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Por Bruno Garattoni
Vencedor de 15 prêmios de Jornalismo. Editor da Super.
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A geopolítica da vacina

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 22 out 2020, 16h49 - Publicado em 22 out 2020, 16h28

Entenda por que Bolsonaro quer barrar a CoronaVac chinesa – mesmo que isso signifique prolongar a pandemia em São Paulo e no resto do país

Na terça-feira, 20 de outubro, o Ministério da Saúde anunciou a compra, por R$ 2,6 bilhões, de 46 milhões de doses da vacina CoronaVac – sendo 6 milhões produzidas na China pela empresa farmacêutica Sinovac e 40 milhões fabricadas pelo Instituto Butantan, em São Paulo, com entrega em dezembro deste ano. Mas no dia seguinte, dia 21 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro vetou a compra da vacina chinesa, cujo desenvolvimento está bastante adiantado: ela já foi aplicada em 50 mil pessoas na China e 9 mil no Brasil, sem efeitos colaterais relevantes – e os testes da Fase III, que medem a eficácia da vacina, estão na reta final. Primeiro, Bolsonaro disse que a compra só seria concretizada após a aprovação da vacina pela Anvisa. Depois, afirmou que nem assim. 

Por que o governo federal mudou de ideia em apenas 24 horas? O estado de São Paulo, que organizou o negócio com os chineses, pode comprar a CoronaVac por conta própria? Quanto tempo, afinal, os brasileiros terão de esperar por uma vacina? Vamos lá.

 

1. São Paulo depende do governo federal para pagar a vacina – e Doria sabe disso. 

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Primeiro, a questão mais simples: São Paulo pode comprar e aplicar a vacina por conta própria? Provavelmente não. O estado tem orçamento anual de R$ 240 bilhões, mas ele é altamente vinculado, ou seja, a maioria das despesas é fixa e há regras que impedem o remanejamento do dinheiro. Além disso, com a crise econômica decorrente da pandemia, SP está sofrendo uma queda brutal na arrecadação de impostos, que pode chegar a R$ 20 bilhões até o final do ano. O governo federal prometeu repassar R$ 7,7 bi a São Paulo, mas isso nem chega perto de cobrir o rombo. O estado vai fechar o ano no vermelho, e poderá ter dificuldades para manter os serviços públicos essenciais funcionando normalmente. 

São Paulo, como os demais estados, também não pode pegar dinheiro emprestado. Desde 1997, quando o governo Fernando Henrique Cardoso assumiu e refinanciou as dívidas dos Estados, eles são proibidos de emitir títulos, ou seja, contrair mais dívida (só o governo federal pode emitir títulos; como aqueles que bancos e investidores compram no Tesouro Direto). Os estados até podem pleitear empréstimos de bancos privados, mas dificilmente algum deles aceitaria ceder R$ 2,6 bilhões numa operação do tipo – sem garantias equivalentes e com risco real de calote.

Sem dinheiro, e sem poder emitir dívida, SP não tem de onde tirar os R$ 2,6 bilhões para pagar as vacinas – e é exatamente por isso que procurou o Ministério da Saúde. Somente com verba federal, do SUS, será possível comprar e fabricar a CoronaVac. Ou seja, a decisão sempre esteve nas mãos de Bolsonaro. E o governador João Doria sabe disso. Seus discursos, em que deu a entender que estava tudo certo e chegou a mencionar datas de início para a vacinação (primeiro dezembro, e depois janeiro), foram uma manobra política calculada. 

Como, também, pode ter sido calculado o aparente destempero de Bolsonaro com relação à vacina chinesa. 

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2. Bolsonaro tinha ciência do que o ministro Pazuello estava fazendo – e autorizou a compra da CoronaVac. 

Bolsonaro afirmou na noite de quarta-feira, dia 21 de outubro, que não havia sido informado sobre as negociações envolvendo a CoronaVac. E que o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, se precipitou ao fechar negócio. Isso, para usar termos gentis, parece bem difícil de acreditar. Pazuello é um general da ativa, que não tem experiência no campo da saúde e foi nomeado ministro por sua disciplina militar e fidelidade absoluta a Bolsonaro. Ele nunca, jamais, em hipótese nenhuma, decidiria por si a compra da vacina, e muito menos anunciaria isso para a imprensa sem prévia anuência do chefe. 

A conclusão disso é óbvia: tudo indica que, inicialmente, Bolsonaro autorizou a compra da CoronaVac. Se ela se mostrar eficaz, daria ao Brasil condições de imunizar dezenas de milhões de pessoas já no começo de 2021. Isso salvaria dezenas de milhares de vidas, reduziria drasticamente o sofrimento da população e daria um impulso brutal à economia – de quebra, aumentando a arrecadação de impostos e solucionando os problemas de caixa ligados ao auxílio emergencial. Bolsonaro, não Dória, seria o maior beneficiado politicamente (já que a vacina pertenceria ao SUS).  

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Mas, em 24 horas, Bolsonaro mudou de ideia e passou a vetar o negócio. Alguma coisa aconteceu nesse curto período. A possibilidade mais banal é que o presidente teria mudado de opinião ao se deparar com reclamações de seguidores sinófobos nas redes sociais. Trata-se de uma explicação simplória, até para os padrões limítrofes de 2020. Abrir mão da CoronaVac, e das consequências positivas que ela traria, terá um custo político altíssimo para o próprio Bolsonaro (já que as outras vacinas, como veremos no item 4, devem demorar bem mais a chegar ao Brasil). É algo elementar, que certamente não escapa à capacidade de compreensão do governo.

Isso abre espaço para outra hipótese: a de influência externa.

 

3. A adoção da vacina chinesa pelo Brasil teria consequências geopolíticas inegáveis – e reduziria a influência dos EUA sobre a América Latina. 

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Se a CoronaVac se provar eficaz, o Brasil só teria a ganhar com ela (como mostramos no item anterior). Os Estados Unidos, por outro lado, sofreriam perdas geopolíticas consideráveis. A influência chinesa na América Latina cresceria, iniciando um processo de desconstrução dos estereótipos construídos pelo soft power americano ao longo do século 20. Os brasileiros que recebessem a vacina e fossem imunizados por ela passariam a enxergar a China com menos desconfiança e mais interesse, deixando de ter os EUA como referência única e absoluta. 

Essa mudança de paradigma tenderia a se espalhar pelo continente, tanto pela influência político-cultural do Brasil sobre os vizinhos quanto pela exportação da vacina em si (o Instituto Butantan poderia fabricá-la e vendê-la para os demais países da AL). Também não seria positivo para os EUA, em termos geopolíticos, que um país de terceiro mundo fosse capaz de sair na frente, imunizando grande parte do seu povo antes dos americanos (cujas vacinas devem demorar mais que a CoronaVac). Isso certamente causaria descontentamento na população dos EUA, com perdas políticas para o governo.   

Com a eventual adoção da CoronaVac pelo Brasil, a China certamente convenceria outros países a empregá-la, multiplicando seu ganho geopolítico. E se colocaria à frente dos Estados Unidos aos olhos do mundo. A corrida pela vacina é a maior disputa geopolítica desde a corrida espacial – tanto é assim que a Rússia batizou a sua de Sputnik. Em suma: CoronaVac no Brasil não interessa aos EUA. 

E o governo Bolsonaro tem demonstrado alinhamento irrestrito aos interesses americanos. A cessão da base de lançamento de Alcântara (onde brasileiros não poderão sequer entrar), a importação maciça de diesel dos EUA (com consequente desinvestimento nas refinarias da Petrobras), as ameaças à Venezuela (rompendo a tradição diplomática brasileira), o veto a equipamentos 5G chineses e uma oferta bisonha de exploração da Amazônia são alguns exemplos dessa postura – que também inclui uma canhestra declaração de afeto e até a estranha visita de Bolsonaro à CIA

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Para os EUA, o ideal é que o Brasil utilize vacinas americanas, ou no máximo europeias. O problema, para nós, é que elas estão menos adiantadas.

 

4. As outras vacinas são mais complexas. E devem demorar mais.

A CoronaVac é feita com Sars-CoV-2 inativado, ou seja, submetido a calor ou produtos químicos. Isso danifica o vírus, que perde a capacidade de se replicar e causar doenças. A tecnologia de vírus inativado existe há mais de 60 anos, e é usada nas vacinas contra gripe, meningite, hepatite e poliomielite, entre outras.

Já as vacinas de Oxford (desenvolvida em parceria com a multinacional AstraZeneca) e das empresas americanas Pfizer, Moderna Therapeutics e Johnson & Johnson usam tecnologias diferentes. As vacinas de Oxford e da J&J são do tipo vetor viral: elas contêm um vírus inofensivo (um adenovírus), que é modificado em laboratório para produzir proteínas do Sars-CoV-2. Essa técnica, que também é adotada pela vacina russa Sputnik, é mais complexa que a da CoronaVac – a Sputnik, por exemplo, usa dois tipos diferentes de adenovírus, um para cada dose da vacina. Além disso, Oxford e J&J decidiram paralisar temporariamente seus respectivos testes depois que dois participantes tiveram reações adversas (coisa que não aconteceu com a vacina chinesa). As vacinas de vetor viral devem, inclusive por isso, levar mais tempo do que a CoronaVac para chegar.

A Pfizer e a Moderna Therapeutics, por sua vez, apostam nas vacinas de RNA: uma tecnologia nova, que explicamos detalhadamente na reportagem de capa da SUPER de julho. As vacinas de RNA nunca foram usadas em humanos, o que demanda testes ainda mais detalhados, mas seu grande porém é outro: o transporte. O RNA é frágil, e as vacinas têm de ser mantidas sob refrigeração extrema. A Pfizer teve que desenvolver uma caixa especial para transportar sua vacina, que precisa ficar a 70 graus negativos (muito abaixo do alcance dos freezers comuns). As vacinas de RNA são difíceis de conservar, o que atrapalha -e restringe- sua distribuição.   

***

Resumindo. O governo federal fez uma curva de 180 graus no tema CoronaVac, e ela pode estar ligada a questões geopolíticas – muito mais fortes, profundas e demonstráveis que o chilique de meia dúzia de pessoas no Twitter. E em se mantendo a nova linha, com o veto à vacina chinesa, é pouco provável que o Brasil seja capaz de imunizar uma parcela razoável de sua população no começo de 2021. Não é impossível, mas é improvável. Se você estava animado, achando que em janeiro ou fevereiro dezenas de milhões de brasileiros já teriam sido vacinados, talvez seja melhor tirar o cavalo da chuva – e se preparar para ficar em isolamento social por um tempo mais longo. 

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