O que temos para comemorar no 27º aniversário do Hubble
O veterano explorador da órbita terrestre está muito bem, obrigado – e mudou para sempre a forma como eu, você e o resto dos mortais vemos o espaço
No final do documentário Nostalgia da Luz, do diretor chileno Patricio Guzmán, aparece uma mulher, já adulta, que ainda criança perdeu os pais, ativistas políticos, para a ditadura militar de Augusto Pinochet. Eu já me esqueci dos detalhes da história, mas o essencial ficou: em busca de conforto emocional, ela se tornou astrônoma e foi trabalhar no ESO, o Observatório Europeu do Sul, no deserto do Atacama. Lá está sediado o maior conjunto de telescópios ópticos do mundo, o VLT (em inglês, very large telescope, ao pé da letra, “telescópio muito grande”).
Ao entrevistador, ela explicou que estudar a idade e a extensão do Universo é terapêutico. Não é difícil de entender. Eu e você somos só mais um punhado sem graça de poeira de estrela que deu a sorte de ganhar vida própria – e nossos átomos logo vão voltar para dentro do Sol. Em 1,75 bilhão de anos, a Terra sairá da zona habitável de sua estrela, e em cerca de 6 bilhões será engolida por ela. O resto da galáxia não está nem aí para isso. E com razão.
Nessa imensidão há planetas como os nossos – e alguns deles abrigam vida inteligente, pois isso é inevitável do ponto de vista estatístico. Esses mundos distantes estão, na prática, no passado, e todas as notícias que chegam de lá não vêm mais rápido que a velocidade da luz – o que é muito pouco para um lugar que, segundo boa parte dos palpites, é infinito. Se você acender uma lâmpada em uma ponta da Via Láctea, um observador da outra ponta vai demorar 100 mil anos para vê-la acesa. E essa é só uma galáxia entre milhões que estão por aí.
Há 27 anos, quando o telescópio espacial Hubble foi lançado, o espaço, no imaginário popular, era um lugar vazio de dar dó. É claro que a física e a matemática já sabiam que muita coisa estava lá no alto, e isso não era novidade – até o filósofo italiano Giordano Bruno, contemporâneo do jesuíta José de Anchieta, já tinha sacado que aqueles pontos de luz que a gente vê lá no céu eram, na verdade, outros sóis com seus próprios planetas.
Acontece que os números não são palpáveis para quem não é capaz de compreendê-los – saber não é o mesmo que ver. O Hubble pegou o tédio de termos técnicos e artigos científicos e, como uma espécie de Carl Sagan mecânico, transformou tudo em inesquecíveis pinturas surrealistas de bilhões de quilômetros de extensão. Massas psicodélicas de cor, pilares de gás maiores do que qualquer distância que poderíamos percorrer em uma só vida. O Universo se tornou democrático, ganhou o direito de mexer com a imaginação de todo mundo que lesse uma revista na sala de espera do consultório. Ele saiu da obscuridade e nos fez sentir na pele que somos muito, muito pouco.
É claro que o legado do Hubble vai muito além de seu impacto na opinião pública. Desde de 24 de abril de 1990, quando o ônibus espacial Discovery o levou à órbita da Terra, ele já viabilizou mais de 12,7 mil artigos científicos, escritos por 4 mil pessoas. Logo no começo da carreira, o telescópio registrou a queda de um cometa em Júpiter – um passo essencial para entender como corpos celestes menores podem levar substâncias como a água para outros, maiores e inóspitos. Com suas lentes, demos uma olhada na superfície misteriosa de Ceres, descobrimos que o insuspeito anão Plutão tem cinco luas e provamos que buracos negros imensos estão no centro de várias galáxias.
Também é dele a previsão de um acidente de trânsito assustador: a Via Láctea vai bater em sua vizinha Andrômeda em 4 bilhões de anos, e não há nada que a gente possa fazer.
Resumo da ópera? Não há registro de um instrumento científico mais produtivo em toda a história.
Agora, aos 27 anos, o Hubble é velhinho, e sua vida útil já foi esticada para muito além dos 15 anos previstos originalmente – mérito de cinco missões de manutenção, a última delas em 2009. Apesar disso, ele nem pensa em aposentadoria, e pode, ao que tudo indica, operar por mais uma década.
Nesse tempo, apareceram vários sucessores mais avançados. O Kepler, lançado em 2009, já descobriu mais de 2 mil exoplanetas, e o James Webb, equipamento mais caro da história da Nasa, está programado para decolar em outubro de 2018. Ambos estão entre os produtos tecnológicos mais incríveis da humanidade – mas ainda vão comer muito lixo espacial para igualar os feitos do Hubble.