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Aplicações da álgebra na arte de inventar o mundo

Talvez a melhor maneira de compreender os seus símbolos e regras seja como criações livres do espírito, mas tão reais, à sua maneira, quanto os inventos dos outros ramos do saber.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 30 jun 1993, 22h00

Flávio Dieguez

Certamente não é difícil encontrar motivo para não gostar da álgebra — que o escritor Monteiro Lobato, em seus livros infantis, designava como um dos quatro gomos dessa grande laranja azeda que é a Matemática. Na escola, ela aparece quando os alunos deixam de fazer contas com simples números e passam a lidar com símbolos de números, no mais das vezes as letras x e y. É quando as notas começam a cair e os alunos a reclamar que não sabem para que serve tudo aquilo. É verdade que não se pode aprender álgebra sem uma certa disciplina e paciência, nem sempre disponíveis, e que não raro ela é ensinada de maneira desnecessariamente fria, trabalhosa e chata. Mas é disparate achar que a álgebra não serve para nada.

Já seriam mais de 3 000 as áreas profissionais que exigem aplicação regular da Matemática e assim, antes de mais nada, da álgebra. Lingüística, Medicina, Biologia e Psicologia são alguns dos novos ramos do saber em que a presença da Matemática está crescendo, apesar de não ser tão pesada como na Engenharia, Física, Química ou Economia. Pode-se avaliar a necessidade da Matemática nessas outras disciplinas pelo fato de, hoje, elas absorverem o trabalho de pelo menos metade dos 100 000 matemáticos, nos Estados Unidos.

E provavelmente a questão profissional nem seja a mais importante, pois os símbolos matemáticos, espalhados por toda a parte, também afetam a vida das pessoas de maneira indireta. Por isso, não conhecê-los é mais ou menos como não ver o mundo por inteiro, não compreendê-lo como se deve. Basta imaginar o seguinte: como se sentiria no mundo contemporâneo um grego da Antigüidade, para quem os números negativos nada significavam? Com certeza ficaria confuso ou acharia graça se lhe dessem informações que hoje são corriqueiras. Como a de que certa manhã iria fazer menos 5 graus C. Ou que seu saldo bancário estava negativo.

É provável que o grego antigo reagisse com argumentos metafísicos. Poderia dizer que números negativos são um simples contra-senso — seriam como dizer que algo é menor do que nada, e o nada, por definição, é menor que tudo. Mas, com o tempo, quando percebesse como tais número funcionam, concordaria que eles não só têm significado, como são inseparáveis do mundo moderno. Mesmo não sendo feitos de matéria sensível, são tão reais, à sua maneira, quanto carros ou aparelhos de televisão, projetados com sua ajuda. Dito isto, fica mais fácil compreender a importância da álgebra, pois são suas regras que dão sentido aos números.

Ela nasceu há 4 000 anos, quando os sacerdotes babilônios já manuseavam as equações que hoje atormentam muitos jovens e acabaram apagadas da memória de boa parte dos adultos. Os sábios da Antigüidade haviam aprendido que se tivessem algumas informações indiretas sobre um número desconhecido podiam seguir sua pista em meio àquelas informações. De acordo com os documentos que se descobriram daquela época, o número podia ser o comprimento de um terreno, e as informações podiam ser as seguintes: 1) há um comprimento sete vezes maior do que o procurado; 2) há uma área onze vezes maior que a daquele terreno; 3) a soma dos sete comprimentos com as onze áreas dá 6,25.

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Não se sabe como os velhos sacerdotes chegaram às regras para resolver o problema, mas elas eram infalíveis. Primeiro, elas mandavam tirar a metade de 7 (3,5) e multiplicá-la por si mesma. O resultado (12,25) devia ser somado a 68,75 (produto de 11 vezes 6,25). Essa soma, que dá 81, remetia então a uma tabela contendo todos os primeiros números ao quadrado: assim se sabia que 9 ao quadrado é 81. Bastava em seguida diminuir 9 de 3,5 e dividir o resultado (5,5) por 11. A resposta é 0,5 e de fato representa o comprimento procurado, como se pode verificar com facilidade. Embora estranhas, à primeira vista, as regras babilônicas são equivalentes ao método usado nos colégios.

Uma diferença é que, hoje, o primeiro passo é chamar o comprimento desconhecido de x. Assim, os sete comprimentos valem 7x e as onze áreas, 11×2 (porque a área do quadrado vale x2). Em seguida, escreve-se a soma: 11×2+7x= 6,25. Esta equação — chamada de segundo grau porque x está elevado ao quadrado — é resolvida de acordo com os mesmo passos estipulados pelas regras babilônicas. Outra diferença é que os babilônios estudavam um problema de cada vez. Em vez disso, por volta de 1550, os italianos Niccolo Tartaglia e Gerolamo Cardano descobriram uma fórmula geral, que valia para qualquer equação do segundo grau (eles também descobriram a fórmula das equações do terceiro grau).

A diferença decisiva, porém, é que mesmo Tartaglia e Cardano ficavam sem saber o que fazer com as respostas negativas. O problema acima, por exemplo, tem duas soluções: 0,5 e -25/22. Mas a segunda era descartada pelos italianos porque não havia lugar para ela em sua imaginação. Tinham bem à frente uma nova dimensão do mundo, mas não conseguiam enxergá-la, um paradoxo que não aconteceu apenas uma vez na história das ciências. No fundo, é um bloqueio semelhante ao que acomete aqueles alunos que não conseguem entender para que serve a álgebra — quando bastaria relaxar e aceitar seus símbolos e regras. Isso não diminui o trabalho e pode nem redundar em ótimas notas, mas afasta aquele bloqueio paradoxal.

“Claro que há vários meios de dar significado à álgebra, mas muitos alunos acabam aprendendo quando admitem que é assim que funciona e pronto”, contabiliza o teórico Rômulo Lins, da Universidade Estadual Paulista, campus de Rio Claro. Doutor em Educação matemática, Rômulo cria um modelo de aprendizagem da Matemática — que está para chegar às salas de aula no Brasil e na Inglaterra. O trabalho é feito em colaboração com a professora Rosamund Sutherland, da Universidade de Londres. Os problemas existentes, de resto são bem conhecidos. “No colégio eu não via uso algum para a álgebra”, diz, por exemplo, Sérgio Groissman, apresentador do Programa Livre, no canal de televisão paulista SBT.

“Aquelas equações do segundo grau serviram apenas para eu passar no vestibular.” Apesar disso, como a maior parte das pessoas, Groissman tem consciência da importância da Matemática para o conhecimento. “Ela mostra diferentes aspectos da vida, numa relação daquele universo teórico com a prática da gente.” Prova disso seria o gosto que tomou pelo assunto quando chegou ao cursinho, onde se mostravam as relações da Matemática com as artes. É uma análise parecida com a do jornalista Jânio de Freitas, da Folha de S. Paulo. Ele também não gostava de Matemática no colégio e acredita que, a partir de certo nível, ela só teria valor para engenheiros ou economistas. “A álgebra é importante, mas grande parte das coisas que se aprendem na escola não tem muita utilidade na vida adulta.”

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Mais curiosa é a disparidade de pontos de vista entre os jogadores de futebol. Raimundo Tavares da Silva, o Bobô do Corinthians, lembra de ter tirado boas notas no colégio. “Mas na vida profissional elas não ajudaram tanto assim.” Ou seja, o oposto de Zetti, Armelino Quagliato, goleiro do São Paulo, que nunca foi além da média nas notas, mas gostava do tema, que acha útil hoje em dia. “Ganhei noção das distâncias e também da velocidade da bola. Claro, não dá para ficar fazendo contas na hora do jogo, mas o raciocínio funciona melhor.”

Como não podia deixar de ser, certos profissionais têm uma relação bem mais próxima com os números, até como meio de lazer. O economista e deputado Delfim Netto, aos 65 anos, diz fazer alguns cálculos todos os fins de semana. “É uma das poucas coisas em que costumo me divertir.” Apenas com lápis e papel, o ex-ministro passa horas de bem com a vida e ainda se exercita na profissão. “Outro dia desenvolvi um modelo inflacionário com hipóteses especiais. Foi divertidíssimo. A Matemática é o uso do raciocínio. Só isso. O maior problema é o professor, que geralmente não a conhece ou não sabe ensiná-la.”

O que há, na verdade, são professores mal preparados que obrigam a decorar fórmulas e mais fórmulas. Palavras do atual reitor da Universidade de São Paulo (USP), Roberto Leal Lobo. Como físico e ex-bom aluno, ele diz que gostava da matéria, que não acha chata. “Mas entendo que outros possam não pensar assim. Para os que não têm afinidade, ela deveria ser apresentada com menos abstrações.” Por último, dois profissionais chamam a atenção para uma visão mais ampla. O médico Aldo Junqueira, da USP, nota que as equações do segundo grau servem como educação filosófica. “Meus filhos têm aversão pela Matemática, mas eles não percebem que ela é uma linguagem e contribui para a formação do pensamento lógico.” O professor Henrique Fleming, do Instituto de Física da USP, lembra por sua vez que a Matemática tem uma poderosa dimensão social, pois é usada para tomar decisões que afetam a maioria da população. Por isso, não concorda que seu ensino seja superficial, embora não tenha de ser exaustiva para todos. “A Matemática é a grande construção do espírito humano, e pelo menos a ponta desse iceberg precisa ser melhor conhecida.”

Talvez seja realmente essa a melhor maneira de ver as invenções algébricas: como criações do espírito, ou obras de arte de um tipo especial. Como a arte, a Matemática não precisa representar objetos ou coisas reais. Ao contrário, uma de suas marcas registradas é afastar-se da realidade imediata. A isso se chama abstração, comparada brilhantemente pelo matemático americano Lawrence Young ao gato do livro Alice no país das maravilhas, que desaparece, pedaço após pedaço, até restar somente o seu sorriso no ar. Esse sorriso seria o gato abstrato, reduzido à sua mais simples expressão. Vale a pena acompanhar esse processo na descoberta dos números complexos, ainda mais abstratos que os negativos.

Hoje, são corriqueiros, usados para descrever os circuitos elétricos dos rá-dios, uma de suas mais triviais aplicações. Mas levou séculos para que fossem aceitos. E não por acaso, pois o mais simples deles — o i — é designado por uma letra porque nem há algarismo que possa representá-lo. Como no caso dos negativos, o número i apareceu em equações conhecidas desde o tempo de Cardano, mas como uma resposta esquisita. Ele é, simplesmente, o resultado de uma conta que se considerava impossível: a raiz quadrada de menos 1. O dilema era o seguinte: a raiz de 4 é 2 porque 2 multiplicado por si mesmo dá 4.

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Mas qual é o número que multiplicado por si mesmo dá -1? Não existe: -1 vezes -1, por exemplo, dá +1 (os sinais de menos viram mais quando são multiplicados entre si). A saída — depois de muito debate que atualmente se consideraria fútil — foi inventar o i. É ele o número que multiplicado por si mesmo dá -1. O que importa é que isso em nada atrapalha o resto da Matemática. Ao contrário: definidos de maneira adequada, os complexos dão resposta às equações que antes se resolviam pela metade, ou não se resolviam.

Como ilustração, veja-se uma equação de aspecto inocente: 5×2+4x+2=0. No passado, porém, ela não podia ser resolvida porque nenhum número comum, colocado no lugar de x, faz com que o lado direito da equação se torne zero. A igualdade só pode ser conseguida com os complexos 2+-6 i e 2–6 i. Ou seja: apenas com tais números, inteiramente aceitos por volta de 1800, completou-se uma busca iniciada quase 4 000 anos antes, com as regras babilônicas. É nisso, antes de mais nada, que consiste a beleza de tais números. Fora daí, a graça da álgebra torna-se uma simples questão de gosto, ou de se estar ou não acostumado com ela.

Para saber mais:

A face oculta do caos

(SUPER número 9, ano 3)

O homem que colocou o infinito no bolso

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(SUPER número 3, ano 8)

Os números não mentem jamais. Será?

(SUPER número 9, ano 8)

O “árabe” que escrevia números

(SUPER número 5, ano 9)

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Pitágoras — Dá nome ao mais popular teorema já demonstrado: a soma dos lados menores de um triângulo retângulo, elevados ao quadrado, é igual ao lado maior, também ao quadrado. O grego Pitágoras, sábio e místico, viveu no sul da Itália, 500 anos antes de Cristo.

Raiz — Designa a operação inversa à da potência. Se 3 ao quadrado é 9, a raiz de 9 é 3. No passado, não havia número ao quadrado que desse um número negativo.

e — Um dos números mais importantes conhecidos, o e vale 2,71828… (a reticência indica que a seqüência não tem fim). Surge freqüentemente na Matemática.

pi — O comprimento de qualquer circunferência, dividido pelo seu raio, resulta no número 3,14159… Seu valor aproximado se conhece há mais de 4 000 anos.

Logaritmo — Como 43= 64, dizemos que log464=3. Isto é, o logaritmo designa outra operação inversa da potência. De maneira geral, se logab=x, então ax=b. Foi criado no século XVI por John Napier

Reais — São os números comuns, a começar pelos inteiros e fracionários positivos. Mais tarde vieram os negativos e os irracionais, números que não podem ser escritos em forma de fração.

Funções — Elas relacionam dois conjuntos de números, como os inteiros e os inteiros ao quadrado, e facilitaram muito o estudo de complexas expressões matemáticas.

Fatorial — Indica que um número deve ser multiplicado por todos os que o antecedem até o 1. Se n vale 3, então 3! significa 3x2x1, que é igual a 6. O termo n! é lido como “n fatorial” e aparece com freqüência em fórmulas estatísticas.

Vazio — Um grupo de pessoas sem pessoas parece idéia inútil, mas indica que uma equação é sem solução: o conjunto de respostas é então chamado vazio.

Imaginário — A unidade dos números complexos, ou imaginários, o i representa a raiz quadrada de menos 1, uma operação que até o final do século XVIII se considerava sem significado.

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