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4 histórias para entender o pensamento de Tzvetan Todorov

O que Birdman, a Bela e a Fera, Agatha Christie e Kafka têm em comum? Todos se encaixam nas teorias de Tzvetan Todorov, filósofo que morreu terça (7)

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 out 2020, 20h26 - Publicado em 8 fev 2017, 16h57

O filósofo e teórico literário búlgaro Tzvetan Todorov morreu nesta terça-feira (7), aos 77 anos, em um hospital de Paris, na França — cidade que adotou em 1963, aos 24 anos, e em que viveu a maior parte de sua vida.

Ele é uma referência do pensamento europeu contemporâneo, e também trabalhou com história, sociologia e linguística em sua carreira. Todorov não era tão conhecido fora do meio acadêmico quanto outro gênio que nos deixou em janeiro, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman — mas mesmo quem não é de humanas pode gostar muito de uma obra específica do búlgaro, chamada Introdução à Literatura Fantástica e publicada em 1970.

Na obra, que para o padrão dos textões acadêmicos é bem simples de ler, ele analisa histórias de mistério e suspense de várias épocas para descobrir o que elas têm em comum, e cria classificações em que quase tudo se encaixa: de Stephen King a As Mil e Uma Noites. A sensação é a de estar em um documentário que conta os bastidores de bons livros.

A SUPER vai apresentar um pouquinho da teoria do búlgaro analisando obras que você conhece — a primeira, Todorov nunca chegou a conhecer. Vale um último aviso: essa matéria está cheia de spoilers. Cuidado.

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Birdman (Alejandro G. Iñárritu)

Vamos começar pelo ganhador do Oscar de melhor filme de 2015. No longa, Riggan Thomson, um ator famoso por interpretar um super-herói chamado Birdman no cinema, tenta salvar a própria carreira dirigindo e atuando em uma peça de teatro séria aos olhos da crítica, baseada em um conto do escritor norte-americano Raymond Carver. O filme é um prato cheio para entender o que o filósofo define como uma história fantástica, mas precisamos começar a explicação passando antes por outros dois tipos de histórias que você também conhece muito bem: as estranhas e as maravilhosas.

Segundo Todorov, uma história estranha é aquela em que há várias coisas que poderiam ser explicadas por fenômenos sobrenaturais, como espíritos de outro mundo ou personagens com habilidades mágicas. No final, porém, o autor revela que tudo isso é ilusão, e que na verdade, por exemplo, o fantasma era só um lençol pendurado.

Já uma história maravilhosa é aquela em que o impossível é 100% assumido — a ação ocorre em um mundo regido por leis que não são as nossas, e quem vê o filme ou lê o livro assina uma espécie de contrato com quem conta a história. É o caso de Harry Potter, em que você precisa aceitar a existência de pessoas com habilidades mágicas, e de Star Wars, em que é possível alcançar a velocidade da luz com uma estação espacial do tamanho de um pequeno planeta.  

As histórias fantásticas são aquelas que ficam na corda bamba entre os outros dois tipos aí em cima. Nelas acontecem coisas inexplicáveis, mas a ação se passa no mundo que conhecemos. E o leitor, para piorar, é obrigado a acompanhar tudo de um ângulo em que ele não pode tomar partido: fica impossível saber se o sobrenatural está mesmo lá ou se tudo foi só um devaneio ou um sonho de um personagem. É exatamente isso que acontece em Birdman.

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Ao longo do filme, Thomson é visto flutuando dentro de seu camarim em posição de meditação, movendo objetos com o pensamento e voando pela cidade. O espectador é levado a crer que essa é só sua imaginação, dominada pelo super-herói que ele costumava interpretar. Até que, no final do filme, sua filha, ao olhar pela janela, sorri e vê o pai realmente voar — ou não, já que ele pode também ter cometido suicídio. Os créditos descem e não é possível tirar uma conclusão. Fica impossível saber se a história pode ou não ser explicada pelas leis da física, e é justamente isso que a torna, na classificação de Todorov, fantástica.  Uma autêntica pulga atrás da orelha.

Mas o diretor Alejandro G. Iñárritu não para por aí na hora de ilustrar a teoria do acadêmico búlgaro. Todorov afirma que tudo que é apenas estranho está associado de certa maneira ao passado, ou seja, a uma explicação já conhecida, a algo que pode ser visto. Histórias maravilhosas, por outro lado, são cheias de coisas desconhecidas, e, portanto, mais parecidas com o futuro.

O fantástico é a hesitação, a incerteza entre essas duas explicações. Por causa disso, ele costuma ocorrer no presente. Birdman é todo filmado em um take só, sem cortes. Você é obrigado a correr atrás de um determinado personagem e a aceitar sua perspectiva o tempo todo. Sem acesso a nada visto pelos olhos de outra pessoa em outro momento, você não tem informação suficiente para tirar conclusões. Nasce, assim, a mágica.

LEIA: 10 pensadores para você entender o mundo

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Agata Christie
(Dominio Público)

E não sobrou nenhum (Agatha Christie)

Você também pode conhecer esse romance policial pela primeira tradução de seu título no Brasil, O caso dos dez negrinhos. É um caso de arrancar os cabelos: dez pessoas sem relação entre si são levadas a uma ilha à convite de um anfitrião misterioso. Chegando lá, uma gravação anuncia que todas serão mortas. Um poema, com cópias emolduradas e penduradas na parede do quarto de cada um dos hóspedes, descreve com exatidão como ocorrerá cada assassinato, e a previsão sempre se cumpre. Tudo leva a crer que entidades sobrenaturais são responsáveis pelos assassinatos — mas no final o responsável e seu método são revelados. Não, a SUPER não vai te contar nada. Leia!

Todorov explica que a origem do romance policial como conhecemos está no escritor americano Edgar Allan Poe, cujos contos têm tom próximo do fantástico, mas costumam acabar com explicações racionais — ou seja, são, na verdade, apenas estranhos. “Há por um lado muitas soluções fáceis, à primeira vista, tentadoras, mas que se revelam falsas uma após a outra”, afirma o autor no livro. “Por outro lado, há uma solução inteiramente inverossímil, que no final se revelará a única verdadeira.”

A bela e a fera
(Reprodução)

A Bela e a Fera (Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve)

O conto de fadas, escrito originalmente pela francesa Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve em 1740, parece fantástico à primeira vista: um monstro de aparência execrável é salvo por uma mulher que o ama, e então assume a aparência de um belo príncipe. Neste ponto, Todorov alerta que é muito fácil confundir o fantástico com outro gênero: a alegoria. Uma alegoria é uma representação simbólica da realidade. Ela costuma carregar uma moral da história, e a ideia é que você a leia como uma grande metáfora, em que nada deve ser interpretado em seu sentido literal. Na época em que A Bela e a Fera foi escrito, casamentos arranjados por interesses econômicos e políticos eram rotina, e não era raro que moças sem autonomia acabassem casadas com péssimos maridos — “feras”, no sentido figurado.

É por isso que quando um rato, um gato ou um leão começam a falar em uma fábula infantil, você não se surpreende nem busca explicações em outro lugar: você entende na hora que o autor não quer dizer exatamente isso. Em uma história fantástica, por outro lado, as coisas estranhas que acontecem não simbolizam outras coisas, mas são só isso mesmo: estranhas. Feitas para dar um nó no seu bom-senso.

LEIA: Uma breve história da filosofia

Kafka
(Domínio Público)

A Metamorfose (Franz Kafka)

Já deu para entender como nasce uma obra fantástica: acontecem coisas estranhas no mundo que você conhece, e não dá para saber se elas são realmente sobrenaturais ou se podem ser explicadas pelas leis do nosso mundo. Mas e se alguém fizesse o contrário? E se alguém começasse uma história logo de cara com um fato muito, muito estranho, e a parte chocante dessa história fosse justamente o fato de que todo mundo trata o fato normalmente, como se nada tivesse acontecido?

É por isso, entre outras coisas, que o tcheco Franz Kafka mudou a história da literatura. Uma de suas maiores obras, A Metamorfose, começa assim: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso.”

Samsa, porém, não parece demonstrar preocupação com suas novas patinhas ou sua couraça. Ele se preocupa com o próprio emprego. O que dirá para o patrão? E sua família, por cujo sustento é responsável, o que será dela? Se ele conseguir cair no chão com as patinhas viradas para baixo, será que ele poderá tomar o próximo trem e ir trabalhar com só um pouco de atraso? Tudo é narrado na linguagem mais burocrática possível, como um médico diagnosticando uma gripe.

A história termina em total paz de espírito. Gregor, que não volta à forma humana, morre. E sua família, comemorando o fim do transtorno, vai viver a vida com alegria, pensando no lado bom da história: agora eles têm os próprios empregos e não dependem mais do filho para se sustentar. Segundo Todorov, a máxima subversão do gênero fantástico, e seu grande exemplo no século 20.

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Para quem chegou até aqui, fica um recado: Tzvetan Todorov tem mais de 20 livros, e essa é só parte do que você pode encontrar em um deles.

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