A ficção científica é a história do futuro. Mais respeito por ela.
Longe de ser literatura de segundo escalão, a sci-fi ajuda a antecipar e construir as próximas décadas.
Isaac Asimov (1920-1992), um dos mais celebrados escritores de ficção científica em todos os tempos completaria 100 anos em 2020. Mesmo assim, o gênero ao qual ele se dedicou ainda é considerado algo menor dentro da literatura. Não faz sentido.
Para começar, a sci-fi é mais antigo do que muita gente supõe. O primeiro livro que merece ganhar esse rótulo foi escrito em 1608, pelo famoso astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630). Junto com a obra nasceu o preconceito com o gênero.
Kepler na ocasião estava encantado com o então novíssimo (e ultracontroverso) copernicanismo – a noção de que a Terra não está no centro do Universo, e que a tal percepção de “centro” é relativa. Quem está na Terra vê os movimentos celestes como se ela fosse de fato o umbigo de tudo. Mas como seria ver o céu a partir da Lua? Partindo desse pressuposto, Kepler escreveu um pequeno romance, Somnium, que narrava uma visita até a Lua.
Claro, ele não tinha como imaginar, no século 17, uma viagem propelida até lá por tecnologia, então lançou mão de elementos mágicos como artifício para que um personagem fictício, aprendiz do grande astrônomo Tycho Brahe, pudesse cruzar a distância até o solo lunar, onde faria suas observações científicas.
A história tinha aspectos autobiográficos (o próprio Kepler fora pupilo de Brahe), e o manuscrito dela acabou sendo usado da forma mais perversa possível: serviu de evidência para “provar” que a mãe de Kepler era bruxa, e ela foi encarcerada durante longos anos. Acabou que o astrônomo teve de colocar sua vida de lado para tentar libertar a mãe, o que conseguiu com muito custo. E o livro só foi de fato publicado quatro anos após a morte de Kepler, em 1634. Se isso não foi demonização da ficção científica, não sei o que seria.
Intercâmbio
Fato é que nascia ali o fértil intercâmbio de ideias entre a realidade e as especulações científicas propiciadas pela ficção. Uma viagem tripulada à Lua como a imaginada por Kepler só se tornaria realidade em 1969. Mais de cem anos antes, porém, surgia a primeira narrativa “tecnológica” da empreitada, nas páginas de Da Terra à Lua, do francês Júlio Verne (1828-1905), escrito em 1865. Impressiona a sensibilidade do autor.
Ele previu que a viagem envolveria se adaptar a circunstâncias como a sensação de ausência de peso e a necessidade de reciclar o ar no interior da cápsula. Nem tudo foi acerto, evidentemente: sem estar familiarizado com a tecnologia dos foguetes (que só começaria a ser estudada a sério para aplicações espaciais no fim do século 19), ele apostou que um canhão gigante dispararia uma bala contendo os viajantes em sua jornada até a Lua. (O módulo de comando e serviço da Apollo até se parece com uma bala, mas, fosse lançado por um canhão, os pobres ocupantes morreriam instantaneamente pela aceleração envolvida.)
Verne concebeu muitas outras aventuras tecnológicas, como Vinte Mil Léguas Submarinas e Cinco Semanas em um Balão, antecipando revoluções de transporte, dos submarinos aos dirigíveis. Eram obras em consonância com o espírito da época: o século 19 foi de fato o alvorecer tecnológico da humanidade, e com ele a ficção científica se expandiu por vários territórios.
Em 1818, Mary Shelley concebeu uma obra que ecoaria o crescimento da nossa compreensão da biologia, com Frankenstein. (Se você acha que esse clássico do terror está fora de moda, saiba que uma pesquisa feita em 2019 pela Universidade Yale “reviveu” cérebros de porcos mortos, depois de desconectá-los dos corpos.)
Já nos anos finais do século 19, o escritor inglês H.G. Wells antecipou e ecoou diversas revoluções científicas: aviões, tanques de guerra, armas nucleares, televisão via satélite, viagens espaciais – e descreveu algo similar à internet. Ele também foi um dos primeiros a imaginar viagens temporais, com seu A Máquina do Tempo (1895). Ali, Wells mostra o passado e o futuro como se fossem “lugares” na paisagem do Universo. É exatamente o que a Teoria da Relatividade, de Einstein, descreveria no século seguinte.
Neurônios eletrônicos
Então chegou o século 20, e com ele a era de ouro da ficção científica. Esnobada pelos literatos, ela era consumida vorazmente em revistas de baixo custo publicadas nos anos 1930 a 1950. Foi nelas que Isaac Asimov começou a construir sua reputação.
Apaixonado pela noção dos robôs, esse americano nascido na Rússia criou em 1942 as famosas Três Leis da Robótica: 1ª lei – um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal; 2ª lei – um robô deve obedecer às ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei; 3ª lei – um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a primeira e a segunda leis.
Com suas Três Leis da Robótica, Isaac Asimov simplesmente inaugurou a discussão da ética aplicada à inteligência artificial.
Com esse conjuntinho de regras, Asimov simplesmente inaugurou a discussão da ética aplicada à inteligência artificial – um tema que se torna a cada dia mais relevante.
A própria ascensão da vida virtual também nasce na ficção científica. É com o primeiro livro de William Gibson, Neuromancer (1984), que surge a palavra ciberespaço (e com ela o movimento literário cyberpunk).
Por vezes, a porosidade entre ficção e fato científico é tal que eles se misturam com total liberdade. O grande escritor inglês de ficção científica Arthur C. Clarke foi o inventor dos satélites geoestacionários, que permanecem sempre sobre o mesmo ponto da superfície da Terra, acompanhando sua rotação. Ele descreveu o conceito na revista Wireless World, em 1945. Hoje, esses satélites são os mais usados para telecomunicações no mundo todo. O mesmo Clarke discutiu os perigos da inteligência artificial no clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço, tornado filme em 1968, numa parceria com Stanley Kubrick.
A ficção científica, enfim, realiza a proeza de refletir as preocupações da época em que é escrita, e, ao mesmo tempo, antecipa situações e possibilidades do futuro – situações que, com frequência, se transformam em realidade. Se isso não é literatura de primeiríssima linha, não sei mesmo o que é.