínfima minoria toma a decisão de fazê-lo? Segundo Buss, o assassinato é apenas uma de várias estratégias num cardápio de soluções possíveis para problemas de adaptação. “Felizmente, na maioria das vezes as pessoas usam meios não letais para resolvê-los.” Ele destaca que, antes de tomar qualquer decisão, medimos as conseqüências, avaliamos o custo-benefício e pesamos as alternativas. E, como a seleção natural nos legou (além do instinto assassino) muitas ferramentas boas – altruísmo, amizade, auto-sacrifício, cooperação e tantas outras –, optamos na maioria dos casos por respostas positivas.

(FOTOKITA/iStock)

Crime e castigo

Além disso, as penas severas impostas pelas sociedades modernas funcionam como uma importante forma de inibir a violência extrema. Há crime, mas também há castigo. Nas entrevistas conduzidas pela equipe de Buss, a justificativa mais freqüente para explicar por que as pessoas pensavam em matar, mas não chegavam às últimas conseqüências, foi justamente o medo de ser pego e de passar o resto da vida trancado numa cadeia.

“Sem leis duras e penas de prisão longas, haveria muito mais assassinatos do que há hoje”, diz o pesquisador. Princípios morais e religiosos também foram bastante citados, embora historicamente eles tenham se mostrado pouco eficientes para evitar conflitos regionais e guerras (na verdade, muitas delas nasceram e floresceram justamente com base em ideais defendidos por esta ou aquela religião).

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Se você é dos que acreditam que depois de tantos séculos de vida em comunidade, com fantásticos avanços nas áreas da cultura e da civilização, o homem deveria ser capaz de controlar inclusive os traços deturpados de seu comportamento ancestral, há esperança. Até os psicólogos evolutivos admitem que, embora a informação genética esteja lá, muitas das circunstâncias capazes de desencadear o instinto assassino são facilmente controladas socialmente. “Matar não eleva o status de ninguém”, exemplifica Buss. Os bons valores importam, sim. E muito.

Ameaça real

Taxa de homicídios por armas de fogo (casos por 100 mil habitantes, dados de 2014/2015)

• Brasil – 19,9

• Índia – 0,28

• México – 6,3

• EUA – 3,6

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• Canadá – 0,5

A arte da guerra

Se a capacidade de assassinar está nos genes do homem e foi uma vantagem evolutiva, é isso que explica os homicídios coletivos, os massacres e as guerras? Segundo alguns psicólogos evolutivos, sim. Os guerreiros teriam tido mais sucesso em transmitir seus genes – e, com eles, a violência – às gerações seguintes. Além de eliminar rivais, os grupos vencedores se apoderaram de recursos dos vencidos. Guerras e invasões, por essa teoria, permitiram aos homens conquistar mais parceiras. A história está cheia de exemplos em que os machos do lado perdedor foram massacrados e as mulheres, poupadas – só para serem estupradas ou incorporadas ao grupo logo a seguir.

O exemplo mais emblemático é o do conquistador mongol Gêngis Khan (1162-1227), notório assassino, a quem se atribui a frase “O maior prazer é eliminar o inimigo e deitar nas barrigas brancas de suas mulheres e filhas”. Pesquisa recente conduzida pelo geneticista Chris Tyler-Smith, da Universidade de Oxford, mostrou que, em 16 populações na área do antigo Império Mongol, 8% dos homens – 16 milhões de pessoas – possuem marcadores genéticos típicos da família de Khan. A nefasta história do sexo como espólio de guerra repete-se até hoje, em conflitos como o da Bósnia e de Ruanda.

A natureza homicida estaria ligada ao imperialismo de todas as potências – da Roma antiga ao Império Britânico. Tal como um indivíduo, um império (liderado por homens) almeja sempre mais poder. Portanto, estamos condenados a viver sob conflitos? Talvez não. Segundo o antropólogo Richard Wrangham, da Universidade Harvard, há algo essencial para o desenvolvimento da violência coletiva: o desequilíbrio de forças. Bandos de homens só atacam quando têm a percepção – nem sempre verdadeira – de que podem sair ilesos. “Se mantivermos um relativo equilíbrio de poder, podemos esperar paz”, acredita.

 

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