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A fúria de Moby Dick

A fantástica história da baleia que afundou um barco e inspirou um dos maiores clássicos da literatura

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 dez 2018, 15h09 - Publicado em 30 jun 2004, 22h00

Oceano Pacífico, 20 de novembro de 1820. Mais um dia de trabalho começava para os tripulantes do Essex, que estava há mais de um ano em alto-mar capturando baleias para extrair o óleo usado na iluminação pública e na lubrificação das máquinas industriais. Um dia que entrou para a História. O dia em que, pela primeira e única vez, foi registrado um ataque de uma baleia contra um barco. Um ataque que deixaria os 20 tripulantes à deriva durante três meses, obrigando-os até a comer os próprios companheiros mortos para não passar fome – e que serviria de inspiração para um dos maiores clássicos da literatura mundial, Moby Dick.

Hoje, a caça é largamente condenada, mas no início do século 19 a extração do óleo de baleia era uma importante atividade econômica. A ilha de Nantucket, na costa leste dos Estados Unidos, era um dos maiores centros baleeiros. Mais de 70 embarcações iam e vinham constantemente. O trajeto era bem conhecido dos marinheiros: pelo Atlântico, rumo ao sul. Os barcos, porém, só retornavam ao porto com os porões cheios. Por isso, era preciso contornar a América do Sul em direção ao Oceano Pacífico.

Era exatamente isso que o Essex tinha feito. Naquela manhã de novembro, ele contava com aproximadamente 700 barris de óleo, metade de sua capacidade total. O céu estava claro e havia pouco vento (clima perfeito para caçar) quando os esguichos dos cetáceos foram avistados – e os botes se lançaram ao mar. O primeiro imediato Owen Chase logo teve de dar meia-volta para reparar seu barco, atingido pela cauda de uma baleia, fato bastante corriqueiro.

Foi quando a tragédia começou. O camareiro Thomas Nickerson, que ajudava Chase no conserto, viu algo estranho. Era um cachalote macho, com 26 metros de comprimento, cerca de 8 toneladas e a cabeça cheia de cicatrizes. O bichão não era apenas enorme. Estava a menos de 35 metros do Essex e nadava em direção a ele, com a cauda de 6 metros de largura chacoalhando para cima e para baixo.

“Olhamos uns para os outros com total espanto, quase mudos”, escreveu Chase no livro Narratives of The Wreck of the Whale-Ship Essex, em que relata o episódio. Foi tudo muito rápido. De um golpe, o animal atingiu a parte frontal do navio. Em seguida, passou por baixo do casco, arrancou a quilha e emergiu do outro lado. Afastou-se um pouco e voltou ao ataque. Em grande velocidade, atingiu o barco logo abaixo da âncora. O Essex estava condenado a ser enterrado no fundo do mar. A baleia se desvencilhou dos destroços e saiu nadando para nunca mais ser vista.

Terror no mar

Chase, 22 anos, era tripulante do Essex desde 1815. Pela primeira vez, fazia uma viagem na condição de primeiro imediato (o último passo antes de se tornar capitão). Thomas Nickerson estreava no mar e era o mais jovem dos marinheiros. Tinha apenas 14 anos e sonhava desde criança em partir com um baleeiro. Mal sabia ele que o barco, com mais de duas décadas de serviços no mar (e fama de pé-quente), faria sua última viagem. Todos estavam preparados para ficar até três anos a bordo. No momento do ataque, porém, foi só desespero. Owen, Nickerson e outros sete homens tiveram de correr para tirar o máximo de provisões dos destroços do Essex e colocar na baleeira. A poucos metros de distância, os 11 tripulantes que estavam nos dois botes que espreitavam as presas na água quase não acreditavam no que viam. “Nenhuma palavra foi dita por vários minutos”, relatou Chase em seu livro. Com muito esforço, foi possível recuperar 270 quilos de bolachas, um pouco de água doce, algumas tartarugas que haviam sido capturadas nas Ilhas Galápagos e instrumentos de navegação.

Quando o sol raiou, todos se dividiram nos três barcos menores e se prepararam para partir. Tinham duas opções: ir até as ilhas Marquesas, na Polinésia, a 1200 milhas (cerca de 2 mil quilômetros), ou tentar chegar à costa da América do Sul, bem mais distante. Por medo dos canibais que, dizia-se, habitavam a região das Marquesas, escolheram a segunda alternativa. O destino se revelaria de uma trágica ironia (veja no infográfico da página 30 o percurso feito pelos náufragos).

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Em meio às águas geladas do Pacífico, os marujos experimentaram novos limites de sobrevivência. Muitos nem conseguiam dormir, só de pensar no desastre. E a natureza não ajudava em nada. Os ventos fortes desviavam as baleeiras do destino sonhado e os jatos de água salgada deixavam todos molhados e com frio. Os cabelos começaram a cair e a pele queimada pelo sol cobria-se de dolorosas feridas. O primeiro grande desafio foi mesmo a fome. A pouca comida resgatada proporcionava apenas 500 calorias diárias para cada um – menos de um terço do necessário para um adulto. Para piorar, logo no terceiro dia parte das bolachas se perdeu depois que o bote de Chase foi atingido por uma onda. Em seguida, as bolachas do bote do capitão George Pollard Jr. se estragaram.

O próximo martírio foi a sede. “A violência da sede delirante não encontra paralelo no catálogo das calamidades públicas”, observou Chase na época. Resultado: gargantas irritadas, saliva grossa e língua inchada. Pouco mais de 20 dias depois, a solução foi beber a própria urina. Ao final do primeiro mês à deriva, uma esperança renasceu. O grupo avistou terra firme. Não foi muito difícil chegar até a ilha, mas ela tinha pouco (em termos de comida e bebida) a oferecer aos náufragos, que ficaram apenas uma semana e voltaram ao mar. Três marinheiros acharam melhor ficar do que se arriscar naquela viagem rumo ao desconhecido. Os outros dividiram-se nos três botes e seguiram em frente, para mais privações e perigos.

De cara com a morte

No caminho, um dos barcos se perdeu – para sempre. E em 20 de janeiro de 1821 morreu Lawson Thomas, um dos tripulantes do bote do arpoador Obed Hendricks. Era a terceira morte desde o afundamento do Essex. Até então, os corpos eram jogados ao mar. Naquele momento, uma necessidade se impôs: por que não usá-lo como alimento?

Por mais que o canibalismo fosse visto como um ato incivilizado, a prática era razoavelmente disseminada nos oceanos, uma saída legítima para a sobrevivência. Cruel ironia. Meses antes, todos preferiram evitar as ilhas Marquesas por medo dos canibais. Agora, estavam prestes a comer um de seus companheiros. O jeito foi retirar todos os sinais de humanidade, como cabeça, mãos e pés. Em registros posteriores, o capitão Pollard Jr. contou que, antes de ser comidos, os órgãos e a carne eram assados numa pequena chama acesa sobre uma pedra chata no fundo do bote.

Não demorou muito para o desespero atingir níveis ainda maiores. Apenas duas semanas mais tarde, diante da absoluta falta de comida, decidiu-se fazer uma espécie de votação para definir quem seria o próximo a servir de alimento aos sobreviventes. No dia 6 de fevereiro, Owen Coffin, então com 18 anos, foi o escolhido. Ele era primo do capitão – e estava no mesmo bote. A mãe do garoto, Nancy, nunca perdoou o sobrinho por não ter impedido tamanha crueldade com o filho – e, o que é ainda pior, por ter ele próprio se alimentado daquela carne. “Ela ficou quase louca ao saber daquilo e nunca mais tolerou a presença do capitão”, escreveu Nickerson.

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A tragédia estava por terminar. Doze dias depois, em 18 de fevereiro de 1821, quase três meses após o naufrágio, o primeiro barco foi resgatado, navegando sem controle na altura do porto de Valparaíso, no Chile. Com os olhos saltados da cavidade do crânio e o rosto salpicado de sal e sangue, Owen Chase, Thomas Nickerson e o arpoador Benjamin Lawrence tiveram de ser carregados para dentro do navio inglês que os avistou. Cinco dias mais tarde, o bote do capitão Pollard se aproximou da Ilha de Santa Maria, também na costa chilena.

Quando os tripulantes do baleeiro Dauphin avistaram a embarcação, só viram ossos. Pollard e Charles Ramsdell estavam encolhidos, cada um em uma extremidade, incapazes de se mexer. Não queriam largar, de jeito nenhum, os ossos que chupavam em desespero, único alimento que restara desde a última morte do grupo. Os três marujos que ficaram na ilha Henderson foram resgatados no dia 9 de abril.

Por mais incrível que possa parecer, os oito homens que sobreviveram à tragédia do Essex acabaram por voltar ao mar. Pollard reassumiu o posto de capitão no inverno seguinte e levou consigo Nickerson, promovido a arpoador. A viagem foi um tremendo fracasso. Pollard decidiu virar vigia noturno em Nantucket. E Nickerson transformou-se em dono de pousadas na ilha. Chase fez mais uma viagem antes de se tornar capitão. Tinha 28 anos – e prosseguiu atravessando os oceanos por vários anos.

No entanto, as lembranças daquela manhã de céu azul e pouco vento nunca o deixaram em paz. Morreu em 1869, aos 71 anos, considerado louco. No fim da vida, sentia fortes dores de cabeça que acreditava ser conseqüência do naufrágio. Passou também a esconder comida no sótão de sua casa. Nem mesmo a paixão pelo mar foi capaz de fazê-lo superar as cicatrizes deixadas por aquele cachalote.

Tragédia em quatro momentos

Foram 2.500 milhas no mar até chegar à costa do Chile.

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1. O começo do sofrimento

O Essex foi atacado em 20 de novembro de 1820 e a tripulação se refugiou em três botes salva-vidas. No terceiro dia, uma onda quebrou sobre um dos barcos, molhando as bolachas. Os marinheiros fizeram o possível para salvar o alimento, sem sucesso.

2. Chuva de peixes voadores

Perto do 20º dia no mar, um cardume de peixes voadores cercou os botes. Quatro se chocaram com as velas improvisadas. Um foi devorado no mesmo instante. Foi a primeira e única vez que todos sentiram vontade de rir – em vez de chorar – da situação em que se achavam.

3. Esperança frustrada

Após um mês de naufrágio, muitos já haviam desistido de sobreviver. Mas uma ilha foi avistada e a ideia de encontrar comida e água animou o grupo. Os botes logo voltaram ao mar, mas três tripulantes optaram por ficar. Seriam resgatados, com vida, mais de três meses depois.

4. O desespero da fome

Com quase três meses no Pacífico, a morte mostrou sua face. Quando o terceiro faleceu, muitos pensaram: por que não comer essa carne? Até o resgate, seis marinheiros, mortos, foram devorados e um foi assassinado para servir de alimento.

Baleia famosa

Moby Dick
Imagem do livro “Moby Dick”, de Herman Melville (Augustus B. Shute/Wikimedia Commons)
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O ataque ao baleeiro Essex foi um dos desastres mais comentados do século 19. Tanto que serviu de inspiração para um clássico da literatura, Moby Dick, do norte-americano Herman Melville (1819-1891). A ideia de escrever o livro veio depois que ele leu o relato de Owen Chase sobre a experiência.

Na versão ficcional, o ataque da baleia é o clímax da história – enquanto na vida real ele foi apenas o início. “Moby Dick é uma colcha de retalhos. Fala de vários temas, da busca de Deus à questão do herói, o que o torna muito singular”, comenta Viviane Cristine Calor, que escreveu uma tese de mestrado para a Universidade de São Paulo sobre a obra. Lançado em 1851, Moby Dick foi um fracasso comercial e de crítica. Só teve seu valor reconhecido quando Melville já havia morrido. “Ele estava à frente de seu tempo”, destaca Viviane.

Atividade cruel

Pelo menos mil anos antes de Cristo os fenícios já caçavam baleias. Mas a caça em grandes embarcações, como na época do Essex, só foi adotada no século 8 da nossa era, pelos bascos. No século 19, o método de abate era o seguinte: ao avistar a presa, seis homens deixavam o navio num barco a remo e golpeavam a baleia com um arpão, para depois matá-la com uma lança.

No início do século passado, as lanças foram substituídas por arpões com explosivos e os botes ganharam motor. Hoje, os baleeiros têm toda a aparelhagem necessária para transformar o animal em produtos devidamente embalados. Essas inovações tecnológicas passaram a representar um grande risco à sobrevivência desses bichos.

Calcula-se que ao longo do século 20 mais de 2 milhões de baleias tenham sito mortas pelo homem – e hoje, entre as mais de 40 espécies existentes no mundo, cinco estão ameaçadas de extinção: a azul, a cinza, a bowhead, a jubarte e a franca.

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A azul, a franca e a jubarte podem ser vistas na costa brasileira. Felizmente, nosso país proíbe a caça, pois é um dos membros da Comissão Baleeira Internacional, criada em 1946 para impedir a matança desordenada. Em 1986, a entidade aprovou uma moratória à caça comercial, mas nem todos os signatários (são mais de 50) a respeitam. Três países lideram o descumprimento da suspensão, alegando fins científicos para a caça: Japão, Noruega e Islândia.

Presa fácil

As principais espécies caçadas

Minke

Seu nome científico é Balaenoptera bonaerensis. Japão, Islândia, Groenlândia e Noruega são caçadores vorazes.

Cachalote

Foi uma Physeter macrocephallus que atacou o Essex em 1820. O Japão é seu maior algoz.

Sei

A Balaenoptra borealis é uma das mais rápidas. Vive em todos os oceanos e é caçada por barcos do Japão.

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