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Minha vida de cobaia da indústria farmacêutica

Dinheiro fácil, pílulas misteriosas, malucos sem TV e prisão de ventre. Um repórter conta como foi ficar internado em um hospital testando um novo remédio.

Por Dean Goodman, de Los Angeles
Atualizado em 22 ago 2019, 18h07 - Publicado em 17 fev 2014, 22h00

Texto: Dean Goodman, de Los Angeles | Edição: Emiliano Urbim | Ilustração: Zansky | Design: Jorge Oliveira


Aquele analgésico que venceu sua última febre não apareceu assim, do nada, na farmácia. Entre o laboratório e a gôndola, foram anos de pesquisa, milhões de dólares, fórmulas descartadas e uma penca de relatórios. Entre eles, o resultado de testes, primeiro em animais e depois em humanos. É aí que entram pessoas como eu.

Pessoas saudáveis, dispostas a ingerir cápsulas, passar cremes, usar aparelhos médicos – tudo para ver se eles funcionam. Só depois disso é que os produtos são testados em doentes. Há riscos, claro. Toda vez que alguém engole uma pílula, está sujeito ao que a indústria polidamente chama de “efeito adverso”. Em 2006, seis britânicos que usaram uma droga anticâncer tiveram falência de órgãos. Mortes não são incomuns na Índia, onde o controle é frouxo.

Aqui nos EUA, estes testes são exaustivamente supervisionados. E, ao contrário do que ocorre no Brasil, as cobaias são oficialmente pagas. Mesmo assim, dinheiro é um assunto sensível: espera-se que sua motivação seja humanitária, ajudar a sociedade. O governo chama o meu cachê de “incentivo de recrutamento”. Eu chamo de férias muito bem pagas.

Como ganhar mais de R$ 9 mil tomando pílulas (supostamente seguras)

Estou no meio de um estudo de 12 dias, meu primeiro. Soube dele no site de uma firma que conduz testes clínicos para o setor farmacêutico. Passei em um exame físico básico e fui convidado a participar. Ao final, receberei um cheque de US$ 4,1 mil. Eu e mais 15 pessoas devemos tomar três pílulas de uma vez toda manhã. Eles checam nossas bocas e mãos para assegurar que ingerimos as cápsulas.

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Alguns recebem o remédio real, outros recebem placebos – ninguém sabe quem ganha o quê. Os pesquisadores checam a velocidade com que a pílula é absorvida e metabolizada. Também temos de nos submeter a coletas de sangue, eletrocardiogramas e outras avaliações frequentes.

Nem penso em “efeitos adversos”. Meu estudo é um dos mais tranquilos: o remédio já está no mercado, mas precisa ser testado novamente antes de ser lançado em outros países. Para preservar a confidencialidade do processo, eu não posso identificar o produto, seu fabricante ou o local dos testes. Só posso dizer que foi na Califórnia e que o remédio trata uma doença incurável que você nunca vai querer pegar.

Um leve aroma de asilo

Estamos detidos em um hospital, numa ala alugada pela firma de testes clínicos. Obedeço todas as ordens da equipe médica. Como e jejuo quando eles mandam. As regras da casa banem comida de fora, romance entre colegas cobaias e navegação imprópria na internet.

Câmeras de segurança gravam nossos movimentos nos corredores. A saída tem alarme e é vigiada por um guarda, que está ali para prevenir a “contaminação” do local com material contrabandeado.

Somos livres para desistir do estudo a qualquer momento. Mas por que largar um empregão desses? Estou ganhando quase US$ 350 ao dia para relaxar em meus pijamas, abusando de todos os jeitos possível de reclinar a minha cama. Despreocupadamente, vejo da janela os pobres motoristas presos no tráfico da intermunicipal. Assisto a vídeos e tiro muitas sonecas.

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Se estou me sentindo criativo, me aventuro na espaçosa área de recreação, onde colaboro com projetos de arte e artesanato coordenados pelo “terapeuta recreativo”. Às vezes, para termos um pouco de ar fresco, ele nos escolta para fora do prédio, até um jardim japonês que faz parte do hospital. São amostras grátis do meu futuro em uma casa de repouso.

Tem gente normal, gente legal e doidos

Antes de se tornar um diretor famoso, Robert Rodriguez participou de quatro testes clínicos e usou o dinheiro para bancar seu primeiro filme, El Mariachi. Ele até pôs um de seus colegas de hospital no filme. Meu grupo inclui aspirantes a estrelas de Hollywood, universitários recém-formados e profissionais da saúde, todos buscando ganhar um dinheirinho extra. Um sujeito está aqui para poder se acertar com a receita federal – ao fazer o imposto de renda, ele esqueceu de declarar justamente seus ganhos como rato de laboratório.

Divido meu quarto com dois caras que estão de férias de seus empregos de verdade. Eles são veteranos, e sou grato por seus conselhos e anedotas. Como eu, eles rodaram o mundo e trocamos histórias de viagens. Qualquer história: temos muito tempo livre.

Nossas instalações abrigam participantes de outros estudos. Pessoas partem e chegam o tempo todo. Minha curiosidade sobre uma safra particular de caras novas vira ansiedade quando descubro que eles estão testando um medicamento porque possuem um distúrbio mental. E se eles bancarem os psicopatas para cima de mim? Uma enfermeira me assegura que eles não são perigosos. “Os malucões”, como meus colegas de quarto os apelidam, se apropriaram da TV da área de recreação. Curtem desenhos animados. Quando eles vagam pelos corredores falando em seus telefones, me pergunto se tem alguém do outro lado.

Há também um grupo de japoneses, que ficam entre eles. Na verdade, há pouca interação entre os participantes dos vários estudos. É como se fôssemos times rivais.

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Este pão que não me deixa

As refeições são deixadas em nossas camas. Escolhemos de um amplo cardápio no dia anterior. Como tenho uma queda por doce, venho chutando o balde com porções duplas de torta de cereja, bolo de cenoura com cobertura, biscoitos de aveia, sorvete.

Três refeições com horários fixos é algo desconfortável, a princípio. E se eu tiver fome às três da tarde? Vou morrer de inanição antes do jantar às cinco? Mas me dou conta de que vivo saciado porque não estou queimando nenhuma caloria. Sinto-me mal por todo o pão que tenho comido.

À noite chega um sanduíche de peru. Estou me sentindo empanturrado. Como mesmo assim. Ganhei 1,5 kg em uma semana. A enfermeira adverte que nosso estilo de vida sedentário pode levar à constipação.

Ela está certa.

Uma certeza sobre o médico

Um doutor faz as rondas ocasionalmente, pergunta como estamos nos sentindo, mas não me parece muito engajado. Isso aqui deve ser dinheiro fácil para ele, assinando prontuários para voluntários saudáveis em vez de ter de lidar com doentes irritantes.

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O altruísmo é um saquinho cheio de algo que eu mesmo fiz

O último dia é estranhamente triste, como o fim de um ano escolar. Será que um dia verei meus novos amigos novamente? Ou as enfermeiras? Nós fazemos nossas malas, deixamos nossos lençóis na lavanderia, cruzamos com o guarda e nos dirigimos para casa. O cheque chega alguns dias depois, quando estou no meio de um processo de desintoxicação – dá-lhe vitamina de frutas e legumes para regularizar meu intestino.

Coincidentemente, acabo de me inscrever em outro teste clínico, desta vez em uma faculdade médica. Sem pernoites; só uma ressonância magnética. Ganho uma foto do meu cérebro, elogios ao meu largo hipocampo e US$ 60. Mas também querem que eu providencie uma amostra de fezes. Eles me dão inclusive um kit caseiro de coleta, com instruções detalhadas.

Eis algo que eu nunca planejei fazer.

Mas, depois de lidar com vários profissionais dedicados, sou arrebatado por uma estranha sensação de altruísmo. Sim, eu quero ajudar pessoas doentes e aguardo ansioso pelo momento de transferir minhas fezes de um baldinho de plástico para vários tubos de ensaio. Mais raciocínios irracionais, porém. Eu quero que elas tenham boa aparência, e obviamente cheirem muito bem. Que vitamina pode proporcionar isso?

Eu hesito diante da solicitação de armazenar as amostras em minha geladeira, e a faculdade envia um motoboy. Eu orgulhosamente lhe estendo a preciosa carga em uma sacola de papel pardo.
Sou oficialmente um humanitário.

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